Em consequência de um trágico incidente, uma mulher muito jovem teve um filho fora do casamento. Essa criança foi dada para adoção e durante muito tempo não se ouviu falar dela. Anos mais tarde, num fim de semana de Páscoa, o filho daquela mulher entrou em contato com ela. Quando mãe e filho se encontraram pela primeira vez, depois de tantos anos, ele lhe contou todo o esforço que fez para encontrá-la. Seus pais adotivos eram pessoas maravilhosas e muito amorosas, mas ele sentia a necessidade de encontrar sua mãe biológica. Ele queria saber de onde vinha, e quem o tinha gerado.
Esta história poderia ser repetida muitas vezes, de várias formas. Todos queremos saber de onde viemos. Os gentios que vieram a crer em Jesus Cristo foram adotados na família de Deus. Em termos bíblicos, nós fomos enxertados na videira, e essa videira é Israel (ver Romanos, capítulo 11). Nossas “raízes” como cristãos penetram bem fundo na história bíblica. Queremos saber de onde viemos, e é o livro de Gênesis que descreve essas origens.
Em Gênesis, encontramos a descrição da origem do nosso mundo e da raça humana (capítulos 1 e 2). Encontramos também a origem da depravação humana e do pecado, na “queda do homem” descrita no capítulo 3. Vemos os efeitos devastadores da maldade dos homens, e suas horríveis consequências, no julgamento e na maldição de Deus (capítulos 3 e 4), no dilúvio (capítulos 6 a 9), na confusão de Babel (capítulo 11) e na destruição de Sodoma e Gomorra (capítulos 18 e 19). Também podemos ver a graça de Deus em Seus meios para a salvação do homem, começando pela promessa de salvação em Gênesis 3:15, tornando-se mais evidente na arca de Noé e na aliança de Deus com ele (capítulos 6 a 9), no resgate de Ló e sua família (capítulo 19), na aliança com Abraão (Gênesis 12:1-3, etc), e no período em que Israel esteve no Egito (capítulo 37 e ss).
Gênesis não é um conto de fadas de “era uma vez...”. Gênesis é história, mas é uma história escrita de tal forma que prende a nossa atenção durante todos os seus 50 capítulos. Vamos abordar este estudo com o entusiasmo que ele merece. Vamos ouvir e aprender de onde viemos, bem como aprender mais sobre o “paraíso” ao qual todos os verdadeiros cristãos estão destinados.
Gostaria de sugerir que, antes de iniciar o estudo detalhado deste livro (e as mensagens sobre ele), você se sente e leia o livro todo, se possível, de uma só vez. Será um tempo bem gasto. Depois, eu lhe pediria para orar a Deus para Ele tornar clara a você a mensagem e o significado do livro, de forma a isso se tornar parte da transformação da sua vida (ver Efésios 4:17-24). E, quando orar, peça a Deus que Ele lhe conceda ver mais de Cristo, pois Ele certamente será encontrado neste grande livro.
Traduzido e revisado por Mariza Regina de Souza
Talvez uma das apresentações mais breves e diretas que já tenha ouvido foi uma relatada pelas Seleções do Reader’s Digest e que ocorreu num encontro de homens do Philomatic Club. O orador não foi apresentado com as costumeiras frases floreadas. Em vez disso, uma mulher simplesmente disse: “Levante-se, Gilbert". O orador não era outro senão seu marido.
Provavelmente eu sinta o mesmo que “Gilbert” com relação a apresentações. Em especial, não gosto daquelas do tipo: “E agora, com todo prazer, apresento o homem que não precisa de apresentação”.
Assim, damos início ao estudo de um dos grandes livros da Bíblia, o livro de Gênesis. No entanto, este livro precisa de uma apresentação. Derek Kidner diz:
Talvez não haja outra porção das Escrituras sobre a qual sejam travadas tantas batalhas, teológicas, científicas, históricas e literárias, ou que tenha cultivado opiniões tão fortes.1
A postura e as pressuposições que trazemos para o livro de Gênesis irão determinar, em grande parte, a nossa compreensão sobre ele. Por essa razão, precisamos dedicar nossa atenção a algumas questões introdutórias.
O título “Gênesis” é uma transliteração da palavra grega que é título do livro na Septuaginta, a antiga tradução grega do Velho Testamento. No texto hebraico, a palavra Bereshith é a primeira palavra do texto, a qual é traduzida por “no princípio”.
J. Sidlow Baxter, na excelente obra Explore the Book, resume a dificuldade da autoria com a pergunta: “É Mosaico ou mosaico?”2
O que, em poucas palavras, é o caso.
Ao longo dos séculos, tradicionalmente a autoria de Gênesis tem sido atribuída a Moisés. Uma série de inferências favorece esta conclusão3. De acordo com algumas passagens (Êxodo 17:14, 24:4; Levítico 1:1, 4:1, 6:1, 8, 19, 24; 7:22, 28, etc), parece evidente que foi ele quem escreveu os outros livros do Pentateuco (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio). E seria realmente muito incomum que a primeira palavra de Êxodo fosse “e”, a menos que Moisés também o tivesse escrito.
No Novo Testamento, nosso Senhor parece atribuir o Pentateuco a Moisés (Mateus 8:4; 19:7-8; Marcos 1:44; 7:10, 10:3-4; Lucas 5:14, 16:29, 31; João 5:45-46, 7:22-23). Outros escritores também seguem essa linha (Atos 3:22, 13:39; Romanos 10:5, 19; 1 Coríntios 9:9; 2 Coríntios 3:15). Portanto, não é difícil concluir que tenha sido Moisés quem escreveu todos os livros do Pentateuco, embora não haja uma afirmação incontestável sobre isso.
Os críticos, no entanto, não se dão por satisfeitos com essa conclusão. Começando por J. Astruc (1753)4, os “eruditos” têm atribuído o livro ao trabalho de um redator desconhecido, que habilmente compilou os escritos de quatro ou mais editores. Geralmente as quatro fontes principais são referidas como J, E, D e P. J é “Javista”, E, “Eloísta”, D é o trabalho de Deuteronomista, e P, o documento sacerdotal.
Várias linhas de evidência são dadas para sustentar o Graf-Wellhausen ou Hipótese Documentária. A primeira seriam os diferentes nomes empregados para Deus5. Para aqueles que sustentam a hipótese documentária, a mudança de Elohim para Yahweh assinala a mudança de autor. Uma das maiores falhas nessa abordagem é que, dentro das passagens “E”, a palavra Yahweh também é empregada (ex. Gênesis 22:11, 14; 28:17-22), e vice-versa.
Em segundo lugar, são apontadas expressões diversas para se referir a um mesmo ato, tais como aquelas que falam sobre fazer uma aliança. “Cortar uma aliança”, “entregar uma aliança” e “estabelecer uma aliança”6 são empregadas de modo diverso por diferentes autores do Pentateuco. Isso não dá ao autor oportunidade para mudança de estilo ou de ênfase em uma palavra. Hoje em dia, algumas pessoas odiariam escrever sob tais restrições.
Em terceiro lugar, dizem que o Pentateuco contém “duplicidades”, ou seja, relatos duplicados de um mesmo acontecimento7. Um deles seria os dois relatos da criação narrados em Gênesis 1 e 2. Pior ainda são as supostas “duplicidades” onde não há qualquer similaridade aparente entre os dois acontecimentos, tal como nas duas partidas de Agar (Gênesis 16 e 21).
Embora a múltipla autoria8 ou uso de documentos existentes9 não apresentem grande dificuldade à doutrina da inspiração e inerrância da Bíblia, a Hipótese Documentária continua condenada em duas coisas. Primeira, sua base está sobre a precária conjectura de eruditos que supostamente são mais bem informados que o(s) autor(es) antigo(s). Segunda, é colocada mais ênfase em fragmentos isolados e seus autores do que na interpretação do próprio texto10. Eles estão mais preocupados com um suposto Redator do que com o Redentor.
Portanto, devemos concordar com a conclusão de Sir Charles Marston:
Assim J, E e P, os supostos autores do Pentateuco, vão se tornando meros escribas fantasmas e produtos da imaginação. Eles têm feito do estudo do Antigo Testamento um estudo sem atrativos, eles nos fazem perder tempo, e distorcem e confundem nosso julgamento com evidências superficiais. Supõe-se que eles tenham algum tipo de direito prescritivo e autoridade superior sobre o texto Sagrado. À luz mais clara que tem sido lançada pela Ciência, essas sombras que encobrem os nossos dias de estudo e devoção vão sendo silenciosamente dissipadas.11
Quase todo estudante do livro de Gênesis concorda que nele cabem duas divisões lógicas: dos capítulos 1 a 11 e de 12 a 50. Os onze primeiros capítulos dão ênfase à progressiva ruína do homem, caído de sua criação perfeita e sujeito ao julgamento do Criador. Os capítulos 12 a 50 descrevem o progressivo e estreito plano de Deus para a redenção do homem.
A primeira divisão do livro, do capítulo 1 ao 11, pode ser resumida em quatro acontecimentos principais: a criação (capítulos 1 e 2), a queda (capítulos 3 a 5), o dilúvio (capítulos 6 a 9) e a confusão de línguas da torre de Babel. A última divisão, do capítulo 12 ao 50, pode ser lembrada por seus quatro personagens principais: Abraão (12:1 a 25:18), Isaque (25:19 a 26:35), Jacó (27 a 36) e José (37-50).
Embora existam esquemas mais complicados para o livro, este simples esboço deve ajudá-lo a pensar em termos do livro como um todo. Cada evento, cada capítulo deve ser entendido como contribuição ao argumento do livro.
Um agrimensor deve sempre começar de um ponto de referência. A história, da mesma forma, deve começar em lugar definido das origens. A Bíblia é, do princípio ao fim, uma revelação histórica. Ela é o relato da ação de Deus na história. Como tal, ela deve ter um princípio. O livro de Gênesis nos dá o ponto de referência histórico, de onde procede toda a revelação subsequente.
Neste livro encontramos a “origem” do mundo inabitado e do universo, do homem e das nações, do pecado e da redenção. Também encontramos a base da nossa teologia. Fritsch, em The Layman’s Bible Commentary se refere a Gênesis como “o ponto de partida de toda a teologia”12. J. Sidlow Baxter escreve:
Os outros escritos da Bíblia estão inseparavelmente ligados a Gênesis, pois ele nos dá a origem e a explicação inicial de tudo o que se segue. Os principais temas das Escrituras podem ser comparados a grandes rios, os quais ficam cada vez mais largos e profundos à medida que correm; e é certo dizer que todos esses rios têm sua nascente na bacia hidrográfica de Gênesis. Ou, para usar uma figura igualmente apropriada, como o tronco e os galhos de um enorme carvalho estão em uma pequena bolota, assim, por implicação e antecipação, toda a Escritura está em Gênesis. Nele temos, em formação, tudo o que é desenvolvido posteriormente. É certo dizer que “as raízes de toda a revelação subsequente estão plantadas bem fundo em Gênesis, e quem quiser realmente compreender essa revelação deve começar aqui.13
De modo especial, Gênesis é crucial do ponto de vista da doutrina da revelação progressiva. Essa doutrina tenta definir o fenômeno que ocorre no processo da revelação divina. Basicamente, a revelação inicial é geral, enquanto a revelação subsequente tende a ser mais particular e específica.
Deixe-me tentar ilustrar a revelação progressiva, examinando a doutrina da redenção. Em Gênesis 3:15, a primeira promessa de redenção é clara, mas bastante indefinida: “Ele pisará a tua cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar.
Mais adiante, aprendemos que o mundo será abençoado por meio de Abraão (Gênesis 12:3). A linhagem pela qual viria o Messias estava em Isaque, não em Ismael; em Jacó, não em Esaú. Finalmente, em Gênesis, vemos que o futuro soberano de Israel será da tribo de Judá: “O cetro não se arredará de Judá, nem o bastão de autoridade dentre seus pés, até que venha aquele a quem pertence; e a ele obedecerão os povos” (Gênesis 49:10).
Posteriormente, ficamos sabendo que o Messias virá da descendência de Davi (2 Samuel. 7:14-16) e irá nascer na cidade de Belém (Miqueias 5:2). Literalmente, centenas de profecias contam em maiores detalhes a vinda do Messias.
O mais surpreendente é compreender que Gênesis (e o Pentateuco) contém, praticamente, as linhas gerais de todas as principais áreas da teologia. Para quem tende a perder o senso de perspectiva entre verdades fundamentais e verdades secundárias, o estudo de Gênesis o fará lembrar das áreas mais básicas e fundamentais da teologia.
Gênesis também lança luz sobre eventos contemporâneos. A amarga luta travada atualmente no Oriente Médio é explicada no livro de Gênesis. Abrão, querendo dar uma mãozinha ao plano de Deus, tentou resolver as coisas sozinho. O resultado foi a concepção de um filho com a criada de Sarai, Agar. Os árabes atuais alegam serem descendentes de Ismael14.
Francis Schaeffer faz alusão a quatro interpretações diferentes da narrativa da criação em Gênesis:
Para alguns, essa narrativa é apenas um mito judaico, com valor histórico para o homem moderno semelhante ao da Epopeia de Gilgamesh ou das histórias de Zeus. Para outros, ela constitui uma visão pré-científica que ninguém que respeite os resultados acadêmicos pode aceitar. Outros ainda veem apenas uma história simbólica, nada mais. Alguns admitem os primeiros capítulos de Gênesis como revelação apenas em consideração a uma história maior, uma verdade religiosa, mas permitem que qualquer sentido de verdade com relação à história e ao cosmos se perca (ciência)15.
A maneira como alguém aborda o livro de Gênesis determina, em grande parte, o que vai assimilar do seu estudo. Gostaria de mencionar três métodos de interpretação que devemos evitar.
Teólogos neo-ortodoxos estão dispostos a admitir que a Bíblia contém a verdade, mas não vão tão longe a ponto de aceitá-la como a verdade. Eles acham que, durante o processo de transmissão através dos séculos, ela se tornou menos inspirada e inerrante. Os acréscimos inverídicos que se misturaram com a verdade bíblica devem ser expostos e eliminados. Este processo é conhecido como desmistificação das Escrituras. A grande dificuldade é que o homem determina o que é verdade e o que é ficção. O homem não está mais sob a autoridade da Palavra, ele é a autoridade sobre a Palavra.
Um segundo método de interpretação é chamado de abordagem alegórica. Esse método é apenas um passo a menos que a desmistificação. O relato bíblico não é tão importante quanto a mensagem “espiritual” transmitida pela passagem. A dificuldade é que a “mensagem espiritual” parece diferir para cada indivíduo, e não está vinculada à interpretação histórico-gramatical do texto. Em grupos de estudos populares isso geralmente se encaixa no título “o que este versículo significa para mim”. A interpretação de um texto deve ser a mesma para uma dona de casa ou para um teólogo, para uma criança ou para um cristão maduro. A aplicação pode diferir, mas a interpretação, jamais!
Intimamente relacionado ao método da interpretação alegórica está o da abordagem tipológica. Ninguém discute que a Bíblia contenha tipos. Alguns deles são claramente apontados como tal no Novo Testamento (Romanos 5:14, Colossenses 2:17, Hebreus 8:5, etc). Outros, apesar de não receberem especificamente esse rótulo, dificilmente podem ser questionados. Por exemplo, José parece ser claramente um tipo de Cristo.
Muitas vezes vejo pessoas “encontrando” tipos onde eles parecem não existir. Mesmo que o significado da interpretação esteja em conformidade com a Escritura (ou seja ensinado em algum lugar), não há meios de se provar ou refutar o tipo. Quanto mais espiritual é uma pessoa, tanto mais tipos, ele ou ela, parece encontrar. E quem pode questioná-los? No entanto, nessa busca por tipos, a interpretação pura e simples é ignorada ou negligenciada. Precisamos ter muito cuidado com isso.
Gostaria de sugerir que abordemos o livro de Gênesis tal como o livro se apresenta para nós. Creio que o primeiro versículo mostra claramente a maneira como devemos estudá-lo.
No princípio, criou Deus os céus e a terra. (Gênesis 1:1)
Ao lado deste versículo, tenho escrito em minha Bíblia: “Ou isso explica tudo ou não explica nada”.
Não, não me diga que estou vendo demais aqui. Alguns livros começam com “Era uma vez...”.
Quando vemos esse tipo de introdução já sabemos que estamos lendo um conto de fadas. O mesmo acontece com a conclusão “... e viveram felizes para sempre”.
Gênesis 1:1 é totalmente diferente. O tom é assertivo e autoritativo.
A reivindicação contida nesse versículo é semelhante àquela feita por nosso Senhor quando fez a apresentação de Si mesmo aos homens. Ninguém pode, em sã consciência, considerar Jesus como um “homem bom”, “um exemplo maravilhoso” ou um “grande professor”. Ou Ele foi Quem Ele afirmou ser (o Messias, o Filho de Deus) ou foi um impostor e uma fraude. Não existe meio-termo, não dá pra ficar em cima do muro com relação a Jesus. Ele não merece só um pouco de consideração. Ele requer uma coroa ou uma cruz.
O mesmo acontece com Gênesis 1:1. Não podemos nos atrever a chamá-lo de boa literatura. Ele reivindica autoridade e veracidade. A partir desse versículo, ou a pessoa continua lendo, esperando que Deus Se revele no livro, ou o deixa de lado, considerando-o simples retórica religiosa.
Não podemos nos esquecer de que ninguém foi testemunha da criação:
Onde estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da terra? Dize-mo, se tens entendimento. Quem lhe pôs as medidas, se é que o sabes? Ou quem estendeu sobre ela o cordel? Sobre que estão fundadas as suas bases ou quem lhe assentou a pedra angular, quando as estrelas da alva, juntas, alegremente cantavam, e rejubilavam todos os filhos de Deus? (Jó 38:4-7).
Há apenas duas opções viáveis a respeito da procedência de Gênesis 1:1 (e o restante do livro). Ou o versículo foi produto da imaginação humana do autor ou é a verdade divinamente revelada. Se for a primeira, seu valor é apenas de uma obra antiga, no mesmo nível de outras cosmogonias da Antiguidade. Se for a última, devemos estudá-lo com reverência, dispostos a ouvi-lo e obedecê-lo como palavra autoritativa de Deus.
A visão de Gênesis como revelação divina, o relato histórico das nossas origens, é aquela do restante das Escrituras.
Àquele que com entendimento fez os céus, porque a sua misericórdia dura para sempre; àquele que estendeu a terra sobre as águas, porque a sua misericórdia dura para sempre; àquele que fez os grandes luminares, porque a sua misericórdia dura para sempre; o sol para presidir o dia, porque a sua misericórdia dura para sempre; a lua e as estrelas para presidirem a noite, porque a sua misericórdia dura para sempre. (Salmo 136:5-9)
Eu formo a luz e crio as trevas; faço a paz e crio o mal; eu, o Senhor, faço todas estas coisas. Eu fiz a terra e criei nela o homem; as minhas mãos estenderam os céus, e a todos os seus exércitos dei as minhas ordens. Porque assim diz o Senhor, que criou os céus, o Deus que formou a terra, que a fez e a estabeleceu; que não a criou para ser um caos, mas para ser habitada. Eu sou o Senhor, e não há outro. (Isaías 45:7, 12, 18)
Porque, primeiro, foi formado Adão, depois, Eva. Adão não foi iludido, mas a mulher, sendo enganada, caiu em transgressão. (1 Timóteo. 2:13-14, cf. Mateus 19:4-6; Romanos 5:14)
Por tudo isso, vamos abordar o livro de Gênesis como revelação divina. Vamos nos empenhar para interpretá-lo literalmente, à luz da cultura e dos costumes da sua época. Vamos nos esforçar para encontrar princípios eternos que sejam tão verdadeiros hoje como foram há tantos anos. E, então, vamos considerar de que forma estas verdades eternas têm a ver conosco em nossa própria época.
Esta série de mensagens não será (se Deus quiser) uma longa e interminável maratona. Meu propósito é lidar com Gênesis capítulo por capítulo, mantendo o entendimento do argumento do livro como alvo principal.
Nos dois primeiros capítulos, não quero me estender na discussão sobre a teoria da evolução. Isso, por vários motivos. Primeiro, não acho que a questão esteja dentro do objetivo principal do livro. Eu teria de sair do texto e fazer muita especulação para tratar da evolução de forma eficaz. Segundo, tenho pouco interesse e pouca habilidade nessa área da ciência.
(Eu me recuso a atacar os cientistas numa área em que não tenho conhecimento; e não desejo assim ser “impedido” de falar por teorias que criticam a revelação divina). Terceiro, quero ficar dentro da ênfase e aplicação da Bíblia quando tratar da questão da criação. Por milhares de anos, a evolução não foi problema. Durante todo esse tempo, o que as pessoas aprenderam sobre Gênesis 1 e 2? Quarto, a maior parte dos americanos ou estão cansados de ouvir falar de evolução ou nem mesmo acreditam nela: “Metade dos adultos nos Estados Unidos creem que Deus criou Adão e Eva para dar início à raça humana”.16
Em última análise, criacionismo é uma questão de fé, não de fatos:
Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis; porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato. (Romanos 1:20-21)
Pela fé, entendemos que foi o universo formado pela palavra de Deus, de maneira que o visível veio a existir das coisas que não aparecem. (Hebreus 11:3)
Devo dizer que estou ansioso para começar este estudo de Gênesis. Gostaria de lhe pedir para estudar o livro com muito cuidado e oração. Acima de tudo, espero que este estudo nos leve a conhecer a Deus como O conheceram Abraão, Isaque, Jacó e José.
Traduzido e revisado por Mariza Regina de Souza
1 Derek Kidner, Gênesis (Chicago: InterVarsity Press, 1967), p. 9.
2 J. Sidlow Baxter, Explore the Book (Grand Rapids: Zondervan, 1960), I, p. 22.
3 Para uma análise mais detalhada da autoria de Gênesis, cf. Kidner, pp. 15-26; Baxter, I, p. 22; H. C. Leupold, Exposition of Genesis (Grand Rapids: Baker Book House, 1942), I, pp. 5-9
4 Kidner, p. 16.
5 Cf. Gleason Archer, A Survey of Old Testament Introduction (Chicago: Moody Press, 1964), p. 110-115.
6 Cf. Kidner, pp. 2021.
7 Cf. Kidner, pp. 2122; Archer, p. 117 e ss.
8 Como temos em Salmos ou Provérbios, por exemplo.
9 “No entanto, a ausência de tais fontes, orais e escritas, precisa ser suposta por um autor do período indicado na seção a. (pp. 15f.), desde que Abrão migrou de um país que era rico em tradições e genealogias, e José (como Moisés depois dele) viveu muitos anos em meio ao clima intelectual da corte egípcia de um lado (com acesso à etnografia detalhada refletida em Gênesis 10) e a sociedade patriarcal de outro, com amplas oportunidades de preservar estes estoques de informação.” Kidner, pp. 22-23.
10 “Com o estudo de Gênesis em “seus próprios termos”, como um conjunto vivo, não um corpo a ser dissecado, a impressão indiscutível é que seus personagens são pessoas de carne e osso, seus eventos atuais, o livro em si mesmo uma unidade. Se isso é certo, os mecanismos de composição são matéria de pouca importância, desde que as partes deste todo não estejam competindo em crença versus tradições, e o autor do livro não atraia a atenção para suas fontes de informação, como fazem os escritores de Reis e Crônicas.” Ibid, p. 22.
11 Citado by J. Sidlow Baxter, Explore the Book, I, p. 22.
12 Como citado por H. C. Leuphold, “Genesis,” The Zondervan Pictorial Encyclopedia of the Bible (Grand Rapids: Zondervan, 1975, 1976), II, p. 679. Esse excelente artigo tem um sumário de ajuda do livro, capítulo por capítulo.
13 Baxter, Explore the Book, I, p. 23.
14 Kidner, p. 127.
15 Francis A. Schaeffer, Genesis in Time and Space (Downers Grove: InterVarsity Press, 1972), p. 9.
16 “We Poll the Pollster,” Christianity Today, December 21, 1979, p. 14.
Quero ter muito cuidado ao abordar este primeiro capítulo de Gênesis. Na semana passada, li a história de um homem que tentou citar esta passagem da Escritura como prova para o uso de maconha. Eis a história publicada pela Christianity Today há uns dois anos:
Preso em Olathe, Kansas, por posse de drogas, Herb Overton usou como base para sua defesa o texto de Gênesis 1:29: “e Deus disse... Eis que vos tenho dado todas as ervas que dão semente e se acham na superfície de toda a terra…”
O Juiz Earl Jones, no entanto, achou duvidosa a hermenêutica de Overton. De acordo com o relato do Chicago Tribune, o juiz disse ao acusado de citar a Bíblia: “Como mero mortal, vou considerá-lo culpado pela posse de maconha. Se quiser apelar para a instância superior, por mim tudo bem1.
Quando a gente lê esse tipo de história, pode até dar risada. Embora o erro de Overton seja cômico, muitos cristãos talvez cometam erros não tão óbvios — e isso não é engraçado.
Esta semana, um pequeno artigo da revista Eternity, intitulado “Seis Falhas do Evangelicalismo”, chamou minha atenção. A maior parte dele ainda me deixa preocupado, mas o que mais me incomodou foi esta afirmação:
Temos tratado a Criação como um evento estático — argumentando se Deus criou ou não tudo em sete dias, deixando, assim, de entender o seu significado religioso e a atividade contínua de Deus na história2.
Pensando nessa acusação de Robert Webber, parece-me que nós, evangélicos, temos cometido cinco grandes erros na maneira como temos lidado com Gênesis nos últimos anos. A maioria desses erros, em parte, consiste na reação ao tríplice ataque da evolução ateísta, da religião comparada e da crítica literária3.
(1) Tratamos o relato da criação de acordo com a grade científica. Recentes teorias e conclusões dos cientistas têm desafiado a interpretação tradicional do relato bíblico da criação. Numa tentativa escrupulosa de provar que a Bíblia é cientificamente correta, abordamos os primeiros capítulos de Gênesis do ponto de vista científico. O problema é que esses capítulos não foram destinados a nos dar um relato da criação para responder a todos os problemas e fenômenos científicos.
O Dr. B. B. Warfield exprime bem o problema:
Temos diante de nós uma janela. Olhamos para ela e observamos o vidro; vemos sua qualidade, notamos seus defeitos e ficamos imaginando do que ele é feito. Ou, então, olhamos através do vidro e vemos a grande extensão de terra, o céu e o mar do outro lado. Da mesma forma, há duas maneiras de se ver o mundo. Podemos olhar para ele e ficar extasiados diante das maravilhas da natureza. Essa é a maneira científica. Ou podemos olhar através dele e ver o Deus que o fez. Essa é a maneira religiosa.
A maneira científica de observar o mundo é semelhante à maneira do fabricante observar uma janela. Essa forma de olhar para as coisas tem um uso muito importante. No entanto, a janela foi colocada lá não para ser observada, mas para que olhemos através dela, e o mundo deixa de ter seu propósito se não olharmos através dele e nossos olhos repousarem no Deus que o criou, não nele4.
O autor de Gênesis não escreveu o relato da criação para o fabricante do vidro. Pelo contrário, ele nos exorta a olhar através do vidro do seu relato para o Criador de todas as coisas.
(2) Usamos o relato de Gênesis como apologia, quando seu propósito primário não é apologético. O uso apologético dos capítulos iniciais de Gênesis, embora tenha seu valor5, não está de acordo com o propósito do autor. Gênesis foi escrito para o povo de Deus, não para descrentes. Não é pela ausência de fatos ou de provas que os homens não querem acreditar no criacionismo, (cf. Romanos 1:18 e ss), nem por terem mais conhecimento (Salmo 14:1), mas pela ausência de fé (Hebreus 11:3). Gênesis é uma declaração, não uma defesa.
(3) Tentamos encontrar no primeiro capítulo de Gênesis respostas para mistérios que podem ou não ser explicados em algum outro lugar. Talvez queiramos saber, por exemplo, onde a queda e o julgamento de Satanás se encaixam no relato da criação; mas não temos essa informação porque não era propósito do autor responder a esse tipo de pergunta6.
(4) Deixamos de estudar o primeiro capítulo de Gênesis dentro do seu contexto histórico. Suponho que seja muito fácil cometer esse tipo de erro aqui. Podemos achar que não há nenhum fundo histórico. Ou podemos concluir que esse seja exatamente o propósito do capítulo — dar-nos um relato histórico da criação.
As informações essenciais para a compreensão do significado e da mensagem da criação são as que foram dadas aos que primeiramente receberam este livro. Admitindo-se que tenha sido Moisés o autor de Gênesis, o mais provável é que o livro tenha sido escrito em alguma época entre o êxodo e a entrada em Canaã. Qual era a situação no momento em que o relato da criação foi escrito? Quem recebeu esta revelação e o que precisava saber? Isso é crucial para a interpretação e aplicação correta da mensagem da criação.
(5) Muitas vezes, deixamos de aplicar, de forma relevante, o primeiro capítulo de Gênesis à nossa própria vida espiritual. Como diz um dos meus amigos: “Olhamos para a mensagem do primeiro capítulo de Gênesis e a única coisa que esperamos é ter nossas baterias apologéticas recarregadas mais uma vez”.
O relato da criação passa a ser um tema proeminente ao longo do Antigo e do Novo Testamento. Aqui, como em outros lugares, temos de deixar a Escritura interpretar a própria Escritura. Na Bíblia, quando surge o tema da criação, ele requer uma reação dos homens. Ao ensinar o primeiro capítulo de Gênesis, muitas vezes deixamos de despertar tal reação.
A revelação nunca é dada num vácuo histórico. A Bíblia fala aos homens em situações específicas e por motivos especiais. Não podemos interpretar a Escritura de forma correta, ou aplicá-la a nós mesmos, sem antes responder a pergunta: “O que esta passagem queria dizer àqueles a quem foi entregue originalmente?” Devido aos estudos arqueológicos, conhecemos muita coisa sobre a literatura, cultura e religiosidade dos povos que viviam ao redor dos israelitas. O conhecimento de fatos daquela época aumentará a nossa compreensão do significado do relato da criação conforme a revelação divina encontrada em Gênesis um.
Primeiramente, sabemos que praticamente todas as nações tinham sua própria cosmogonia ou relato(s) da criação. De certo modo, sempre pensei que o relato da criação de Gênesis um fosse algo novo e original. Na verdade, essa revelação veio tarde em relação à das outras nações do Oriente Próximo. A Antiguidade dedicou muito tempo e esforço às suas origens. O relato de Gênesis um teve de “competir”, por assim dizer, com os outros relatos da sua época.
Em segundo lugar, há uma semelhança quase notável entre essas cosmogonias pagãs. De acordo com seu estudo de doze mitos, a Sra. Wakeman identificou três características sempre presentes nesses mitos: “1) um monstro repressor sujeitando a criação; 2) a derrota do monstro por um deus heróico que liberta as forças vitais para a vida; 3) o domínio final do herói sobre essas forças”7.
Em terceiro lugar, embora seja motivo de aflição para algumas pessoas, existem algumas similaridades consideráveis entre os mitos pagãos da criação e o relato inspirado da Bíblia8. As semelhanças incluem o uso de alguns dos mesmos termos (Leviatã, por exemplo) ou descrições (como monstro marinho), forma literária semelhante9 e uma sequência paralela de eventos na criação10.
Algumas explicações para essas semelhanças são inaceitáveis. Por exemplo, dizem que elas evidenciam o fato de que a cosmogonia bíblica não é diferente de qualquer outro mito antigo da criação. Outros afirmam que, embora existam similaridades, os israelitas “desmistificaram” essas histórias corrompidas para assegurar um relato preciso da origem da terra e do homem11. Alguns estudiosos conservadores simplesmente chamam as correspondências de coincidências, embora isso pareça contornar as dificuldades em vez de explicá-las. A explicação mais plausível é que as similaridades são explicadas pelo fato de que todos os relatos semelhantes da criação tentam explicar os mesmos fenômenos.
Os povos primitivos, por onde andaram, levaram consigo as primeiras tradições da raça humana e, em diferentes latitudes e condições climáticas, eles as modificaram de acordo com sua religião e modo de pensar. Com o tempo, as modificações acabaram resultando na adulteração das tradições originais. O relato de Gênesis não é apenas puro, mas em todos os lugares tem-se a inconfundível sensação da inspiração divina quando o comparamos às extravagâncias e adulterações dos outros relatos. A narrativa bíblica, podemos dizer, representa a forma original de onde essas tradições devem ser provenientes12.
Mais importante que o fato de as nações ao redor de Israel terem seus próprios (e talvez mais antigos) relatos da criação, era o uso ao qual eles se destinavam no antigo Oriente Próximo. As antigas cosmogonias não eram cuidadosamente registradas e preservadas por amor à história antiga; elas eram o fundamento da prática religiosa.
No mundo antigo, as divindades eram deuses da natureza, deuses do sol, deuses da lua, deuses da chuva e assim por diante13. Para assegurar o curso ininterrupto das forças da natureza, e garantir uma colheita abundante e o crescimento dos rebanhos de gado, os mitos da criação eram reencenados todos os anos.
Assim, os mitos no mundo antigo eram imitados e reencenados em festivais públicos, como acompanhamento dos rituais. A estrutura toda compreendia uma imitação mágica, cujo efeito, dizia-se, seria benéfico a toda comunidade. Por meio de rituais aromáticos, os acontecimentos dos primórdios registrados na mitologia eram reativados. Acreditava-se que a encenação dos feitos criativos dos deuses na estação apropriada e a declamação de fórmulas verbais adequadas teriam influência sobre a renovação periódica e a revitalização da natureza, garantindo, assim, a prosperidade da comunidade14.
Por esse cenário, podemos começar a perceber como era vital o papel da cosmogonia no antigo Oriente Próximo. A vida social e religiosa de Israel, assim como a de seus vizinhos, era baseada em suas origens. O relato da criação em Gênesis estabeleceu o fundamento para o restante do Pentateuco.
Sob essa luz podemos ver a importância do contexto entre o Deus de Israel e os “deuses” do Egito. Faraó ousou perguntar a Moisés: “Quem é o Senhor para que eu obedeça à sua voz e deixe ir a Israel?” (Êxodo 5:2).
A resposta do Senhor foi uma série de dez pragas. A mensagem das pragas era que o Deus de Israel é o criador dos céus e da terra.
Porque, naquela noite, passarei pela terra do Egito e ferirei na terra do Egito todos os primogênitos, desde os homens até os animais; executarei juízo sobre todos os deuses do Egito. Eu sou o Senhor. (Êxodo 12:12, cf. 18:11, Números 33:4)
Parece que cada praga era uma afronta direta a um dos muitos deuses do Egito. Embora uma correlação direta de cada uma com um deus específico seja um tanto especulativa15, a batalha dos deuses é evidente.
Não é de admirar que o sinal da aliança dos israelitas fosse a guarda do sábado:
Tu, pois, falarás aos filhos de Israel e lhes dirás: Certamente, guardareis os meus sábados, pois é sinal entre mim e vós nas vossas gerações; para que saibais que eu sou o Senhor, que vos santifica... Entre mim e os filhos de Israel é sinal para sempre, em seis dias, fez o Senhor os céus e a terra e, ao sétimo dia, descansou, e tomou alento. (Êxodo 31:13-17)
A observância do sábado identificava Israel com seu Deus, o Criador que descansou de seu trabalho no sétimo dia.
Portanto, os milagres do Êxodo tiveram uma função semelhante à dos sinais e maravilhas realizados por nosso Senhor. Eles autenticaram a mensagem que foi proclamada. No caso de nosso Senhor, foram as palavras ditas por Ele e preservadas pelos escritores inspirados. No caso do Êxodo, os milagres autenticaram a revelação de Deus escrita por Moisés no Pentateuco. O Êxodo provou que Yahweh é o único Deus, o Criador e Redentor. O Pentateuco forneceu o conteúdo para a fé de Israel, da qual o relato da criação é o fundamento.
Existem muitas interpretações para os três primeiros versículos da Bíblia, mas vamos mencionar brevemente apenas as três mais populares defendidas pelos evangélicos. Não vamos gastar muito tempo aqui, pois nossas deduções não serão conclusivas e as diferenças têm pouco valor na aplicação do texto. Vou começar simplesmente dizendo que quem leva o nome de Cristo como Salvador, deve, pela fé, tomar Gênesis 1:1 ao pé da letra (Hebreus 11:3).
1ª Posição: A Teoria da Restituição (do Intervalo ou Lacuna). Esta teoria sustenta que Gênesis 1:1 descreve a criação original da terra, anterior à queda de Satanás (Isaías 14:12-15, Ezequiel. 28:12 e ss). Como consequência da queda de Satanás, a terra perdeu seu estado original de beleza e glória e, em Gênesis 1:2, encontra-se em estado de caos. Esse “intervalo” entre os versículos 1 e 2 não só ajuda a explicar o ensino a respeito da queda de Satanás, como também permite um considerável período de tempo, e, ainda, harmonizar o relato da criação com as modernas teorias científicas. Esta teoria sofre de uma série de dificuldades16.
2ª Posição: A Teoria do Caos Inicial. Em resumo, esta teoria sustenta que o versículo um seria uma declaração introdutória independente. O versículo dois descreveria o estado da criação inicial como sem forma e vazia. Em outras palavras, o universo é como um bloco bruto de granito antes do escultor começar a esculpi-lo. A criação não está em más condições devido a alguma queda catastrófica, está simplesmente em seu estado informe inicial, como uma porção de barro nas mãos do oleiro. Os versículos três e seguintes começam a descrever o trabalho de Deus para esculpir a massa, transformando-a do caos no cosmos. Muitos estudiosos de respeito sustentam esta posição17.
3º Posição: A Teoria do Caos Pré-Criação. Nesta teoria (sustentada pelo Dr. Waltke) o versículo um é entendido como uma oração independente (“Quando Deus começou a criar...”) ou como um enunciado introdutório independente e resumido (“No princípio criou Deus...”). O relato da criação, resumido no versículo um, começa no versículo dois. Essa “criação” não é “ex nihilo” (do nada), mas devido às coisas existentes no versículo dois. De onde vêm essas coisas, não é explicado nesses versículos. Na verdade, essa teoria sustenta que o estado caótico não ocorre entre os versos um e dois, mas antes do verso um numa época não especificada. A origem absoluta da matéria não é, portanto, objeto da “criação” de Gênesis um, mas apenas o princípio relativo do mundo e da civilização como a conhecemos hoje18.
Podemos resumir as diferenças entre os três pontos de vista na figura abaixo19:
É importante reconhecer que os versos 2 a 31 nada mais são do que uma expansão do verso um. Eles não explicam totalmente a criação (certamente não do modo científico — quem se importou com isso durante tantos séculos até agora?). Eles também não a comprovam, pois, em última análise, isso é uma questão de fé. Os fatos sobre os quais esta fé deve estar fundamentada são simplesmente declarados.
Parece haver um padrão para os seis dias da criação, como muito estudantes da Bíblia têm observado. Talvez isso seja melhor ilustrado graficamente:
Sem forma passa a ter forma |
Vazio para a ser habitado |
||||
v. 3-5 |
1º Dia |
Luz |
v. 14-19 |
4º Dia |
Luminares (sol, luz, estrelas) |
v. 6-8 |
2º Dia |
Ar (espaço superior) Água (espaço inferior) |
v. 20-23 |
5º Dia |
Peixes e Pássaros |
v. 9-13 |
3º Dia |
Plantas terrestres |
v. 24-31 |
6º Dia |
Animais e Homem |
Visto dessa forma, os três primeiros dias cuidam da situação sem forma descrita em Gênesis 1:2. Os dias 4 a 6 tratam do estado de “vácuo” ou “vazio” do versículo 2. Parece haver também uma correlação entre os dias 1 e 4, 2 e 5, e 3 e 6. Por exemplo, o ar e a água recebem a forma de vida correspondente de pássaros e peixes, embora isso não seja tão explícito.
Duas outras observações ainda devem ser feitas. Primeira, existe uma sequência para os seis dias. É evidente que a narrativa está em ordem cronológica, cada dia fundamentado na atividade criativa do dia anterior. Segunda, há um processo envolvido na criação, um processo envolvendo a mudança do caos para o cosmos, da desordem para a ordem.
Embora Deus pudesse ter criado a terra tal como ela é num piscar de olhos, Ele preferiu não fazer assim. A clara impressão dada pelo texto é que o processo levou literalmente seis dias, não longas eras. No entanto, o Deus eterno não está tão preocupado em fazer as coisas de forma instantânea como nós estamos. O processo de santificação é apenas um dos muitos exemplos da atividade progressiva de Deus no mundo.
Antes de examinar a questão do que a criação deve significar para nós, precisamos pensar no que ela significou para aqueles primeiros leitores das palavras inspiradas escritas por Moisés. O alvo inicial da narrativa foi os israelitas da época dele. O que deveriam ter aprendido? Como deveriam ter reagido?
(1) O relato da criação de Gênesis foi uma correção à cosmogonia corrompida daquela época. Já dissemos que o Egito, por exemplo, acreditava em múltiplas divindades da natureza. É preciso admitir que Israel, devido à proximidade e ao contato prolongado com os egípcios, não deixou de ser afetado pela sua religiosidade.
Agora, pois, temei ao Senhor e servi-o com integridade e com fidelidade; deitai fora os deuses aos quais serviram vossos pais dalém do Eufrates e servi ao Senhor. (Josué 24:14)
Não bastava considerar Yahweh apenas como um deus, um entre muitos. Ele também não deveria ser concebido somente como o Deus de Israel. Yahweh é o único Deus. Não há outro deus. Ele é o criador dos céus e da terra. Ele não é simplesmente superior aos deuses das outras nações. Só Ele é Deus.
A tendência de confundir Deus com a Sua criação foi parte do pensamento do mundo antigo. Ele deve ser considerado como o Deus da criação, não apenas como Deus na criação. Todos os esforços de imaginar ou humanizar Deus na forma de alguma coisa criada foram tendências para equiparar Deus à Sua criação. Foi assim, creio eu, com o bezerro de ouro de Arão.
(2) O relato da criação descreve o caráter e os atributos de Deus. De forma negativa, Gênesis um corrige muitas concepções populares erradas a respeito de Deus. De forma positiva, ele retrata Seu caráter e Seus atributos.
O tema de Deus como Criador é relevante ao longo de toda a Escritura. É significativo que as últimas palavras da Bíblia sejam notadamente semelhantes às primeiras.
Então me mostrou o rio da água da vida, brilhante como cristal, que sai do trono de Deus e do Cordeiro. No meio da sua praça, de uma e outro margem do rio, está a árvore da vida, que produz doze frutos, dando o seu fruto de mês em mês, e as folhas da árvore são par a cura dos povos. Nunca mais haverá qualquer maldição. Nela, estará o trono de Deus e do Cordeiro. Os seus servos o servirão, contemplarão a sua face, e na sua fronte está o nome dele. Então, já não haverá noite, nem precisam eles de luz de candeia, nem da luz do sol, porque o Senhor Deus brilhará sobre eles e reinarão pelos séculos dos séculos. (Apocalipse 22:1-5)
O fato de Deus ser o Criador dos céus e da terra não é algo só para ser aceito, mas ao qual também devemos reagir. Deixe-me mencionar apenas algumas implicações e aplicações do ensinamento de Gênesis um.
(1) Os homens devem se submeter ao Deus da criação com temor e obediência. Os céus proclamam a glória de Deus:
Os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia as obras de suas mãos. Um dia discursa a outro dia, e uma noite revela conhecimento a outra noite. (Salmo 19:1-2)
Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis; porquanto tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato. (Romanos 1:20-21)
Os homens devem temer ao todo-poderoso Deus da criação:
Os céus por sua palavra se fizeram e, pelo sopro de sua boca, o exército deles. Ele ajunta em montão as águas do mar; e em reservatório encerra as grandes vagas. Tema ao Senhor toda a terra, temam-nos todos os habitantes do mundo. Pois ele falou e tudo se fez, ele ordenou e tudo passou a existir. (Salmo 33:6-9)
A grandeza de Deus é evidente nas obras das Suas mãos — a criação que está ao nosso redor. Os homens devem temê-lO e reverenciá-lO por Quem Ele é.
Bendize, ó minha alma, ao Senhor! Senhor, Deus meu, como tu és magnificente, sobrevestido de glória e majestade, coberto de luz como de um manto. Tu estendes o céu como uma cortina, pões nas águas o vigamento da tua morada, tomas as nuvens por teu carro, e voas nas asas do vento. Fazes a teus anjos ventos e a teus ministros, labaredas de fogo. Lançaste os fundamentos da terra, para que ela não vacile em tempo nenhum. Tomaste o abismo por vestuário e a cobriste; as águas ficaram acima das montanhas; à tua repreensão, fugiram, à voz do teu trovão, bateram em retirada. Elevaram-se os montes, desceram os vales, até ao lugar que lhes havias preparado. Puseste às águas divisa , que não ultrapassarão, para que não tornem a cobrir a terra. (Salmo 104:1-9)
(2) Os homens devem confiar no Deus da criação para suprir cada uma das suas necessidades.
Após voltar Abrão de ferir a Quedorlaomer e aos reis que estavam com ele, saiu-lhe ao encontro o rei de Sodoma no vale de Savé, que é o vale do rei. Melquisedeque, rei de Salém, trouxe pão e vinho; era sacerdote do Deus Altíssimo: abençoou ele a Abrão, e disse: Bendito seja Abrão pelo Deus Altíssimo; que possui os céus e a terra; e bendito seja o Deus Altíssimo, que entregou os teus adversários nas tuas mãos. E de tudo lhe deu Abrão o dízimo. Então disse o rei de Sodoma a Abrão: dá-me as pessoas, e os bens fiquem contigo. Mas Abrão lhe respondeu: Levanto minha mão ao Senhor, o Deus Altíssimo, que possui o céu e a terra, e juro que nada tomarei de tudo o que te pertence, nem um fio, nem uma correia de sandália, para que não digas: Eu enriqueci a Abrão; nada quero para mim, senão o que os rapazes comeram, e a parte que toca aos homens Aner, Escol e Manre, que foram comigo; estes que tomem o seu quinhão. (Gênesis 14:17-24)
Abrão deu o dízimo a Melquisedeque com base na declaração feita por este de que o Deus de Abrão era “o Deus Altíssimo, que possui os céus e a terra” (v. 19, 20). E, ao dar o dízimo a Melquisedeque, Abrão se recusou a receber qualquer benefício financeiro por parte do rei pagão de Sodoma, pois ele queria que aquele homem soubesse que “o Deus Altíssimo, que possui os céus e a terra” foi Quem o tornou bem-sucedido.
Há uma canção que diz: “Ele é o dono do gado em milhares de montes... Eu sei que Ele vai cuidar de mim”. Essa é uma boa teologia. O Deus que é o nosso Criador é também o nosso Sustentador. Veja, Deus não criou o universo e o abandonou à própria sorte, como alguns parecem dizer. Deus mantém um cuidado contínuo sobre a Sua criação.
Fazes crescer a relva para os animais, e as plantas para o serviço do homem, de sorte que da terra tire o seu pão; o vinho, que alegra o coração do homem, o azeite que lhe dá brilho ao rosto, e o pão que lhe sustém as forças. Avigoram-se as aves do Senhor, e os cedros do Líbano que ele plantou, em que as aves fazem seus ninhos; quanto à cegonha, a sua casa é nos ciprestes. Os altos montes são das cabras montesinhas, e as rochas o refúgio dos arganazes. Fez a lua para marcar o tempo; o sol conhece a hora do seu ocaso. Dispões as trevas, e vem a noite, na qual vagueiam os animais da selva. Os leõezinhos rugem pela presa, e buscam de Deus o sustento; em vindo o sol, eles se recolhem e se acomodam nos seus covis. Sai o homem para o seu trabalho, e para o seu encargo até a tarde. (Salmo 104:14-23)
O Novo Testamento vai mais além, dizendo que o Filho de Deus foi o Criador e continua a servir como o Sustentador da criação, mantendo juntas todas as coisas:
Pois nele foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam soberanias, quer principados, quer potestades. Tudo foi criado por meio dele e para ele. Ele é antes de todas as coisas. Nele tudo subsiste. (Colossenses 1:16-17)
(3) Os homens devem se humilhar diante da sabedoria de Deus exibida na criação. Jó passou por muitas aflições. Mas, no final, o suficiente foi suficiente. Na sua adversidade, ele começou a questionar a sabedoria de Deus. Ao seu questionamento, Deus respondeu:
Depois disto o Senhor, do meio de um redemoinho, respondeu a Jó: Quem é este que escurece os meus desígnios com palavras sem conhecimento? Cinge, pois, os teus lombos como homem, pois eu te perguntarei, e tu me farás saber. Onde estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da terra? Dize-mo, se tens entendimento. Quem lhe pôs as medidas, se é que o sabes? Ou quem estendeu sobre ela o cordel? Sobre que estão fundadas as tuas bases, ou quem lhe assentou a pedra angular, quando as estrelas da alva juntas alegremente cantavam, e rejubilavam todos os filhos de Deus? (Jó 38:1-7)
Jó foi desafiado a sondar a sabedoria de Deus na criação. Ele não podia explicá-la ou compreendê-la, muito menos contestá-la. Como, então, ele podia questionar a sabedoria da obra de Deus em sua vida? É verdade que ele não podia entender o propósito de tudo aquilo, mas sua perspectiva não era a de Deus. Se alguém quiser questionar a ação de Deus em sua vida, que contemple a infinita sabedoria demonstrada na criação e, assim, permaneça em silêncio e espere em Deus para fazer o que é certo.
Quando quiser refletir sobre alguma coisa, tente entender a razão pela qual um Deus infinito Se preocupa tanto com um mero mortal:
Quanto contemplo os teus céus, obra dos teus dedos, e a lua e as estrelas que estabeleceste, que é o homem, que dele te lembres? E o filho do homem, que o visites? Fizeste-o, no entanto, por um pouco, menor do que Deus, e de glória e de honra o coroaste. (Salmo 8:3-5)
(4) O homem deve encontrar consolo em tempos de aflição e perigo, sabendo que o Criador pode e quer livrá-lo.
Por isso também os que sofrem segundo a vontade de Deus encomendem as suas almas ao fiel Criador, na prática do bem. (1 Pedro 4:19)
Por que, pois, dizes, ó Jacó, e falas, ó Israel: O meu caminho está encoberto ao Senhor, e o meu direito passa despercebido ao meu Deus? Não sabes, não ouviste que o eterno Deus, o Senhor, o Criador dos fins da terra, nem se cansa nem se fatiga? Não se pode esquadrinhar o seu entendimento. Faz forte ao cansado, e multiplica as forças ao que não tem nenhum vigor. Os jovens se cansam e se fatigam, e os moços de exaustos caem, mas os que esperam no Senhor renovam as suas forças, sobem com asas como águias, correm e não se cansam, caminham e não se fatigam. (Isaías 40:27-31)
Assim Deus, o Senhor, que criou os céus e os estendeu, formou a terra, e a tudo quanto produz; que dá fôlego de vida ao povo que nela está, e o espírito aos que andam nela. Eu, o Senhor, te chamei em justiça, tomar-te-ei pela mão, e te guardarei, e te farei mediador da aliança com o povo, e luz para os gentios. (Isaías 42:5-6)
Eu sou o Senhor, e não há outro; além de mim não há Deus; eu te cingirei, ainda que não me conheces. Para que se saiba até ao nascente do sol e até ao poente, que além de mim não há outro; eu sou o Senhor, e não há outro. Eu formo a luz, e crio as trevas; faço a paz e crio o mal; eu o Senhor, faço todas estas cousas. (Isaías 45:5-7)
(5) O homem deve responder ao Deus da criação com o louvor que Lhe é devido:
A glória do Senhor seja para sempre! Exulte o Senhor por suas obras! Com só olhar para a terra ele a faz tremer; toca as montanhas, e elas fumegam. Cantarei ao Senhor enquanto eu viver; cantarei louvores ao meu Deus durante a minha vida. Seja-lhe agradável a minha meditação; eu me alegrarei no Senhor. Desapareçam da terra os pecadores, e já não subsistam os perversos. Bendize, ó minha alma, ao Senhor! Aleluia! (Salmo 104:31-35)
Aleluia! Louvai ao Senhor do alto dos céus, louvai-o nas alturas. Louvai-o todos os seus anjos; louvai-o todas as suas legiões celestes. Louvai-o, sol e lua; louvai-o todas as estrelas luzentes. Louvai-o, céus dos céus, e as águas que estão acima do firmamento. Louvem o nome do Senhor, pois mandou ele e foram criados. E os estabeleceu para todo o sempre: fixou-lhes uma ordem que não passará. (Salmo 148:1-6)
Vinde, adoremos e prostremo-nos; ajoelhemos diante do Senhor que nos criou. (Salmo 95:6)
Ó Senhor, Senhor nosso, quão magnífico em toda a terra é o teu nome! Pois expuseste nos céus a tua majestade. (Salmo 8:1)
Amigo, o ensino do primeiro capítulo de Gênesis é uma verdade grande e poderosa. É algo que exige mais do que simples aceitação; ele requer uma atitude. E mesmo sendo tão importante, ele é ofuscado pela vinda de Jesus Cristo. Da mesma forma que Deus proclamou “haja luz”, nos últimos tempos Ele tem falado, de uma vez por todas, por meio de Seu Filho (Hebreus 1:1-2), O qual é a luz:
Porque Deus que disse: De trevas resplandecerá luz – ele mesmo resplandeceu em nossos corações, para iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de Cristo. (2 Coríntios 4:6)
No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e sem ele nada do que foi feito se fez. A vida estava nele, e a vida era a luz dos homens. A luz resplandece nas trevas, e as trevas não prevaleceram contra ela. (João 1:1-5)
A saber: a verdadeira luz que, vinda ao mundo, ilumina a todo homem. Estava no mundo, o mundo foi feito por intermédio dele, mas o mundo não o conheceu. Veio para o que era seu, e os seus não o receberam. Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus; a saber, aos que crêem no seu nome; os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus. (João1:9-13)
Embora Deus tenha Se revelado palidamente na criação, em Seu Filho Ele Se manifestou plenamente:
Ninguém jamais viu a Deus: o Deus unigênito, que está no sei do Pai, é quem o revelou. (João 1:18)
Não podemos fugir à revelação bíblica de que o Deus que criou os céus e a terra, o Deus que libertou os israelitas do Egito, é o Deus-Homem da Galileia, Jesus Cristo. Assim como Ele fez a primeira criação (Colossenses 1:16), agora ele faz uma nova criação por meio da Sua obra na cruz do Calvário:
E assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura: as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas. (2 Coríntios 5:17)
Além disso, logo virá o dia em que os céus e a terra serão purificados dos efeitos do pecado e haverá um novo céu e uma nova terra:
Virá, entretanto, como ladrão, o dia do Senhor, no qual os céus passarão com estrepitoso estrondo e os elementos se desfarão abrasados; também a terra e as obras que nela existem serão atingidas. Visto que todas estas coisas hão de ser assim desfeitas, deveis ser tais como os que vivem em santo procedimento e piedade, esperando e apressando a vinda do dia de Deus, por causa do qual os céus incendiados serão desfeitos e os elementos abrasados se derreterão. Nós, porém, segundo a sua promessa, esperamos novos céus e nova terra, nos quais habita justiça. (2 Pedro 3:10-13)
Você está preparado para esse dia, meu amigo? Já se tornou uma nova criatura em Cristo? Gênesis um mostra como Deus tomou o caos e o transformou no cosmos — belo e ordenado. Se você ainda não crê em Cristo, posso lhe dizer com toda certeza que sua vida é sem forma e vazia, é caótica e sem vida. O mesmo Deus que transformou o caos em cosmos pode fazer da sua vida uma nova vida.
Tradução e Revisão: Mariza Regina de Souza
1 “Pot Proof”, Christianity Today, 22 de setembro de 1978, p. 43.
2 “Evangelicalisms Six Flaws”, Eternity, Janeiro, 1980, p. 54. Este artigo da equipe da Revista Eternity é um resumo do artigo de Robert E. Webber publicado em outubro na New Oxford Review.
3 O Dr. Bruce Waltke de forma sucinta esse tríplice ataque:
Primeiro, veio a contestação da comunidade científica. Na esteira da revolucionária teoria da evolução de Charles Darwin para explicar a origem das espécies, a maior parte da comunidade científica seguiu a hipótese de Darwin contra a Bíblia. Eles acreditavam que poderiam validar a teoria de Darwin por meio de dados empíricos, mas acharam que não poderiam fazer o mesmo em relação à Bíblia.
A segunda contestação veio dos religiosos comparativos que procuraram desacreditar a história bíblica apontando várias semelhanças entre ela e os antigos relatos mitológicos da criação, provenientes de várias partes do Oriente Próximo, estudados naquela época... De acordo com sua opinião (Gunkel), a versão hebraica da criação foi apenas uma outra lenda folclórica do Oriente Próximo, que aqueles que transmitiam a história, com o passar do tempo, aperfeiçoaram com sua criatividade e visão filosófica e teológica.
A terceira contestação veio do criticismo literário. O caso mais expressivo foi o de Julius Wellhausen em seu clássico mais influente, ainda disponível em brochura nas livrarias, intitulado Pro Legomena to the Old Testament. No livro ele argumenta que haviam, pelo menos, dois relatos distintos da criação em Gênesis 1 e 2 e que os dois se contradiziam em vários pontos. Bruce Waltke, Creation and Chaos (Portland, Oregon: Western Conservative Baptist Seminary, 1974), p. 1-2.
4 Benjamin B. Warfield, Selected Shorter Writings of Benjamin B. Warfield, Vol. I, editado por John E. Meeker (Nutley, N.J. Presbyterian and Reformed Publishing Co., 1970), p. 108.
5 Devo enfatizar que deveríamos levar com seriedade a instrução de Pedro “... estando sempre preparados para responder a todo aquele que vos pedir razão da esperança que há em vós...” (1 Pe. 3:15). Mesmo aqui, no que pode ser chamado de exortação a uma prontidão apologética, a mensagem mais necessária ao não crente é a do evangelho da salvação pela fé em Cristo. Pela minha experiência, poucas pessoas são salvas com o uso apologético do relato da criação de Gênesis. Para quem leva com seriedade o chamado de Cristo, mas receia que a Bíblia não seja digna de confiança, tais esforços podem ser úteis.
6 “Primeiro, podemos dizer que o livro de Gênesis não nos informa, em relação às origens, o que é contrário à natureza de Deus, nem no cosmos, nem no mundo espiritual. Onde tem origem o que se opõe Àquele que é bom e cheio de esplendor? Quando nos deparamos com o problema da origem do mal no reino moral, nós nos deparamos com um grande mistério. De repente e sem explicação, em Gênesis 3 aparece no Jardim do Éden um personagem totalmente maligno, brilhante e inteligente, dissimulado numa serpente. O princípio das origens, tão forte em nossas mentes, exige uma explicação. Mas a verdade é que o Livro nos frustra. Igualmente, quando chegamos ao que é negativo nos cosmos, algo escuro e sem forma, a Bíblia não nos dá nenhuma informação. Eis algumas das coisas ocultas que pertencem a Deus.” (Waltke, Creation and Chaos, p. 52). Embora eu não concorde com a escolha das palavras do Dr. Waltke (“o livro nos frustra”), concordo com sua posição de que Gênesis não nos diz aquilo que queremos aprender.
7 Wakeman, como citado por Waltke, Creation and Chaos , p. 6
8 Waltke mostra as semelhanças entre a cosmogonia bíblica e os mitos da criação do antigo Oriente Próximo:
Primeiro, pela comparação do Salmo 74:13-14 com o Texto Ugarítico 67:I: 1-3 (Waltke, p. 12). Salmo 74:13-14 “Tu, com o teu poder, dividiste o mar; esmagaste sobre as águas a cabeça dos monstros marinhos. Tu espedaçaste a cabeça do crocodilo e o deste por alimento às alimárias do deserto.” Texto 67: I . 1-3, 27-30: “Quando esmagaste Lotan (Leviathan) o diabólico dragão, também destruíste o dragão disforme, o poderoso de 7 cabeças...”
Segundo, pela comparação de Isaías 27:1 com o Texto Ugarítico ‘nt:III: 38-39 (Waltke, p. 13): Isaías 27:1 “Naquele dia, o Senhor castigará com a sua dura espada, grande e forte, o dragão, serpente veloz, e o dragão, serpente sinuosa, e matará o monstro que está no mar.” Texto ‘ni:III: 38-39: “O dragão disforme, o poderoso de 7 cabeças.”
9 Cf. Waltke, Creation and Chaos, p. 33,35. Realmente, a semelhança na forma entre o texto bíblico do Pentateuco e os textos antigos do Oriente Próximo acaba sendo uma bênção para aqueles que sustentam a autoria (Mosaica) unificada:
“Kitchen comparou o Pentateuco com os antigos textos do Oriente Próximo e descobriu que os mesmos traços usados pelos críticos como uma varinha de condão para dividir o Pentateuco estavam presentes nesses textos, escritos na rocha sem nenhuma pré-história.” Waltke, pp. 41-42.
10 Ibid, p. 45.
11 “A explicação mais comum dos estudiosos que consideram o mundo como um sistema fechado, sem intervenção divina, é a de que Israel apropriou-se dessas mitologias, desmistificou-as, purificou-as de seu politeísmo ordinário e grosseiro, e gradualmente adaptou-as à sua própria teologia melhor desenvolvida.” Ibid., p. 46.
12 Merrill F. Unger, Archaeology and the Old Testament, p. 37, citado por Waltke, p. 46.
13 “Em Canaã, na época da conquista, cada cidade tinha seu próprio templo dedicado a alguma força da natureza. O nome Jericó deriva da palavra hebraica yerah, que significa “lua”, por seus habitantes adorarem a lua, o deus “Yerach”. Igualmente, no outro lado da cadeia central de montanhas da Palestina, encontramos a cidade de Bete-Semes, que significa “Templo do Sol”, pois Shamash, o deus sol, era adorado lá.” Waltke, p. 47.
14 Sarna, Understanding Genesis, p. 7, como citado por Waltke, p. 47.
15 “O conhecimento existente a respeito das práticas diárias de adoração dos deuses egípcios é muito pequeno; e, apesar dos propósitos e intenções, pouco ou nada é conhecido de fontes documentadas de seus assuntos metafísicos. É óbvio, no entanto, que as 22 províncias egípcias tinham, cada uma, seus respectivos centros religiosos e tótens de animais ou de plantas. É precisamente os atributos dessas deidades que estão envolvidos nas pragas; mas, se cada praga foi idealizada para atingir a área específica de um ou outro dos deuses egípcios, não se pode estabelecer com certeza.” W. White, Jr. “The Plagues of Egypt,” The Zondervan Pictorial Encyclopedia of the Bible (Grand Rapids: Zondervan, 1975, 1976), IV, p. 806.
16 Cf. Waltke, pp. 21-25.
17 Por exemplo, E. J. Young, In the Beginning (Carlisle; Pennsylvania: Banner of Truth Trust, 1976), p. 20 e ss.
18 “Mas o que diremos sobre o estado informe e não criado, as trevas e o abismo de Gênesis 1:2? Aqui chegamos a um grande mistério, pois a Bíblia nunca disse que Deus os trouxe à existência pela Sua Palavra. O que podemos dizer sobre eles?” Bruce Waltke, p. 52.
19 Adaptado de Waltke, p. 18.
Nas últimas semanas, um caso assustador foi notícia dos jornais. Suas implicações são quase inacreditáveis. O processo judicial envolvia um senhor de idade que aparentemente estava um pouco senil, e que também fazia hemodiálise. A família decidiu que ele não tinha mais serventia, e que, se ainda estivesse lúcido, desejaria dar cabo da sua existência miserável. Não fosse pelo protesto dos enfermeiros, os quais tinham se afeiçoado ao homem, talvez hoje ele estivesse morto.
Vivemos numa época assustadora. Temos nas mãos recursos tecnológicos e biológicos impressionantes, mas nenhuma base sólida, ética ou moral, para determinar como eles devem ser utilizados. Não só temos usado esses recursos de forma conveniente e barata para matar uma criança ainda no ventre da mãe, como também há uma grande discussão sobre o registro de uma certidão de vida, declarando um bebê legalmente vivo, da mesma forma que existe o registro de uma certidão de óbito quando um bebê é declarado legalmente morto. A certidão só seria emitida após nascimento da criança, quando uma bateria de testes poderia ser feita. Qualquer bebê “inferior”, ou potencialmente não produtivo, seria simplesmente rejeitado e declarado “não vivo”, e então eliminado. Também sei que em alguns lugares do mundo o suicídio não é considerado crime, os que querem cometê-lo simplesmente são aconselhados — mas não convencidos de seus erros!
Nestes tempos em que o poder sobre a vida e a morte parece estar nas mãos dos homens como jamais esteve, nossa sociedade se encontra num vácuo moral, tomando decisões desse tipo. As antigas questões filosóficas sobre o significado da vida não são mais acadêmicas e intelectuais — são questões práticas que precisam ser respondidas.
Por tudo isso, nunca os versículos de Gênesis 1 e 2 foram tão importantes quanto agora. Neles encontramos o significado do homem. Assim, dei a esta mensagem o título de O Significado do Homem: Seu Dever e Seu Deleite. Para entender de forma correta a passagem, é preciso compreender os princípios eternos que devem determinar nossas decisões éticas e morais. Somado a isso, somos relembrados mais uma vez sobre o que realmente faz nossa vida valer a pena.
Embora já tenhamos tratado dos seis dias da criação de maneira geral, é importante entender a relação existente entre os três primeiros capítulos de Gênesis. O capítulo 1 resume a criação de forma cronológica (na verdade, aqui também precisamos incluir os versículos 1 a 3 do capítulo dois).
Deus criou os céus e a terra e toda a vida em seis dias, e no sétimo, descansou. O homem é descrito como a coroa da criação de Deus. A fim de manter o formato cronológico, apenas uma descrição geral da criação do homem é feita nos versículos 26 a 31.
O capítulo dois volta ao assunto da criação do homem com um relato mais pormenorizado. Longe de ser uma contradição, como muitos estudiosos sugerem, o capítulo dois complementa com mais detalhes o capítulo um. Enquanto no primeiro capítulo está escrito que Deus criou o homem, homem e mulher (1:26-27), no segundo, a descrição é mais ampla. No primeiro capítulo, todas as plantas são dadas ao homem como alimento (1:29-30), no capítulo dois ele é colocado num adorável jardim (2:8-17). No capítulo um está escrito que o homem deve dominar sobre todas as criaturas de Deus (1:26-28), no segundo, ele recebe a tarefa de dar nomes a essas criaturas (2:19-20). Contradições entre esses dois capítulos só podem ser coisas da imaginação, pois fica claro que o escritor do primeiro capítulo pretendia preencher os detalhes no segundo.
Além disso, o capítulo dois serve como introdução e preparação para o relato da queda. O capítulo dois dá o contexto da queda do homem descrita no capítulo três. O jardim e as duas árvores, a árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal (2:9), são apresentados a nós. A mulher que estava para ser enganada também é apresentada no capítulo dois. Sem o capítulo dois, o capítulo um seria breve demais e o capítulo três chegaria sem nenhuma preparação.
Se o capítulo um está disposto de forma cronológica — numa sequência de sete dias, o capítulo dois não é cronológico, mas lógico. É claro que os acontecimentos do capítulo dois se encaixam na ordem do capítulo um, mas ele é disposto de forma diferente. Se no capítulo um a criação é vista através de uma lente grande-angular, o capítulo dois é visto através de uma teleobjetiva. No capítulo um, o homem se encontra no topo da pirâmide, como coroa da atividade criativa de Deus. No capítulo dois, ele está no centro das ações e do interesse de Deus.
Uma vez que o capítulo dois tem como fundamento os detalhes básicos dados em 1:26-31, vamos começar examinando estes versículos com mais cuidado. O homem, como já dissemos, é a coroa do plano criativo de Deus. Isso fica claro em vários pontos.
Primeiro, o homem é a última das criaturas de Deus. O curso todo da narrativa é uma preparação para a criação do homem. Segundo, só o homem é criado à imagem de Deus. Embora haja muita discussão sobre o que isso significa, várias coisas estão implícitas no próprio texto. O homem é criado à imagem e semelhança de Deus em sua sexualidade.
Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. (Gênesis 1:27)
Isso não quer dizer que Deus seja homem ou mulher, mas que Ele é tanto unidade como diversidade. No casamento, o homem e a mulher se tornam um, e mesmo assim são distintos um do outro. A unidade na diversidade exibida na relação do homem com sua esposa reflete uma faceta da personalidade de Deus.
O homem também, de alguma forma, é como Deus naquilo que o distingue do mundo animal. O homem, diferente dos animais, é feito à imagem e semelhança de Deus. O que o distingue dos animais, portanto, deve ser uma parte do seu reflexo de Deus. Sua capacidade de raciocínio, de comunicação e de tomada de decisões morais faz parte dessa distinção.
Além disso, o homem reflete a Deus em seu domínio sobre a criação. Deus é o Regente Soberano do universo. Ele delegou uma pequena porção da Sua autoridade ao homem no domínio da criação. Neste sentido, também, o homem reflete a Deus.
Observe, ainda, que são o homem e a mulher que dominam: “... dominai sobre...” (Gênesis 1:26, cf. v. 28).
Dominai se refere a ambos, não só às pessoas do sexo masculino que Deus fez. Embora Adão tenha a função de liderança (como evidenciado pela sua prioridade na criação1, por sua esposa ter origem no seu ser2 e por ele ter dado o nome a ela3), a função de Eva deve ser a de auxiliadora do seu marido. Nesse sentido, ambos devem dominar sobre a criação de Deus.
Apenas mais uma observação. Parece haver pouca dúvida de que na provisão dada por Deus ao homem como alimento, só vegetais foram incluídos naquela época:
E disse Deus ainda: Eis que vos tenho dado todas as ervas que dão semente e se acham na superfície de toda a terra e todas as árvores em que há fruto que dê semente; isso vos será para mantimento. E a todos os animais da terra, e todas as aves dos céus, e a todos os répteis da terra, em que há fôlego de vida, toda erva verde lhes será para mantimento. E assim se fez. (Gênesis 1:29-30)
Somente depois da queda, e talvez do dilúvio, a carne foi introduzida como alimento para o homem (cf. Gênesis 9:3-4). O derramamento de sangue só teria sentido depois da queda, como um retrato da redenção que viria pelo sangue de Cristo. Está escrito que no milênio:
O lobo e o cordeiro pastarão juntos, e o leão comerá palha como o boi; pó será a comida da serpente. Não se fará mal nem dano algum em todo o meu santo monte, diz o SENHOR. (Isaías 65:25)
Se compreendo bem as Escrituras, o Milênio será o retorno das coisas ao que eram antes da queda. Assim, no paraíso do Éden, Adão e Eva, e o reino animal, eram todos vegetarianos. Como, então, alguém pode falar em “sobrevivência do mais forte” antes da criação de todas as coisas e da queda do homem?
No entanto, o mais importante é o fato de a dignidade e o valor do ser humano não serem imputados ao homem por ele mesmo, esses valores são intrínsecos a ele por ter ele sido criado à imagem de Deus. O valor do homem está diretamente relacionado à sua origem. Não é à toa que hoje estejamos ouvindo propostas éticas e morais tão assustadoras.
Qualquer opinião a respeito da origem humana que não veja o homem como produto do planejamento e do desígnio divino, não pode atribuir a ele o valor que Deus lhe deu. Colocando de outra forma, nossa avaliação sobre o homem é diretamente proporcional à nossa opinião sobre Deus.
Amigo, não sou profeta, mas me arrisco a dizer que nós, que somos chamados pelo nome de Cristo, num futuro bem próximo teremos de nos levantar e ser contados. Aborto, eutanásia e bioética, para citar apenas algumas questões, vão exigir padrões éticos e morais. O sólido princípio sobre o qual as nossas decisões devem ser tomadas, em minha opinião, é o fato de todos os homens terem sido criados à imagem de Deus.
Sob essa luz, agora posso ver porque nosso Senhor conseguiu resumir todo o Antigo Testamento em apenas dois mandamentos:
Respondeu-lhe Jesus: Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento. Este é o grande e primeiro mandamento. O segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo (Mateus 22:37-40)
A atitude do futuro parece ser a de amar só o “próximo” que contribui para a sociedade, só aquele que pode ser considerado de algum interesse. Como isso é diferente do sistema de valores do nosso Deus, que disse:
O Rei, respondendo, lhes dirá: Em verdade vos afirmo que, sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes (Mateus 25:40).
Na minha opinião, é aqui onde nós cristãos seremos colocados à prova. Algumas pessoas estão realmente sugerindo que aqueles a quem nosso Senhor chamou de “pequeninos” são justamente os quais devem ser eliminados da sociedade. Queira Deus nos ajudar a ver que a dignidade do homem é aquela que é divinamente estabelecida.
Enquanto Gênesis um descreve a progressão do caos para o cosmos, ou da desordem para a ordem, o capítulo dois segue um padrão diferente. Talvez a linha literária que permeia toda a passagem seja a da atividade criativa de Deus em suprir as coisas que estão ausentes.
O versículo 4 serve como introdução dos versículos restantes4. O versículo 5 nos informa o que está faltando e é suprido nos versículos 6 e 7: faltam os arbustos, as plantas, a chuva e o homem. Essas ausências são supridas pela neblina (versículo 6) e pelos rios (versículos 10 e 14), pelo homem (versículo 7) e pelo jardim (versículos 8 e 9).
A ausência dos versículos 18 a 25 é simplesmente afirmada: “não se achava uma auxiliadora que lhe fosse idônea” (cf. versículos 18, 20). Essa auxiliadora é providenciada de uma bela forma na última parte do capítulo dois.
Além disso, preciso enfatizar que aqui Moisés não tinha intenção de nos dar uma narrativa dos acontecimentos em ordem cronológica, mas numa sequência lógica5. A criação do homem e da mulher e o contexto onde estão inseridos descrevem melhor sua intenção. Eles vêm a ser o fator chave na queda ocorrida no capítulo três.
Embora ainda não tivesse chovido, Deus providenciou a água necessária à vida das plantas. “Mas uma neblina subia da terra e regava toda a superfície do solo” (Gênesis 2:6).
Existe alguma discussão sobre a palavra “neblina” (‘ed). Ela poderia significar névoa ou neblina, como alguns afirmam6. A Septuaginta usou a palavra grega pege, que significa “nascente”. Alguns acham que a palavra hebraica seja derivada de uma palavra suméria, referindo-se a águas subterrâneas7. Pode ser que essas nascentes afluíssem para o solo e a vegetação fosse aguada por irrigação ou por canais. Isso poderia explicar, em parte, o trabalho de Adão na manutenção do jardim.
Providenciada a água, Deus criou o jardim, o qual devia ser o lugar de habitação do homem e objeto do seu cuidado. O jardim era bem provido com muitas árvores, as quais proporcionavam beleza e alimento.
Do solo fez o Senhor Deus brotar toda sorte de árvores agradáveis à vista e boas para alimento; e também a árvore da vida no meio do jardim e a árvore do conhecimento do bem e do mal. (Gênesis 2:9)
Especificamente, duas árvores são mencionadas: a árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal. Esta última como sendo a única coisa proibida ao homem.
E o Senhor Deus lhe deu esta ordem: De toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que dela comeres, certamente morrerás. (Gênesis 2:16-17)
É interessante notar que, aparentemente, só Adão foi informado por Deus de que o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal não podia ser comido. Não se pode dizer com certeza como ele transmitiu a Eva o mandamento de Deus. Será que isso explicaria a avaliação incorreta dela em 3:2-3?
E foi nesse paraíso que o homem foi colocado8. Embora certamente ele se regozijasse nesse país das maravilhas, ele também tinha de cultivá-lo. Vamos dar uma olhada novamente no versículo 5:
Não havia ainda nenhuma planta do campo na terra, pois ainda nenhuma erva do campo havia brotado; porque o SENHOR Deus não fizera chover sobre a terra, e também não havia homem para lavrar o solo. (Gênesis 2:5)
Ao ser colocado no jardim, Adão teve de trabalhar lá: “Tomou, pois, o SENHOR Deus ao homem e o colocou no jardim do Éden para o cultivar e o guardar” (Gênesis 2:15).
Em 2:7, a descrição da criação de Adão é mais completa do que no capítulo um. Ele foi formado9 do pó da terra. Embora isso seja um fato humilhante, também fica claro que a origem do homem não é do mundo animal, nem que ele é criado da mesma forma que os animais. Em parte, a dignidade de Adão provém do fato de que seu fôlego de vida é soprado por Deus (versículo 7).
Aquele jardim não era um lugar imaginário. Cada parte da descrição daquele paraíso nos leva a pensar nele como um jardim de verdade, situado em alguma região geográfica específica. Existem pontos de referência definidos. Quatro rios são mencionados, dois deles conhecidos ainda hoje. Não deveríamos ficar surpresos com as mudanças que devem ter ocorrido, principalmente depois do evento cataclísmico do dilúvio, o que tornaria impossível sua localização exata.
Para mim, uma das coisas mais interessantes é que o paraíso do Éden foi um lugar um pouco diferente daquilo que imaginamos. Pra começar, foi um lugar de trabalho. Os homens modernos imaginam o paraíso como uma rede pendurada entre dois coqueiros numa ilha deserta, onde nunca terão de encarar o trabalho. Além disso, o céu é tido como o fim de todas as proibições. Muitas vezes, ele também é confundido com hedonismo. É autocentrado e orientado para o prazer. Embora o estado de Adão fosse de beleza e felicidade, não se pode pensar que tenha sido de prazer irrestrito. O fruto proibido também fazia parte do Paraíso. O céu não é a experiência de todos os desejos, e sim a satisfação de desejos benéficos e saudáveis.
A subserviência não é um conceito inédito no Novo Testamento. Trabalho significativo proporciona satisfação e objetivo na vida. Deus descreveu Israel como um jardim cultivado, uma vinha (Isaías 5:1-2 ss). Jesus falou de Si mesmo como a Videira e nós como os ramos. O Pai cuida da Sua vinha com ternura (João 15:1 e ss). Paulo descreveu o ministério como o trabalho de um lavrador (2 Timóteo 2:6).
Embora a igreja do Novo Testamento seja melhor descrita como um rebanho, ainda assim a imagem do jardim não é inapropriada. Há um trabalho a ser feito pelo filho de Deus. E esse trabalho não é penoso, não é um dever a ser cumprido com relutância. É uma fonte de alegria e satisfação. Hoje em dia, muita gente não tem senso real de sentido e propósito porque não faz o trabalho designado por Deus.
Resta ainda uma ausência. Já existe água adequada, a bela e generosa provisão do jardim, e um homem para cultivá-lo. No entanto, ainda não há uma companhia apropriada para o homem. Essa necessidade se encontra nos versículos 18 a 25.
O jardim, com seus prazeres e delícias, e uma atividade significativa, não era suficiente se o homem não pudesse compartilhá-lo com alguém. Deus ia providenciar aquilo de que Adão mais precisava.
Disse mais o SENHOR Deus: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma auxiliadora que lhe seja idônea. (Gênesis 2:18)
A companheira de Adão devia ser uma criação muito especial, uma “auxiliadora idônea para ele” (versículo 18). Ela devia ser uma “auxiliadora”, não uma escrava, não uma inferior. A palavra hebraica ezer é muito interessante. Essa era uma palavra que Moisés obviamente gostava, pois Êxodo 18:4 diz que este foi o nome dado por ele a um de seus filhos.
E o outro, Eliézer (El = Deus), pois disse: o Deus de meu pai foi a minha ajuda e me livrou da espada de Faraó. (Êxodo 18:4)
Em Deuteronômio, Moisés ainda usa mais três vezes a palavra ezer (33:7, 26, 29), referindo-se a Deus como auxiliador do homem. O mesmo acontece nos Salmos (20:2, 33:20, 70:5, 89:19, 115:9, 121:1-2, 124:8, 146:5).
No Antigo Testamento, o sentido mais frequente em que a palavra é empregada não implica, absolutamente, em inferioridade. De modo consistente com seu uso, Deus está auxiliando o homem por meio da mulher. Que belo pensamento. Como isso é superior a algumas concepções humanas.
Por isso, Eva é também uma auxiliadora que “corresponde a” Adão. Certa tradução diz: “...Farei uma auxiliadora como ele”10.
Isso é justamente o oposto daquilo que consideramos a esposa perfeita — alguém que seja exatamente como nós. Em muitos casos, a incompatibilidade é designação de Deus. Como Dwight Hervey Small bem observou:
A incompatibilidade é um dos propósitos do casamento! Fardos e conflitos são designados por Deus como lições para o crescimento espiritual. Eles existem para que haja submissão aos santos e elevados propósitos11.
Assim como Eva foi feita para corresponder a Adão de forma física, ela também o completava social, intelectual, espiritual e emocionalmente.
Assim, quando aconselho àqueles que estão planejando se casar, não procuro descobrir o maior número possível de semelhanças entre eles. Pelo contrário, eu me preocupo em fazer com que cada um tenha uma visão precisa daquilo que o outro realmente é, e que eles estejam comprometidos com o fato de Deus estar unindo-os de forma permanente. O reconhecimento de que Deus fez o homem e a mulher propositadamente diferentes, e a determinação de atingir a unidade na diversidade, é essencial para um casamento saudável.
Antes de criar a contraparte de Adão, primeiramente Deus aguçou seu apetite. Os animais criados por Ele foram levados a Adão para que ele lhes desse nome. Dar nome aos animais refletia o domínio de Adão sobre eles, como intentado por Deus (cf. 1:28). Isso deve ter envolvido um estudo cuidadoso por parte de Adão para registrar as características peculiares de cada animal12.
Esse processo deve ter levado algum tempo. Adão deve ter observado que nenhuma daquelas criaturas poderia preencher o vazio da sua vida. Além disso, gostaria de usar um pouco de imaginação santa para supor que ele também observou que cada um deles tinha uma companheira, uma contraparte maravilhosamente concebida. Com certeza, ele notou que só ele não tinha ninguém.
E foi nesse instante, de profunda necessidade e desejo, que Deus colocou Adão em sono profundo13, e da sua costela e carne14 formou a mulher15. Então, Deus a deu de presente a ele.
Como é empolgante a resposta de Adão:
E disse o homem: Esta, afinal, é osso dos meus ossos e carne da minha carne; chamar-se-á varoa, porquanto do varão foi tomada. (Gênesis 2:23)
Gosto da maneira como a RVS (Revised Standard Version) traduz a resposta inicial de Adão: “afinal...”16 (em português, a versão Almeida Revista e Atualizada - ARA)
Nessa expressão há uma mistura de alívio, êxtase e deliciosa surpresa. “Esta, afinal (pois Adão ainda não lhe tinha dado nome), é osso dos meus ossos e carne da minha carne” (versículo 23a). O nome da companheira de Adão é mulher. A tradução em inglês capta bem o jogo de sons semelhantes. Em hebraico, a pronúncia para homem seria ‘ish; e para mulher, ‘ishshah. Embora os sons sejam semelhantes, a raiz das duas palavras é diferente. Apropriadamente, talvez ‘ish venha de uma raiz paralela árabe, transmitindo a ideia de “exercer o poder”, enquanto o termo ‘ishshah talvez seja derivado de um paralelo árabe, significando “ser suave”17.
O comentário divinamente inspirado do versículo 24 é muito importante:
Por isso, deixa o homem pai e mãe e se une à sua mulher, tornando-se os dois uma só carne. (Gênesis 2:24)
De acordo com este texto, é imperativo que o homem deixe mãe e pai e se una à sua mulher. Qual é a relação deste mandamento de deixar e se unir com a criação da mulher? O versículo 24 começa com “por isso...”. Por isso, o quê? Só podemos entender a razão se explicarmos o mandamento. O homem deve deixar seus pais, não no sentido de evitar sua responsabilidade para com eles (cf. Marcos 7:10-13, Efésios 6:2-3), mas no sentido de ser dependente deles. Ele precisa parar de viver sob a sua liderança e começar a agir sozinho como cabeça de um novo lar18.
A mulher não recebe o mesmo mandamento porque simplesmente é transferida de uma liderança para outra. Antes ela estava sujeita ao pai, agora está unida ao marido. O homem, no entanto, tem uma transição mais difícil. Ele, como filho, era dependente dos pais e submisso a eles.
Quando um homem se casa, ele precisa passar pela transição radical de um filho dependente e submisso para um líder independente (dos pais), que age como cabeça do seu lar.
Como muitos observam, a relação de marido e mulher é permanente, enquanto a relação de pai e filho é temporária. Mesmo se os pais não estiverem dispostos a encerrar essa relação, o filho é responsável por fazê-lo. Deixar de agir assim é rejeitar o tipo de vínculo necessário que ele deve ter com sua esposa.
Agora, talvez estejamos em posição de ver a relação desse mandamento com o relato da criação. Por que ele é mencionado aqui em Gênesis? Antes de tudo, não existem pais dos quais Adão e Eva tenham nascido. A origem de Eva vem diretamente do seu marido, Adão. A união ou vínculo entre ele e sua esposa é a união que vem de uma só carne (a carne de Adão) e se torna uma só carne (na união física). Esse vínculo é maior do que aquele entre pai e filho. Uma mulher é, naturalmente, o produto dos seus pais, tal como o homem é dos seus. No entanto, a união original não envolvia pais e a esposa era parte da carne do seu marido. Portanto, este primeiro casamento é evidência da primazia da relação marido e mulher sobre a relação pai e filho.
O último versículo não é incidental. Ele nos diz muita coisa que precisamos saber. “Ora, um e outro, o homem e sua mulher, estavam nus e não se envergonhavam” (Gênesis 2:25).
Sabemos, por exemplo, que o lado sexual dessa relação era uma parte da vida no paraíso. O sexo não teve origem com ou depois da queda. A procriação e a intimidade física foram intencionadas desde o princípio (cf. 1:28). Também vemos que o sexo podia ser apreciado ao máximo no plano divino. Desobediência a Deus não aumenta o prazer sexual; ela o diminui. Hoje, o mundo quer acreditar que inventou o sexo e que Deus apenas tenta impedi-lo. No entanto, sexo, sem Deus, não é o que poderia ou deveria ser.
Ignorância, se me perdoam dizer, é felicidade. Em nossa geração somos legais, ou se preferir, sofisticados, só quando sabemos (por experiência) tudo o que há para saber sobre sexo. Somos levados a crer que, “aqueles que não fizeram sexo antes do casamento são ingênuos demais”. Há muitas coisas que é melhor não saber. O sexo nunca foi tão apreciado como foi na doce ignorância.
A revelação posterior lança muita luz sobre este texto. Nosso Senhor, de forma significativa, cita os capítulos um e dois de Gênesis como se fossem um só relato (Mateus 19:4-5), um golpe fatal nos críticos do documento original.
A origem divina do casamento significa que ele não é mera invenção social (ou convenção), mas instituição divina para o homem. Quando Deus une um homem e uma mulher em casamento, a união é permanente: “O que Deus uniu, não o separe o homem” (Mateus 19:6).
O fato de Adão ter precedido sua esposa na criação e de Eva ser proveniente dele também estabelece as razões pelas quais o marido deve exercer a liderança no casamento (cf. 1 Coríntios 11:8-9, 1 Timóteo 2:13). O papel das mulheres na igreja não é apenas ideia de Paulo, restrita ao tempo e à cultura dos cristãos de Corinto. O papel bíblico da mulher é estabelecido no relato bíblico da criação (cf. também 1 Coríntios 14:34).
Tendo considerado a passagem por partes, vamos agora voltar nossa atenção para ela como um todo. Nenhuma outra passagem, em toda a Bíblia, define de forma tão sucinta as coisas realmente importantes da nossa existência. O significado da vida só pode ser compreendido quando relacionado ao Deus que criou o homem à Sua imagem e semelhança. Embora esta imagem tenha sido distorcida por causa da queda, aqueles que estão em Cristo são renovados à imagem dEle:
… e vos renoveis no espírito do vosso entendimento, e vos revistais do novo homem, criado segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade (Efésios 4:23-24).
… e vos revestistes do novo homem que se refaz para o pleno conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou (Colossenses 3:10).
Além disso, o sentido da vida não é apenas encontrado na dignidade dada por Deus ao homem ao criá-lo à Sua imagem, mas no trabalho dado a ele. Os homens, com frequência, vêm o trabalho como maldição. Embora tenha sido afetado pela queda (Gênesis 3:17-19), o trabalho foi dado antes dela, e é um canal de bênçãos e de realizações quando feito como se fosse para o Senhor (cf. Colossenses 3:22-24).
Finalmente, a instituição do casamento é dada por Deus para enriquecer profundamente a nossa vida. O trabalho que temos de fazer se torna muito mais rico e produtivo quando o dividimos com a contraparte que nos é dada por Deus. Eis, então, o que realmente importa na vida — reconhecer a nossa dignidade divinamente ordenada, o nosso dever e o nosso deleite. O nosso valor, o nosso trabalho e a nossa esposa são todos fontes de grande bênção quando são “no Senhor”.
Tradução e Revisão: Mariza Regina de Souza
1 1 Timóteo 2:13
2 1 Coríntios 11:8,12
3 Gênesis 2:23
4 “Hoje é um fato bem conhecido que o livro de Gênesis foi dividido em 10 seções pelo próprio autor, para cada uma das quais ele dá o título de “história” (toledo‚th); cf. 5:1; 6:9; 10:1; 11:10, 27; 25:12, 19; 36:1, (9); 37:2. Só isso, mais o uso de um número redondo - dez, já seria suficiente para se dizer que, aqui, a expressão “descendentes de” também deve ser um cabeçalho. Em todos os outros exemplos de uso em outros livros pode-se observar a mesma coisa; cf. Nm. 3:1; Rt 4:18; 1 Cr. 1:29; onde é sempre um cabeçalho.” H. C. Leupold, Exposition of Genesis (Grand Rapids: Baker Book House, 1942), I, p. 110.
5 “O versículo 4b nos leva à época da criação, mais especificamente, ao período anterior ao início do terceiro dia, e chama nossa atenção para certos detalhes que, sendo detalhes, dificilmente teriam sido inseridos no capítulo um: o fato de que certos tipos de planta, isto é, as espécies que requerem maior cuidado e atenção por parte do homem, ainda não tinham brotado. Aparentemente, toda a obra do terceiro dia se encontra na mente do escritor.” Ibid., p.112.
“Insisto em dizer que o primeiro capítulo deve ser entendido de forma cronológica. O que é visto pela ordem de desenvolvimento e pela sequência de pensamento. Existe também uma ênfase cronológica – primeiro dia, segundo, e assim por diante. Isto não está no segundo capítulo de Gênesis. Ali, em vez de fazer uma exposição em ordem cronológica, o Senhor está expondo o assunto passo a passo em preparação para o relato da tentação.” E. J. Young, In The Beginning, (Carlisle, Pennsylvania, The Banner of Truth Trust, 1976), p. 70.
6 Esse parece ser o ponto de vista Leupold, I, pp. 113-114.
7 “O que deve entender por “ed”? Não neblina! A palavra aparentemente tem relação com uma palavra suméria. Ela parece se referir a águas subterrâneas, e o que temos aqui ou é água irrompendo de algum lugar abaixo do solo ou talvez o transbordamento de um rio. Não acho que dê para fazer uma afirmação categórica quanto a isso.” Young, pp. 67-68. Cf. Também Derek Kidner, Genesis (Chicago: InterVarsity Press, 1967), pp. 59-60.
8 “A palavra “Éden”, em hebraico, pode significar deleite ou prazer. Não estou certo de que aqui o significado seja esse. Existe uma palavra suméria que quer dizer estepe, planície, vasta planície, e foi a leste desta planície que Deus plantou o jardim. Sem ser categórico, em minha opinião, é isso o que “Éden” significa. Assim, o jardim é plantado.” Young, p. 71.
9 “O verbo aqui empregado está mais de acordo com o caráter “Yahweh” de Deus; yatsar significa “moldar” ou “formar”. É a palavra que descreve especificamente a atividade do oleiro (Jr. 18:2 e ss). A ideia é ressaltar o cuidado e a atenção pessoal dados pelo oleiro ao seu trabalho. Deus deixa sinais do Seu interesse no homem, Sua criatura, na maneira como o forma”. Leupold, p. 115.
10 Cf. Leupold, p. 129
11 Dwight Hervey Small, Design For Christian Marriage (Old Tappan, New Jersey: Fleming H. Revell, 1971), p. 58. Em outro lugar Small observa: “Como Elton Trueblood sugere, um casamento de sucesso não é aquele no qual duas pessoas, que combinam perfeitamente, encontram um ao outro e seguem em frente sempre felizes, por causa de sua afinidade inicial. É, em vez disso, um sistema por meio do qual pessoas que são pecaminosas e briguentas são então alcançadas por um sonho e um propósito maior do que eles mesmos, que trabalham ao longo dos anos, apesar de repetidos desapontamentos, para tornar o sonho realidade.” p. 28.
12 “Pois a expressão dar nomes, no uso hebraico da palavra ‘nome’, envolve uma designação expressiva da natureza ou caráter daquele que é nomeado. Esta não era uma fábula tosca, onde, segundo a concepção hebraica, exclamações acidentais ao avistar uma nova e estranha criatura eram guardadas para dar nomes no futuro.” Leupold, p. 131.
13 “Tardemah é, de fato, um “sono profundo”, não um estado de êxtase, como interpretaram os tradutores gregos; também não é um “transe hipnótico” (Skinner), pois não encontramos qualquer sinal de hipnose nas Escrituras. Um “transe” talvez seja possível. A raiz, no entanto, é a mesma do verbo usado em referência a Jonas, quando ele dormia profundamente durante a tempestade.” Ibid, p. 134.
14 “A palavra tsela traduzida por “costela”, realmente tem esse significado (contra V. Hofman), embora não seja necessário pensar apenas em osso puro; pois, sem dúvida, osso e carne foram usados por aquela de quem o homem disse: “osso dos meus ossos e carne da minha carne” (v. 23). Ibid.
15 “A atividade de Deus ao moldar a costela tirada do homem é descrita como uma construção (wayyi ‘bhen). Antes de ser indicação da obra de um autor diferente, o verbo desenvolve a situação de forma mais apropriada. Não teria sido adequado o uso de yatsar para ‘formar’, pois é um verbo que se aplica no caso do barro, não da carne. “Construir” aplica-se à modelagem de uma estrutura importante; que envolve esforço na construção.” Ibid, p. 135.
16 Ou, como Leupold sugere “Agora, finalmente” (p. 136).
17 Leupold, pp. 136-137.
18 Creio que é preciso ter muito cuidado na aplicação do princípio de Bill Gothard “corrente de conselho”. Embora o sensato procurará conselho, e alguns possam vir de seus pais, dependência é um perigo real. O problema não é tanto com o princípio, mas com a aplicação.
Se a queda do homem tivesse ocorrido em nossos dias, seria difícil imaginar as consequências. Suponho que a União Americana pelas Liberdades Civis imediatamente entraria com uma ação — contra Deus, e em defesa de Eva e Adão, seu marido (a ordem dos dois não é acidental). O processo provavelmente seria constituído com base na alegação de despejo ilegal. “Afinal de contas”, diriam, “o suposto ato pecaminoso foi consumado na privacidade do jardim, por duas pessoas adultas”. Mas, acima de tudo, diriam que a punição era muito maior que o crime (se, de fato, houve algum). Estaria Deus realmente falando sério? Só por causa de uma mordida num “fruto proibido”, o homem e a mulher são despejados e sofrerão as consequências disso por toda a vida? Mais ainda, só por causa desse único ato, o mundo inteiro e a humanidade toda continuarão sofrendo esses males, até mesmo nós?
Aqueles que não levam a Bíblia a sério, ou literalmente, têm um pouco de dificuldade com esta passagem. Eles simplesmente tratam o terceiro capítulo de Gênesis como se fosse lenda. Para eles, este capítulo é apenas uma história simbólica que tenta explicar as coisas como elas são. Os detalhes da queda não apresentam nenhum problema, pois não são fatos reais, são pura ficção.
Os evangélicos talvez busquem conforto no fato de que isso aconteceu em algum lugar longínquo, há muito tempo. Já que a queda ocorreu há tantos anos, a nossa tendência é não pensar muito nas coisas que saltam aos olhos nesta passagem.
No entanto, muitas questões sérias surgem em relação ao relato da queda do homem. Por que, por exemplo, Adão tem de assumir a maior parte da responsabilidade, quando é Eva a personagem principal da narrativa? Colocando a questão em termos mais contemporâneos, por que Adão levou a culpa se foi Eva quem conversou com a serpente?
Além disso, precisamos pensar na gravidade das consequências do homem ter partilhado o fruto proibido à luz do que parece ser um fato tão insignificante. O que há de tão ruim nesse pecado para provocar uma resposta tão drástica de Deus?
A estrutura dos primeiros capítulos de Gênesis requer a descrição da queda do homem. Nos capítulos um e dois, lemos sobre a criação perfeita que Deus avaliou como sendo “boa” (cf. 1:10, 12, 18, 21). No capítulo quatro nos deparamos com ciúme e assassinato. Nos capítulos seguintes a raça humana vai de mal a pior. O que aconteceu? Gênesis três tem a resposta a essa pergunta.
Por isso, esse capítulo é importantíssimo, pois ele explica o mundo e a sociedade como os vemos atualmente. Ele nos fala sobre as estratégias de Satanás para seduzir os homens. Ele dá sentido às passagens do Novo Testamento que restringem as mulheres de assumir cargos de liderança na igreja. Ele nos desafia a pensar se ainda hoje “caímos”, ou não, à maneira de Adão e Eva.
Entretanto, este não é um capítulo que vamos nos arrepender de estudar. Ele descreve a entrada do pecado na raça humana e a gravidade das consequências da desobediência do homem. Contudo, além da pecaminosidade do homem e da pena que ela merece, há também a revelação da graça de Deus. Ele busca o pecador e providencia uma cobertura para o pecado. Ele promete um Salvador por meio do qual todo esse trágico incidente se transformará em triunfo e salvação.
De repente, sem mais nem menos, no versículo um aparece a serpente. Só estávamos preparados para encontrar Adão, Eva e o jardim, pois já os tínhamos visto antes. Sabemos que a serpente é uma das criaturas de Deus, por isso, devemos pensar nessa criatura literalmente. No entanto, mesmo sendo uma cobra da verdade, a revelação posterior nos diz que o animal estava sendo usado por Satanás, o qual é descrito como dragão e serpente (cf. 2 Coríntios 11:3 e Apocalipse 12:9, 20:2).
Embora tenhamos o desejo de saber as respostas para as questões relacionadas à origem do mal, não era intenção de Moisés falar sobre isso neste ponto. O que Deus quer nos mostrar é que somos pecadores. Ir mais além só desvia a nossa atenção da nossa responsabilidade pelo pecado.
Observe, em especial, a abordagem de Satanás. Ele não chega como um ateu, ou como alguém que, logo de cara, desafie a fé que Eva tem em Deus1. Às vezes, ele pode se manifestar como uma Madalyn Murray O’Hair (ativista ateísta americana, mais conhecida pela ação judicial que levou a um marco decisivo da Suprema Corte que terminou com a leitura oficial da Bíblia nas escolas públicas americanas), mas, o mais provável é que seja como um “anjo de luz” (2 Coríntios 11:14). Com frequência, ele está atrás do púlpito, segurando uma Bíblia nas mãos.
A forma como Satanás faz as perguntas é significativa. A palavra “assim” (versículo um) é cheia de insinuação. O efeito é este: “Deus não disse isso mesmo, disse?” A palavra Deus (“Deus disse” — versículo um) também é interessante. Até aqui Moisés vinha usando a expressão “O Senhor Deus”, Yahweh Elohim: “Mas a serpente, mais sagaz que todos os animais selváticos que o Senhor Deus tinha feito” (Gênesis 3:1). No entanto, quando Satanás se refere ao Senhor Deus ele o faz só como Deus. Essa omissão é indício da sua atitude rebelde diante do Deus todo-poderoso.
A abordagem inicial de Satanás é para enganar, não para negar; é para causar dúvida, não desobediência. Ele não chega até Eva como um inquiridor. Ele deliberadamente distorce o mandamento de Deus, mas de forma a sugerir: “Talvez eu esteja errado, por isso, corrija-me se me enganei”.
Ora, Eva nunca teria começado essa conversa. Era uma completa subversão da ordem de autoridade estabelecida por Deus. A ordem era: Adão, Eva, criatura. Adão e Eva deviam expressar o domínio de Deus sobre a Sua criação (1:26). Eva não teria hesitado em reprovar a conversa, não fosse a maneira pela qual Satanás a iniciou.
Se Satanás tivesse começado por desafiar o mandamento de Deus ou a fé que Eva tinha nEle, a escolha dela teria sido muito fácil. Mas o que ele fez foi distorcer o mandamento de Deus. Ele colocou a questão de forma a parecer estar mal informado e precisar de correção. Poucos de nós conseguem evitar a tentação de dizer aos outros que estão errados. E assim, por incrível que pareça, Eva começa a trilhar o caminho da desobediência supondo estar defendendo a Deus contra a serpente.
Reparou que Satanás não menciona nem a árvore da vida nem a árvore do conhecimento do bem e do mal? Que ataque sutil! Sua pergunta leva a árvore proibida ao centro do pensamento de Eva, mas sem qualquer menção a ela. Eva o faz. Com sua pergunta, Satanás não somente leva Eva ao diálogo, mas também tira seus olhos da generosa provisão de Deus e a faz pensar somente na Sua proibição. Satanás não quer que consideremos a graça de Deus, só que pensemos com rancor nas Suas proibições.
E é exatamente isso o que, imperceptivelmente, toma conta dos pensamentos de Eva. Ela mostra sua mudança de atitude em muitas “escorregadelas freudianas”. Embora Deus tenha dito: “de qualquer árvore do jardim comerás livremente” (2:16), ela diz: “do fruto das árvores do jardim podemos comer” (3:2). Ela omite “qualquer” e “livremente”, as duas palavras que ressaltam a generosidade de Deus.
Igualmente, ela tem uma impressão distorcida da severidade de Deus na proibição do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Ela repete Sua instrução com estas palavras: “dele não comereis, nem tocareis nele, para que não morrais” (3:3). Só que Deus tinha dito: “mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás” (2:17).
Enquanto exagera a proibição a ponto de até mesmo tocar na árvore ser uma coisa ruim, inconscientemente Eva subestima o julgamento de Deus omitindo a palavra “certamente” e deixando de dizer que a morte viria no dia da transgressão. Em outras palavras, ela ressalta a severidade de Deus, mas subestima o fato de que o julgamento vai ser executado em breve e com certeza.
O primeiro ataque de Satanás à mulher foi o de um observador religioso, tentando criar dúvidas sobre a bondade de Deus e fixando a atenção dela na proibição, não no que era dado livremente. O segundo ataque é ousado e descarado. Agora, em lugar da dúvida e logro há negação, seguida de calúnia ao caráter de Deus: “Então, a serpente disse à mulher: É certo que não morrereis” (3:4).
As palavras de advertência de Deus não devem ser entendidas como promessa certa de punição, mas como simples ameaça de uma divindade egocêntrica.
Talvez fiquemos admirados diante da negação categórica de Satanás, mas, em minha opinião, é exatamente isso o que enfraquece a oposição de Eva. Como alguém pode estar errado estando tão seguro? Hoje, meu amigo, muitas pessoas são convencidas mais pelo tom categórico de um professor do que pela fidelidade doutrinária do seu ensino. Dogmatismo não é garantia de precisão doutrinária.
O golpe fatal de Satanás está registrado no versículo cinco: “Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal” (3:5).
Muitos têm tentado determinar exatamente o que Satanás está oferecendo no versículo cinco. Ele garante que “se vos abrirão os olhos”. Em outras palavras, Adão e Eva estão vivendo num estado de incompletude, de inadequação. Mas, quando comerem o fruto, eles vão entrar num novo e mais sublime nível de existência: eles vão ser “como Deus”.2
Da forma como vejo a declaração de Satanás, ela é deliberadamente vaga e evasiva. Isso deve ter estimulado a curiosidade de Eva. Conhecer “o bem e o mal” talvez seja conhecer tudo3. No entanto, como ela poderia compreender os detalhes específicos da oferta se ainda nem sabia o que era o “mal”?
Um amigo meu diz que as mulheres são, por natureza, mais curiosas que os homens. Não sei se isso é verdade, mas sei que também sou muito curioso. O mistério da possibilidade de conhecer mais e de viver nalgum plano superior de vida com certeza é um convite à especulação e à reflexão.
Encontrei no livro de Provérbios esta ilustração sobre a curiosidade humana:
“A loucura é mulher apaixonada, é ignorante, e não sabe cousa alguma. Assenta-se à porta de sua casa, nas alturas da cidade, toma uma cadeira, para dizer aos que passam e seguem direito o seu caminho: Quem é simples, volte-se para aqui. E aos faltos de senso diz: As águas roubadas são doces, e o pão comido às ocultas é agradável”. (Provérbios 9:13-17)
A mulher tola é naturalmente ignorante e não sabe de nada, mas atrai suas vítimas oferecendo-lhes uma experiência nova, e o fato de isso ser ilícito só aumenta o poder de atração (versículos 16 e 17). Foi esse o tipo de oferta feita por Satanás a Eva.
É neste ponto, creio eu, que ele deixa Eva com seus pensamentos. Sua semente destrutiva já foi plantada. Embora ainda não tenha comido do fruto, Eva já começou a cair. Ela conversou com Satanás e agora está nutrindo pensamentos blasfemos sobre o caráter de Deus. Ela está contemplando seriamente a desobediência. O pecado não é instantâneo, mas sequencial (Tiago 1:13-15), e Eva está a caminho dele.
Observe que a árvore da vida nem mesmo é mencionada ou considerada. As duas árvores estavam bem diante de Eva, a árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal. Aparentemente, não foi uma escolha entre uma e outra. Ela só viu o fruto proibido. Só ele pareceu ser “bom para comer e agradável aos olhos” (versículo 6); no entanto, em 2:9 é dito que todas as árvores tinham as mesmas características. Mas Eva tinha olhos só para o que era proibido. Essa árvore ofereceu algum atrativo misterioso de vida que atraiu a mulher.
Satanás mentiu descaradamente ao garantir a Eva que ela não morreria, mas deixou de mencionar as letras miúdas da promessa servida junto com o fruto proibido. Tendo estudado a tal árvore durante algum tempo (imagino eu), finalmente ela decide que os benefícios são bons demais e as consequências bem pouco razoáveis e, portanto, improváveis. Nesse instante ela pega o fruto e come.
Talvez algumas pessoas balancem a cabeça diante da atitude de Eva, mas o estranho mesmo é que Adão, aparentemente sem hesitação, sucumbe ao convite dela para também desobedecer. Moisés emprega quase seis versículos (Gênesis 3:1-6a) para descrever a sedução e a desobediência de Eva, mas apenas uma pequena parte de uma sentença para registrar a queda de Adão (Gênesis 3:6-b). Por que será? Embora eu não seja tão categórico quanto a isso como já fui, duas palavrinhas de Moisés poderiam nos dar a resposta: “com ela” (versículo 6, NT: quase todas as versões em português não trazem essas palavras):
Vendo a mulher que a árvore era boa para se comer, agradável aos olhos e árvore desejável para dar entendimento, tomou-lhe do fruto e comeu e deu também ao marido e ele comeu. (Gênesis 3:6)
Seria possível que Eva não estivesse sozinha com a serpente?4 Será que Moisés, com as palavras “com ela”, está dizendo que Adão presenciou tudo, mas não abriu a boca? Se ele estava lá, ouvindo cada palavra, e assentindo com seu silêncio, então não é de admirar que ele simplesmente tenha pego o fruto e comido quando Eva lhe ofereceu.
Isso deve ser mais ou menos como quando eu e minha esposa estamos na sala assistindo televisão. Quando a campainha toca, ela se levanta para atender, enquanto continuo vendo meu programa favorito. Posso ouvi-la deixando o vendedor de aspirador de pó entrar e interessar-se cada vez mais pelo seu blá-blá-blá de vendedor. Não quero parar de assistir ao meu programa, por isso, deixo a conversa continuar, até minha esposa fazer um carnê de prestações. Se ela entrasse na sala e me dissesse “assine aqui também, por favor”, não seria nenhuma surpresa se eu assinasse sem protestar. A culpa seria minha por permitir que ela tomasse uma decisão e eu resolvesse segui-la.
Mesmo se Adão não estivesse ali durante a conversa entre a serpente e sua esposa, ainda podemos imaginar o que pode ter acontecido. Eva, sozinha, teria comido o fruto e depois teria corrido para contar ao marido o que achou daquilo. Dá bem para imaginar que ele ia querer saber de duas coisas. Primeira, se ela se sentia melhor — ou seja, se o efeito do fruto era bom. Segunda, se tinha acontecido alguma coisa ruim. Afinal de contas, Deus tinha dito que eles morreriam naquele mesmo dia. Se ela tivesse achado o fruto agradável e ainda não estivesse sentindo alguma coisa estranha, com certeza ele seguiria seu exemplo. Que erro terrível!
Os versículos 7 e 8 são muito instrutivos, pois nos ensinam que o pecado tem consequências, e castigo também. Deus ainda não tinha prescrito nenhuma punição para o pecado de Adão e Eva, mas as consequências já estavam irremediavelmente presentes. As consequências mencionadas aqui são vergonha e separação.
A nudez antes partilhada sem culpa agora era fonte de vergonha para Adão e Eva. A doce inocência se fora para sempre. Lembre-se, não havia outra pessoa no jardim, só os dois. Mas eles estavam com vergonha de encarar um ao outro sem roupa. Eles não só não conseguiam se encarar como antes, como também estavam morrendo de medo de encarar a Deus. Quando Ele veio ter a doce comunhão com eles, eles se esconderam de medo.
Deus tinha dito que eles morreriam no dia em que comessem do fruto proibido. Algumas pessoas ficam confusas com essa promessa de julgamento. Embora o processo de morte física tenha começado naquele dia fatídico, eles não morreram fisicamente. Precisamos nos lembrar de que a morte espiritual é a separação de Deus.
Estes sofrerão penalidade de eterna destruição, banidos da face do Senhor e da glória do seu poder. (2 Tessalonicenses 1:9)
É incrível, mas a morte espiritual de Adão e Eva ocorreu naquela mesma hora — ou seja, agora havia a separação de Deus. E essa separação não foi imposta por Ele, foi causada pelo próprio homem.
Preciso me desviar um pouco do assunto para dizer que a morte espiritual experimentada por Adão e sua esposa é a mesma de nossos dias. É a alienação de Deus. E é escolha do próprio homem. É o seu desejo. Inferno é Deus dar aos homens as duas coisas — o que eles querem e o que merecem (cf. Apocalipse 16:5-6).
A separação ocasionada por Adão e Eva é a mesma que Deus busca restaurar. Ele busca o homem no jardim. Enquanto a pergunta de Satanás tinha intenção de causar a queda do homem, as perguntas de Deus buscam sua reconciliação e restauração.
Observe que não são feitas perguntas à serpente. Não há intenção de restauração para Satanás. Sua condenação está selada. Observe também que aqui existe uma ordem ou sequência. A queda do homem ocorre nesta ordem: serpente, Eva, Adão. Isso é exatamente o oposto da cadeia de comando dada por Deus. Embora Deus faça o questionamento por ordem de autoridade (Adão, Eva, cobra), Ele sentencia pela ordem da queda (cobra, Eva, Adão). A queda, em parte, foi consequência da reversão da ordem de Deus.
Adão é o primeiro a ser procurado por Deus com a pergunta: “Onde estás?” (versículo 9). Com relutância, ele admite seu medo e sua vergonha, provavelmente esperando que Deus não o pressione muito. No entanto, Deus vai fundo em Sua sondagem, buscando uma confissão do pecado: “Quem te fez saber que estavas nu? Comeste da árvore que te ordenei que não comesses?” (versículo 11).
Jogando pelo menos uma parte da responsabilidade sobre o Criador, Adão desembucha: “A mulher que me deste por esposa, ela me deu da árvore, e eu comi” (verso 12).
Adão deixa implícito que tanto Eva quanto Deus devem dividir a responsabilidade pela queda. Sua própria participação é mencionada por último, com um mínimo de detalhes. E sempre será assim com quem é culpado. Sempre procuramos atenuar as circunstâncias.
Todos os caminhos do homem são puros aos seus olhos, mas o Senhor pesa o seu espírito. (Provérbios 16:2)
A seguir, Eva é inquirida: “Que é isso que fizeste?” (verso 13)
A resposta dela é um pouco diferente (em essência) da resposta do marido: “A serpente me enganou e eu comi” (verso 13).
É óbvio que isso é verdade. A serpente realmente a enganou (1 Timóteo 2:14) e ela, de fato, comeu. A culpa de ambos — Adão e Eva, apesar da débil tentativa de justificação, ou pelo menos de diminuição, da responsabilidade humana, foi claramente estabelecida.
Creio que sempre deve ser assim. Antes de se aplicar a punição, a transgressão precisa ser comprovada e reconhecida. De outra forma, o castigo não terá efeito corretivo sobre o culpado. As penalidades, então, são prescritas por Deus, pela ordem dos acontecimentos da queda.
A serpente é a primeira a quem Deus Se dirige e estabelece o castigo. A criatura, como o instrumento de Satanás, é amaldiçoada e sujeita a uma existência de humilhação, rastejando-se no pó (versículo 14).
O versículo 15 é dirigido à serpente por detrás da serpente, Satanás, o dragão mortífero: “E foi expulso o grande dragão, a antiga serpente, que se chama diabo e Satanás, o sedutor de todo o mundo...” (Apocalipse 12:9).
Em primeiro lugar, vai haver uma hostilidade pessoal entre Eva e a serpente: “Porei inimizade entre ti e a mulher” (versículo 15).
Essa inimizade é fácil de entender. No entanto, a oposição será ampliada: “entre a sua descendência e o seu descendente” (versículo 15).
Aqui, creio que Deus esteja se referindo à luta através dos séculos entre o povo de Deus e os seguidores do diabo (cf. João 8:44 e ss).
Finalmente, haverá o confronto pessoal entre o descendente de Eva5, o Messias, e Satanás. “Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar” (versículo 15).
Nesse confronto, Satanás será ferido mortalmente, enquanto o Messias receberá um golpe terrível, mas não fatal.
Essa profecia é uma belíssima descrição da vinda do Salvador, que reverterá os eventos da queda. É sobre isso que Paulo escreve em retrospecto no capítulo cinco de Romanos:
Entretanto, reinou a morte desde Adão até Moisés, mesmo sobre aqueles que não pecaram à semelhança da transgressão de Adão, o qual prefigurava aquele que havia de vir. Todavia, não é assim o dom gratuito como a ofensa; porque, se, pela ofensa de um só, morreram muitos, muito mais a graça de Deus e o dom pela graça de um só homem, Jesus Cristo, foram abundantes sobre muitos. O dom, entretanto, não é como no caso em que somente um pecou; porque o julgamento derivou de uma só ofensa, para a condenação; mas a graça transcorre de muitas ofensas, para a justificação. Se, pela ofensa de um e por meio de um só, reinou a morte, muito mais os que recebem a abundância da graça e o dom da justiça reinarão em vida por meio de um só, a saber, Jesus Cristo. (Romanos 5:14-17)
Muito embora a profecia do versículo 15 seja meio velada, ela se torna cada vez mais evidente à luz da revelação subsequente. É um tanto surpreendente, então, saber que os judeus, de acordo com o Targum, considerem esta passagem como Messiânica.6
Já que Satanás atacou a raça humana por intermédio da mulher, nada mais justo do que Deus providenciar a salvação do homem, e sua destruição de Satanás, também por meio da mulher. Isso já foi dito a Satanás no versículo 15. Cada criança nascida da mulher deve ter sido um tormento para ele.
Embora a salvação viesse pelo nascimento de uma criança, este não seria um processo indolor. A sentença da mulher atinge o centro da sua existência. Trata-se do nascimento de seus filhos. No entanto, mesmo em meio às dores do parto ela poderia saber que o propósito de Deus para ela estava sendo cumprido e que o Messias, talvez, pudesse nascer por meio dela.
Além das dores do parto, o relacionamento entre a mulher e seu marido também foi prescrito. Antes, Adão devia exercer a liderança e Eva devia segui-lo. Mas não foi isso o que ocorreu na queda. Por isso, daquele momento em diante as mulheres deviam ser governadas pelos homens: “o teu desejo será para o teu marido, e ele te governará” (versículo 16).
Muitas coisas podem ser ditas a respeito dessa maldição. Em primeiro lugar, isso é para todas as mulheres, não só para Eva. Assim como todas as mulheres devem ter dores de parto, elas também devem se sujeitar à autoridade dos maridos. Isso não implica, de forma alguma, em inferioridade da sua parte. Nem justifica a restrição ao direito de voto, à equivalência salarial, etc.
Para aqueles que não querem se submeter ao ensinamento bíblico a respeito do papel da mulher na igreja — que elas não devem exercer cargos de liderança ou ensinar aos homens, nem falar em público (1 Coríntios 14:33b-36; 1 Timóteo 2:9-15) — deixe-me dizer o seguinte: o papel da mulher na igreja e no casamento não é só ensinamento de Paulo, nem deve ser visto apenas em relação ao contexto imoral da igreja de Corinto. Essa doutrina é bíblica, com origem no terceiro capítulo de Gênesis. Por isso, Paulo escreve:
... conservem-se as mulheres caladas na igreja, porque não lhes é permitido falar; mas estejam submissas como também a lei o determina (1 Coríntios 14:34).
Para homens e mulheres com intenção de desconsiderar a instrução de Deus, devo dizer que esta é exatamente a vontade de Satanás. Assim como ele levou Eva a pensar na restrição daquela única árvore, ele também quer que as mulheres atuais só pensem nas restrições impostas a elas — “livre-se de suas algemas”, diz ele, “realize-se como mulher”; “Deus está privando você das melhores coisas da vida”, ele sussurra. Tudo isso é mentira! Os mandamentos de Deus têm razão de ser, quer os compreendamos ou não.
Para os homens, vou logo dizendo que este versículo (e o ensinamento bíblico sobre o papel das mulheres) não é texto de prova da superioridade masculina ou de alguma espécie de ditadura no casamento. Devemos exercer a liderança com amor. Ela precisa ser praticada com sacrifício pessoal, procurando aquilo que é melhor para a nossa esposa (Efésios 5:25 e ss). Liderança bíblica é aquela pautada no exemplo de nosso Senhor (cf. Filipenses 2:1-8).
Assim como o castigo de Eva está relacionado ao ponto central da sua vida, o mesmo acontece com Adão. Antes ele foi colocado no jardim, agora terá de obter o seu sustento do solo “pelo suor de sua fronte” (versículos 17 a 19).
Você vai notar que, embora a serpente tenha sido amaldiçoada, aqui só a terra é amaldiçoada, não Adão e Eva. Deus amaldiçoou Satanás porque não tinha intenção de reabilitá-lo ou de redimi-lo. Mas o propósito de Deus de salvar o homem já foi revelado (versículo 15).
Adão não só terá de lutar com o solo para obter seu sustento, mas, no fim, ele retornará ao pó. A morte espiritual já ocorreu (cf. versículos 7 e 8). E a morte física vai começar. Longe da vida dada por Deus, o homem simplesmente (embora lentamente) volta ao seu estado original — pó (cf. 2:7).
A reação de Adão ao castigo e à promessa de Deus é revelada no versículo 20: “E deu o nome de Eva a sua mulher, por ser a mãe de todos os seres humanos”.
Creio que essa atitude evidencia uma fé singela por parte de Adão. Ele reconheceu sua culpa e aceitou seu castigo, mas se concentrou na promessa de Deus de que por meio da descendência da mulher viria o Salvador. A salvação de Eva (e a nossa também!) viria pela sua submissão ao marido e pelo nascimento de filhos. O nome dado por Adão à mulher, Eva, que significa “viva” ou “vida”, mostra que a vida viria por meio dela.
Deus não é apenas um Deus de castigo, mas também de graciosa provisão. Por isso, Ele faz para Adão e sua esposa vestimentas de peles de animais para cobrir sua nudez. A profecia de redenção pelo derramamento de sangue implícita neste versículo, em minha opinião, não é nenhum exagero.
De maneira estranha, a promessa feita por Satanás acaba se tornando realidade. Adão e Eva, em certo sentido, passam a ser como Deus no conhecimento do bem e do mal (versículo 22). No entanto, há uma grande diferença, e também uma certa similaridade. Tanto o homem como Deus conhecem o bem e o mal, mas de formas totalmente diferentes.
Talvez essa diferença possa ser mais bem explicada com uma ilustração. Um médico pode saber o que é câncer em virtude de seus estudos e da sua experiência como médico. Isto é, ele lê matérias sobre o assunto, ouve palestras e vê a doença em seus pacientes. Um paciente, também, pode saber o que é câncer, mas como vítima. Embora ambos saibam o que é, o paciente gostaria de nunca ter ouvido falar em câncer. Tal é o conhecimento que Adão e Eva passaram a ter.
Deus tinha prometido que a salvação viria com o nascimento do Messias, O qual destruiria Satanás. Talvez Adão e Eva ficassem tentados a alcançar a vida eterna comendo o fruto da árvore da vida. Antes, eles escolheram o conhecimento em lugar da vida. Agora, assim como os israelitas tentaram tardiamente tomar posse de Canaã (Números 14:39-45), o homem caído também poderia tentar alcançar a vida por meio da árvore no meio do jardim.
Ao que parece, se Adão e Eva comessem da árvore da vida eles viveriam para sempre (versículo 22). Essa é a razão pela qual Deus os lançou fora do jardim (versículo 23). No versículo 24, o “lançar fora” dos dois é chamado mais dramaticamente de “expulsão”. Fixados na entrada do jardim estão querubins e uma espada flamejante.
Alguns talvez tenham vontade de dizer: “Mas quanta crueldade e intolerância!” Num jargão jurídico atual, é provável que isso fosse chamado de “castigo cruel e desumano”. No entanto, pense por um instante antes de falar. O que teria acontecido se Deus não tivesse expulsado os dois do jardim e proibido seu retorno? Posso dar a resposta com uma só palavra — INFERNO. Inferno é dar aos homens tanto o que eles querem quanto o que merecem (Apocalipse 16:6), para sempre. Inferno é passar a eternidade em pecado, separado de Deus:
Estes sofrerão penalidade eterna de destruição, banidos da face do Senhor e da glória do seu poder. (2 Tessalonicenses 1:9)
Deus foi misericordioso e gracioso colocando Adão e Eva para fora do jardim. Ele os preservou do castigo eterno. Sua salvação não viria num piscar de olhos, mas no tempo certo; não com facilidade, mas com dor — mas viria. Eles precisavam confiar nEle para alcançá-la.
Quando leio este capítulo, não posso deixar de pensar palavras do apóstolo Paulo: “Considerai, pois, a bondade e a severidade de Deus”. (Romanos 11:22)
Há pecado e há julgamento. Mas o capítulo é entrelaçado com a graça. Deus buscou os pecadores. Ele também os sentenciou, mas com a promessa de salvação futura. E Ele os preservou do inferno na terra; e lhes deu uma cobertura para o tempo e completa redenção no devido tempo. Que Salvador!
Antes de voltar nossa atenção para a aplicação deste capítulo à nossa própria vida, vamos considerar por um momento o que esta passagem significou para o povo dos dias de Moisés. Eles já tinham sido libertos do Egito e a Lei já tinha sido dada. Mas eles ainda não tinham entrado na terra prometida.
O propósito dos livros de Moisés (incluindo Gênesis) está no capítulo 31 de Deuteronômio:
Tendo Moisés acabado de escrever, integralmente, as palavras desta lei num livro, deu ordem aos levitas que levavam a Arca da Aliança do Senhor, dizendo: tomai este livro da lei e ponde-o ao lado da Arca da Aliança do Senhor, vosso Deus, para que ali esteja por testemunho contra ti. Porque conheço a tua rebeldia e a tua dura cerviz. Pois, se vivendo eu, ainda hoje, convosco, sois rebeldes contra o Senhor, quanto mais depois da minha morte? Ajuntai perante mim todos os anciãos das vossas tribos e vossos oficiais, para que eu fale aos seus ouvidos estas palavras, e contra eles, por testemunhas, tomarei os céus e a terra. Porque sei que, depois da minha morte, por certo, procedereis corruptamente e vos desviareis do caminho que vos tenho ordenado; então, este mal vos alcançará nos últimos dias, porque fareis mal perante o Senhor, provocando-o à ira com as obras das vossas mãos. (Deuteronômio 31:24-29)
Em muitos aspectos, o Éden foi um tipo da terra prometida, e Canaã um antítipo. Canaã, como o Paraíso, era um lugar de beleza e abundância, uma “terra que mana leite e mel” (cf. Deuteronômio 31:20). Israel teria bênção e prosperidade enquanto fosse obediente à Palavra de Deus (Deuteronômio 28:1-14). Se a lei de Deus fosse deixada de lado, eles teriam sofrimento, derrota e pobreza, e seriam expulsos da terra (28:15-68). Na verdade, Canaã era uma oportunidade para Israel experimentar, até certo ponto, as bênçãos do Éden. Lá, como no Éden, o povo de Deus tinha de tomar uma decisão: “Vê que proponho, hoje, a vida e o bem, a morte e o mal.” (Deuteronômio. 30:15).
Gênesis capítulo três está longe de ser apenas teoria ou simples história. O capítulo foi uma palavra de advertência. O que aconteceu no Éden aconteceria de novo em Canaã (cf. Deuteronômio 31:16 e ss). Eles seriam tentados a desobedecer, assim como foram Adão e Eva. Considerações importantes sobre este capítulo e suas implicações eram essenciais para o futuro de Israel.
O capítulo é também claramente profético, pois Israel desobedeceu e escolheu o caminho da morte, exatamente como o primeiro casal lá no jardim. Tal como Adão e Eva foram lançados fora do jardim, Israel foi levado da terra prometida. Contudo, há também esperança, pois Deus prometeu um Redentor, que nasceria da mulher (Gênesis 3:15). Deus castigaria Israel e o traria de volta à terra (Deuteronômio 30:1 e ss). Mesmo assim, Israel ainda não seria fiel ao seu Deus. Eles precisavam olhar para o Messias de Gênesis 3:15 para lhes dar restauração plena e permanente. A história de Israel, portanto, está resumida em Gênesis 3.
Há muitas aplicações para nós também. Não podemos ignorar as estratégias de Satanás (2 Coríntios 2:11). A maneira como ele tenta foi repetida no testemunho de nosso Senhor no deserto (Mateus 4:1-11; Lucas 4:1-2). E ele continua a nos tentar da mesma forma ainda hoje.
Gênesis três é vital para os cristãos de nossos dias porque o capítulo sozinho explica as coisas como elas realmente são. Nosso mundo é uma mistura de beleza e de crueldade, de encanto e de horror. A beleza que ainda resta é evidência da bondade e da grandeza do Deus que criou todas as coisas (cf. Romanos 1:18 e ss). As coisas horríveis são evidência da pecaminosidade do homem (Romanos 8:18-25).
Pelo que sei, o presente estado da criação de Deus foi um dos elementos cruciais na mudança de Darwin da ortodoxia para a dúvida e negação. Ele não viu a ordem da criação e disse para si mesmo: “Nossa, isso deve ter ocorrido por acaso”. Pelo contrário, ele viu a crueldade e a fealdade e concluiu: “Como um Deus amoroso e todo-poderoso poderia ser responsável por isso?” A resposta, é claro, se encontra no texto de Gênesis capítulo três: o pecado do homem virou a criação de Deus de ponta-cabeça.
A única solução é Deus fazer alguma coisa para trazer redenção e restauração. Isso já foi realizado em Jesus Cristo. O castigo pelos pecados do homem foi suportado por Ele. As consequências do pecado de Adão não precisam nos destruir. A escolha que está diante de nós é esta: Queremos estar unidos com o primeiro Adão ou com o último? No primeiro, fomos feitos pecadores e estamos sujeitos à morte física e espiritual. No último, nós nos tornamos novas criaturas, com vida eterna (física e espiritual). Deus não colocou duas árvores diante de nós, mas dois homens: Adão e Cristo. Precisamos decidir com qual deles vamos nos identificar. Em um dos dois repousa o nosso futuro eterno.
Há também muito a aprender sobre o pecado. Em essência, pecado é desobediência. Observe que o primeiro pecado não parecia muito sério. Poderíamos pensar nele como uma coisa trivial. Sua gravidade, no entanto, pode ser vista em dois fatos importantes, os quais são muito claros no nosso texto.
Primeiro, o pecado é sério por causa das suas raízes. Comer o fruto proibido não foi a essência do pecado, só sua manifestação. Não foi a origem dele, só seu símbolo. Partilhar aquele fruto é semelhante a compartilhar os elementos, pão e vinho, da mesa do Senhor, ou seja, é um ato que expressa algo muito mais intenso e profundo. Assim, a raiz do pecado de Adão e Eva foi sua rebelião, incredulidade e ingratidão. Sua atitude foi uma escolha deliberada de desobedecer a uma instrução clara de Deus. Eles não quiseram aceitar com gratidão as coisas boas como provenientes de Deus, e Sua única proibição também como uma coisa boa. Pior ainda, eles viram Deus como alguém perverso, miserável e ameaçador, exatamente como Satanás O retratou.
Segundo, o pecado é sério por causa dos seus frutos. Adão e Eva não experimentaram um nível superior de existência, mas vergonha e culpa. O pecado não lhes deu mais prazer, mas estragou o que antes eles tinham sem sentir vergonha. Pior ainda, o pecado causou a queda de toda a raça humana. Os efeitos da queda são vistos no restante da Bíblia. Vemos as consequências desse pecado ainda hoje, na nossa vida e na nossa sociedade. A consequência do pecado é julgamento. Esse julgamento é tanto presente como futuro (cf. Romanos 1:26-27).
Eu lhe digo, meu amigo, Satanás sempre ressalta os prazeres do pecado enquanto mantém a nossa mente longe das suas consequências. O pecado nunca vale seu preço. Ele é como andar pela Feira Estadual do Texas: o trajeto é curto, mas o preço é alto — extremamente alto.
Mas, vamos deixar os pecados de Adão e Eva de lado. Não seria surpresa alguma saber que as tentações de hoje são as mesmas do jardim. Nem os pecados.
A Avenida Madison, em Nova York, tem sido a causa de um grande mal. Os anúncios nos fazem esquecer das muitas bênçãos que possuímos e nos levam a pensar só naquilo que não temos. Eles sugerem que a vida só pode ser bem vivida se tivermos determinadas coisas. Por exemplo, dizem que “Coca-Cola é vida”. Não, não é, ela simplesmente estraga seus dentes. E, assim, somos levados a não considerar o custo ou as consequências de satisfazer a nós mesmos com mais uma coisa que queremos. A gente “põe com cartão”.
Creio que um sorrisinho esteja se formando no seu rosto. Talvez você ache que estou indo longe demais. Mas pense no que o Apóstolo Paulo diz sobre o significado das verdades do Antigo Testamento para a nossa época:
Ora, irmãos, não quero que ignoreis que nossos pais estiveram todos sob a nuvem, e todos passaram pelo mar, tendo sido todos batizados, assim na nuvem, como no mar, com respeito a Moisés. Todos eles comeram de um só manjar espiritual, e beberam da mesma fonte espiritual, porque bebiam de uma pedra espiritual que os seguia. E a pedra era Cristo. Entretanto, Deus não se agradou da maioria deles, razão porque ficaram prostrados no deserto. Ora, estas coisas se tornaram exemplos para nós, a fim de que não cobicemos as coisas más, como eles cobiçaram. (1 Coríntios 10:1-6)
O que afastou Adão e Eva da bênção eterna foi seu desejo de ter prazer às custas de incredulidade e desobediência. Foi assim também, Paulo escreve, com Israel (1 Coríntios. 10:1-5). Hoje, nós enfrentamos as mesmas tentações, mas Deus nos dá meios suficientes para alcançarmos a vitória. Que meios são esses?
Nenhum bem sonega aos que andam retamente. (Salmo 84:11)
Recordar-te-ás de todo o caminho, pelo qual o Senhor teu Deus te guiou no deserto estes quarenta anos, para te humilhar, para te provar, para saber o que estava no teu coração, se guardarias ou não os seus mandamentos. Ele te humilhou, e te deixou ter fome, e te sustentou com o maná, que tu não conheceste, nem teus pais o conheceram, para te dar a entender que não só de pão viverá o homem, mas de tudo o que procede da boca do Senhor, disso viverá o homem. Nunca envelheceu a tua veste sobre ti, nem se inchou o teu pé nestes quarenta anos. Sabe, pois, no teu coração que, como um homem disciplina a seu filho, assim te disciplina o Senhor teu Deus. (Deuteronômio 8:2-5)
Não fazer não significa que Deus esteja nos privando da bênção, mas que está nos preparando para ela:
Pela fé Moisés, quando já homem feito, recusou ser chamado filho da filha de Faraó, preferindo ser maltratado junto com o povo de Deus, a usufruir prazeres transitórios do pecado; porquanto considerou o opróbrio de Cristo por maiores riquezas do que os tesouros do Egito, porque contemplava o galardão. (Hebreus 11:24-26, cf. Deuteronômio 8:6 e ss).
Antes, como te ordenou o Senhor teu Deus, destrui-las-á totalmente: aos heteus, aos amorreus, Aos cananeus, aos ferezeus, aos heveus, e aos jebuseus, para que não vos ensinem a fazer segundo todas as suas abominações, que fizeram a seus deuses, pois pecaríeis contra o Senhor vosso Deus. (Deuteronômio 20:17-18)
Não andeis ansiosos de coisa alguma; em tudo, porém, sejam conhecidas diante de Deus as vossas petições, pela oração e pela súplica, com ações de graça. E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os vossos corações e as vossas mentes em Cristo Jesus. Finalmente, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é respeitável, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, se alguma virtude há e se algum louvor existe, seja isso o que ocupe o vosso pensamento. O que aprendestes, e recebestes, e ouvistes, e vistes em mim, isso praticai; e o Deus da paz será convosco. (Filipenses 4:6-9)
Quase todos os dias nos encontramos repetindo os pecados de Adão e Eva. Ficamos pensando naquilo que não podemos ter. Começamos a desconfiar da bondade de Deus e da Sua graça para conosco. Ficamos preocupados com coisas realmente sem importância. E, com frequência, cheios de incredulidade, acabamos fazendo as coisas do nosso jeito.
Muitas vezes, vejo alguns cristãos flertando com o pecado, sabendo que é errado e cientes das suas consequências, mas tendo a falsa impressão de que o prazer é maior que seu preço. Ledo engano! Foi exatamente esse o erro de Adão e Eva.
Que Deus nos capacite a louvá-lO pelas coisas que Ele nos nega, e a confiar nEle para as coisas realmente necessárias, as quais Ele promete suprir.
Tradução e Revisão Mariza Regina de Souza
1 Gosto da forma como Helmut Thielicke coloca isso:
“A abertura deste diálogo é profundamente piedosa e a serpente se apresenta como um animal muito sério e religioso. Ela não diz: “Sou um monstro ateu e agora vou tirar seu paraíso, sua inocência e sua lealdade e vou virar tudo de cabeça pra baixo”. Pelo contrário, ela diz: “Crianças, hoje vamos falar de religião, vamos discutir sobre assuntos atuais”. How the World Began (Philadelphia: Fortress Press, 1961), p. 124.
2 Alguns apontam que “Deus” (“como Deus”), no versículo 5, é o nome Elohim, o qual é plural. Eles dizem que deveríamos traduzi-lo por “serão como deuses”. Essa possibilidade, embora gramaticalmente permissível, não parece digna de consideração. A mesma palavra (Elohim) é encontrada na primeira parte do versículo 5, onde Deus é mencionado.
3 No que diz respeito ao conhecimento do bem e do mal, é preciso lembrar que o hebraico yd’ (conhecer) não significa simplesmente conhecimento intelectual, mas, num sentido mais amplo, “ter experiência”, “tornar-se íntimo de”, ou mesmo “ter habilidade”. “Conhecer, no mundo antigo, é também sempre ser capaz de” (Wellhausen). Em segundo lugar, “bem e mal” não se restringem apenas ao campo moral. “Falar nem bem nem mal” significa não dizer nada (Gn. 31:24, 29; 2 Sm. 13:22); fazer nem bem nem mal significa não fazer nada (Sf. 1:12); conhecer nem bem nem mal (dito de crianças ou idosos) significa não entender nada (ainda) ou (mais nada) (Dt. 1:39; 2 Sm. 19:35). “Bem e mal” é, portanto, uma maneira formal de se dizer o que queremos dizer com o nosso sem graça “tudo”; e aqui também é preciso entender seu significado em todos os sentidos”. Gehard Von Rad, Genesis (Philadelphia: Westminster Press, 1961), pp. 86-87.
4 “Ela partiu o fruto, deu a seu marido e ele também comeu. Alguém poderia perguntar: Onde estava Adão esse tempo todo? A Bíblia não nos diz. Presumo que ele estivesse lá, pois ela lhe deu o fruto: “seu marido estava com ela”. Nada mais podemos dizer pela simples razão de que a Bíblia não fala mais nada.” E. J. Young, In the Beginning (Carlisle, Pennsylvania: The Banner of Truth Trust, 1976), p. 102
5 A palavra descendente (zera) pode ser usada tanto coletiva quanto individualmente (cf. Gn. 4:25, 1 Sm. 1:11, 2 Sm. 7:12). Aqui em Gn. 3:15 é usada em ambos os sentidos, creio eu. Kidner afirma: “os últimos, como a descendência de Abraão, é coletivo (cf. Rm. 6:20) e, na batalha crucial, individual (cf. Gl. 3:16), já que Jesus, como o último Adão, resume toda a raça humana em Si mesmo”. Derek Kidner, Genesis (Chicago: Inter-Varsity Press, 1967), p. 71.
6 H. C. Leupold, Exposition of Genesis (Grand Rapids: Baker Book House, 1942), I, p. 170.
Quando pecamos, muitas vezes o fazemos na vã esperança de alcançar o máximo de prazer com um mínimo de punição. No entanto, raramente funciona desse jeito.
Certa vez ouvi a história de um homem que, junto com a esposa, resolveu ir a um drive-in movie para assistir a um filme. Eles acharam que o preço do ingresso era alto demais e bolaram um plano para tapear a administração do cinema. Ao se aproximarem do local, o marido desceu do carro e se enfiou no porta-malas. O combinado era que sua esposa o deixaria sair quando estivessem dentro cinema.
Tudo correu como planejado, pelo menos até passarem pelo vendedor de entradas. Mas, quando a esposa se dirigiu à traseira do carro para deixar o marido sair, descobriu que ele estava com a chave do porta-malas. Em desespero, ela teve de chamar o gerente, a polícia e o esquadrão de resgate. Além de eles não verem o filme, o porta-malas teve de ser arrombado. Assim é o caminho do pecado. O trajeto é curto, mas o preço é alto demais.
À primeira vista, pegar o fruto proibido e comê-lo parecia uma coisa sem importância, um delito qualquer. No entanto, Gênesis capítulo três deixa claro que esta foi uma questão da maior gravidade. O homem preferiu acreditar em Satanás a crer em Deus. Adão e Eva concluíram que Deus era desnecessariamente cruel e rigoroso. Eles resolveram buscar o caminho da autorrealização em vez do caminho da sujeição.
A serpente tinha sugerido, na verdade, tinha tido a ousadia de afirmar, que a desobediência a Deus não lhes traria nenhum prejuízo, só um nível de existência mais elevado. No entanto, no capítulo quatro de Gênesis, logo vemos que as promessas de Satanás foram mentiras descaradas. Aqui, o verdadeiro salário do pecado começa a aparecer.
A união sexual de Adão e Eva gerou a primeira criança, um filho a quem Eva deu o nome de Caim. Esse nome provavelmente deve ser entendido como um jogo de palavras. Ele soa semelhante à palavra hebraica Qanah, que significa “conseguir” ou “adquirir”. Em termos atuais, esse filho provavelmente seria chamado de “Adquirido”.1
A implicação é que o nome reflete a fé que Eva tinha em Deus, pois ela disse: “Adquiri (Qaniti, de Qanah) um varão com o auxílio do Senhor” (Gênesis 4:1).
Embora haja alguma discussão entre os estudiosos da Bíblia quanto ao significado preciso dessa afirmação2, o fato é que Eva reconheceu a ação de Deus ao lhe dar um filho. Creio que ela compreendeu, pela profecia de Gênesis 3:15, que alguém da sua descendência traria sua redenção. Talvez ela visse Caim como seu redentor. Se foi isso, ela estava fadada ao desapontamento.
Mesmo que ela tenha se enganado em ter esperanças de alcançar uma rápida vitória sobre a serpente com o nascimento do seu primogênito, ela estava certa em esperar a libertação de Deus por meio da sua descendência. Portanto, ela estava certa no geral, mas enganada no particular.
À época do nascimento do seu segundo filho, Abel, o otimismo de Eva parece ter-se desvanecido. O nome dele significava “vaidade”, “sopro” ou “vapor”. Talvez Eva já tivesse aprendido que as consequências do pecado não seriam rapidamente eliminadas. A vida envolveria luta e uma boa dose de esforço aparentemente inútil. Caim foi o símbolo da esperança de Eva; Abel, do seu desespero.
Abel foi pastor de ovelhas, Caim, lavrador. Em parte alguma Moisés dá a entender que uma dessas ocupações fosse inferior à outra. Nem este relato é algum tipo de precursor dos programas de televisão que ficam discutindo o eterno conflito entre grandes pecuaristas e pequenos agricultores.
O problema de Caim não estava no seu meio de subsistência, mas na sua própria pessoa:
“Aconteceu que no fim de uns tempos trouxe Caim do fruto da terra uma oferta ao Senhor. Abel, por sua vez, trouxe das primícias do seu rebanho, e da gordura deste. Agradou-se o Senhor de Abel e de sua oferta; ao passo que de Caim e de sua oferta não se agradou”. (Gênesis 4:3-5a)
Os israelitas que primeiramente leram estas palavras de Moisés tiveram pouca dificuldade em compreender qual foi o problema com o sacrifício de Caim. Eles receberam este relato como parte do Pentateuco, os cinco primeiros livros da Bíblia. Como tal, eles entenderam que um homem não poderia se aproximar de Deus sem o derramamento de sangue sacrificial. Embora houvesse sacrifícios sem sangue3, um homem só poderia ter acesso a Deus por meio de sangue derramado. A oferta de Caim não atendeu aos requisitos da lei de Deus.
Alguns poderiam objetar: “Mas Caim ainda não tinha essa revelação!” Absolutamente certo. No entanto, todos nós precisamos admitir que ninguém sabe qual era a revelação que ele tinha. Qualquer especulação sobre o assunto é somente isso — pura conjectura.
Tendo dito isto, devo ressaltar que não era necessário Moisés ter nos contado esta história. Seus contemporâneos tinham base mais que suficiente para compreender a importância do sangue derramado, devido às meticulosas prescrições da Lei sobre sacrifício e adoração. E os cristãos da nossa época têm a vantagem de ver o assunto mais claramente à luz da cruz e da compreensão de que Jesus é “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (João 1:29).
Embora nós não saibamos qual a revelação dada por Deus a Adão ou a seus filhos, temos certeza de que eles sabiam o que deviam fazer. Isso fica claro nas palavras de Deus a Caim:
Então lhe disse o Senhor: Por que andas tão irado? e por que descaiu o teu semblante? Se procederes bem, não é certo que serás aceito? Se, todavia, procederes mal, eis que o pecado jaz à porta; o seu desejo será contra ti, mas a ti cumpre dominá-lo. (Gênesis 4:6-7)
A pergunta feita por Deus claramente implica que a raiva de Caim era infundada. Embora não conheçamos os detalhes envolvidos nesse “proceder bem”, Caim conhecia. Seu problema não era falta de instrução, era insurreição e rebelião contra Deus.
Caim, como muitas pessoas hoje em dia, queria se aproximar de Deus, mas queria fazer as coisas do jeito dele. Talvez isso funcione num carrinho de hambúrguer. Eles podem deixar que você faça do “seu jeito”, como diz o comercial, mas Deus não. Como diz um amigo, “você pode ir para o céu do jeito de Deus, ou pode ir para o inferno do jeito que quiser”.
Observe que Caim não era uma pessoa descrente. Ele acreditava em Deus, e queria Sua aprovação. Mas ele queria fazer as coisas nos seus termos, não nos termos de Deus. O inferno, como já disse, vai estar cheio de gente religiosa.
Caim não quis se aproximar de Deus por meio de sangue derramado. Ele preferiu oferecer a Deus o fruto do seu trabalho. Ele gostava do verde das plantas, e mãos vermelhas de sangue não eram a sua praia. Os homens de hoje não são muito diferentes dele. Há muita gente que, como os demônios (cf. Tiago 2:19), acredita em Deus e reconhece que Jesus é o Filho de Deus. Contudo, essas pessoas não querem se sujeitar a Ele como Senhor. Elas não aceitam Sua morte sacrificial e substitutiva na cruz como pagamento por seus pecados. Elas querem se aproximar de Deus nos seus próprios termos. A mensagem do Evangelho é bastante clara: ninguém pode ir a Deus, a não ser por meio daquilo que Jesus conquistou na cruz com a Sua morte.
Jesus lhe disse: Eu sou o caminho, a verdade e a vida, ninguém vem ao Pai senão por mim. (João 14:6)
E não há salvação em nenhum outro; porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos. (Atos 4:12)
Com efeito, quase todas as cousas, segundo a lei, se purificam com sangue, e sem derramamento de sangue, não há remissão. (Hebreus 9:22)
... mas pelo precioso sangue, como de cordeiro sem defeito e sem mácula, o sangue de Cristo. (1 Pedro 1:19, cf. também Lucas 22:30; Atos 20:28; Romanos 3:25; 5:9; Efésios 1:7)
Como Deus foi gracioso buscando Caim e gentilmente confrontando-o com sua raiva pecaminosa! Como foi clara Sua mensagem de restauração e Sua advertência sobre o perigo que rodeava Caim! Mas o conselho de Deus foi rejeitado.
Certa vez, um amigo meu chamou minha atenção para a sabedoria da repreensão de Deus. Teria sido muito fácil para Ele corrigir Caim comparando-o com Abel. É assim que nós, pais, muitas vezes disciplinamos nossos filhos. No entanto, Deus não disse: “Por que você não me adora igual ao seu irmão?” Em vez disso, Ele mostrou a Caim o padrão que Ele havia estabelecido, não o exemplo de seu irmão. Mesmo assim, Caim fez a ligação. Sua oferta não foi aceita, a de Abel foi. Deus gentilmente o repreendeu e lhe disse que o jeito de receber Sua aprovação era submetendo-se ao padrão divino de acesso a Ele. Caim concluiu que a solução era eliminar a concorrência — e assassinar seu irmão.
Uma coisa precisa ficar clara. O problema não foi só o sacrifício. O problema maior encontrava-se na pessoa que procurou apresentar a oferta. Moisés nos diz:
Agradou-se o Senhor de Abel e de sua oferta; ao passo que de Caim e de sua oferta não se agradou. (Gênesis 4:4b-5a)
A fonte do problema estava em Caim, o sacrifício foi só o sintoma.
O versículo 7 é cheio de implicações:
Se procederes bem, não é certo que serás aceito? Se, todavia, procederes mal, eis que o pecado jaz à porta; o seu desejo será contra ti, mas a ti cumpre dominá-lo. (Gênesis 4:7)
A maneira de superar a depressão era Caim mudar de atitude. Ele se sentiria melhor quando procedesse melhor. Em certo sentido, Caim estava certo em zangar-se consigo mesmo. No que ele não estava certo era na sua animosidade contra o irmão e contra Deus.
Se ele preferia ignorar o leve cutucão de Deus, então que estivesse plenamente ciente dos perigos à sua frente. O pecado esperava por ele como um animal à espreita. Ele queria controlá-lo, mas Caim devia dominá-lo4. Caim tinha de enfrentar uma decisão e ser responsável por sua escolha. Ele não precisava sucumbir ao pecado, assim como nós também não precisamos, pois Deus sempre nos dá graça suficiente para resistir à tentação (1 Coríntios 10:13).
Quando os dois homens estavam em campo aberto (aparentemente, onde não havia testemunhas, cf. Deuteronômio 22:25-27), Caim matou o irmão. Deus, então, foi até ele para julgá-lo:
Disse o Senhor a Caim: Onde está Abel, teu irmão? Ele respondeu: Não sei; acaso sou eu tutor de meu irmão? (Gênesis 4:9)
A insolência de Caim é inacreditável. Ele não apenas mente quando nega saber o paradeiro do irmão, como também parece censurar a Deus pela pergunta. Talvez haja até mesmo um jogo sarcástico de palavras, dando a impressão de: “Sei lá. Será que tenho de pastorear o pastor?”5
Antes, o solo tinha sido amaldiçoado por causa de Adão e Eva (Gênesis 3:17). Agora é a terra que é manchada com o sangue de um homem, derramado por seu próprio irmão. Esse sangue agora clama a Deus por justiça (4:10). Deus, então, confronta Caim com seu pecado. O tempo para arrependimento já passou e agora a sentença é dada a Caim pelo Juiz da terra.
Não é o solo que é amaldiçoado de novo, mas Caim:
És agora, pois, maldito por sobre a terra, cuja boca se abriu para receber de tuas mãos o sangue de teu irmão. Quando lavrares o solo, não te dará ele a sua força; serás fugitivo e errante pela terra. (Gênesis 4:11-12)
Caim tinha sido abençoado com um “gosto por plantas”. Ele tentou se aproximar de Deus com o fruto do seu trabalho. Agora Deus o amaldiçoa justamente na área da sua especialidade e do seu pecado. Nunca mais ele seria capaz de se sustentar pelo cultivo do solo. Enquanto Adão teve de obter seu sustento com o suor do seu rosto (3:19), Caim não ia poder nem sobreviver da agricultura. Para ele, a maldição do capítulo três foi intensificada. Para Adão, a agricultura foi difícil; para Caim, foi um desastre.
A reação de Caim à primeira repreensão de Deus foi sombria e silenciosa, seguida de pecado. Agora, após sua sentença ter sido pronunciada, ele não está mais calado, mas não há sinal de arrependimento, só de pesar.
Então, disse Caim ao Senhor: É tamanho o meu castigo, que já não posso suportá-lo. Eis que hoje me lanças da face da terra, e da tua presença hei de esconder-me; serei fugitivo e errante pela terra; quem comigo se encontrar me matará. (Gênesis 4:13-14)
Suas palavras soam familiares a qualquer pai. Às vezes, uma criança fica realmente triste por causa da sua desobediência. Em outras, no entanto, só fica triste por ter sido pega, lamentando amargamente o duro castigo que vai receber. A única coisa que Caim faz é repetir com amargor a sua sentença, expressando o medo de que os homens o tratem da mesma forma com que ele tratou seu irmão.
Deus lhe garante que, embora a vida humana valesse pouco para Caim, Ele (Deus) a valorizava muito. Ele não permitiria nem que o sangue de Caim fosse derramado6. Não podemos dizer com certeza qual a natureza exata do sinal designado para Caim. Talvez fosse uma marca visível, mas o mais provável é que tenha sido algum tipo de acontecimento confirmando que Deus não o deixaria ser morto.7
O versículo 15 tem duplo propósito. O primeiro é garantir a Caim que ele não sofreria uma morte violenta pelas mãos de um homem. O segundo é uma clara advertência a quem quer que pensasse em tirar sua vida. Observe que as palavras “assim, qualquer que matar a Caim será vingado sete vezes” (Gênesis 4:15) não são ditas a Caim, mas de Caim. Deus não disse: “qualquer que o matar”, mas “qualquer que matar a Caim”.
Em seguida, temos uma genealogia parcial da linhagem de Caim. Creio que Moisés a usou para mostrar sua impiedade (e a pecaminosidade do homem iniciada na Queda) em seus descendentes, e para servir de contraste com a genealogia de Adão por meio de Sete no capítulo cinco.
Caim habitou na terra de Node. Depois do nascimento de seu filho, Enoque, ele deu este nome a uma cidade que edificou. Parece que fundar essa cidade foi um ato de rebelião contra Deus, O qual tinha dito que ele seria fugitivo e errante (4:12).
Lameque manifesta o nível mais baixo atingido pela raça humana.
Lameque tomou para si duas esposas: o nome de uma era Ada, a outra se chamava Zilá. Ada deu à luz a Jabal; este foi o pai dos que habitam em tendas e possuem gado. O nome de seu irmão era Jubal; este foi o pai de todos os que tocam harpa e flauta. Zilá, por sua vez, deu à luz a Tubalcaim, artífice de todo instrumento cortante, de bronze e de ferro; a irmã de Tubalcaim foi Naamá. E disse Lameque às suas esposas: Ada e Zilá, ouvi-me; vós, mulheres de Lameque, escutai o que passo a dizer-vos: Matei um homem porque ele me feriu; e um rapaz porque me pisou. Sete vezes se tomará vingança de Caim, de Lameque, porém, setenta vezes sete. (Gênesis 4:19-24).
Ele parece ser a primeira pessoa a se afastar do ideal divino para o casamento descrito no capítulo dois. Uma esposa não era suficiente para ele, por isso Lameque teve duas, Ada e Zilá.
Seria de esperar que Moisés só tivesse palavras de condenação para Lameque. Com certeza, nada de bom poderia vir de tal homem. No entanto, é de seus descendentes que vêm as grandes contribuições culturais e científicas. Um filho tornou-se o pai dos pastores nômades, outro foi o primeiro de uma linhagem de músicos, e o terceiro foi o primeiro dos grandes artífices de metal.
Precisamos fazer uma pausa para dizer que mesmo o homem no seu pior estado não é incapaz de produzir aquilo que é considerado benéfico à raça humana. É preciso dizer também que as contribuições humanas podem rápida e facilmente ser adaptadas para a ruína do próprio homem. A música pode atrair e levar os homens ao pecado. A habilidade dos artífices em metal pode ser usada para produzir utensílios de pecado (ídolos, por exemplo, cf. Êxodo 32:1 e ss).
Para ímpios, a linhagem de Caim foi origem de muitas coisas louváveis. Mas os verdadeiros frutos do pecado são revelados nas palavras de Lameque às suas esposas. Adão e Eva tinham pecado, mas o arrependimento e a fé estavam implícitos depois de receberem sua sentença. Caim matou Abel, seu irmão, e, embora não tenha se arrependido totalmente, ele não pôde justificar sua atitude.
Lameque nos leva ao ponto da história humana onde o pecado não é apenas cometido com descaramento, mas com prepotência. Ele se vangloria de seu assassinato para suas esposas. Mais do que isso, ele se gaba de seu pecado ter sido cometido contra um rapaz que simplesmente o feriu. Esse assassinato foi brutal, ousado e intempestivo. Pior ainda, Lameque demonstra desdém e desrespeito para com a Palavra de Deus: “se Sete vezes se tomará vingança de Caim; de Lameque, porém, setenta vezes sete” (Gênesis 4:24).
Deus tinha dito essas palavras para garantir a Caim que ele não seria morto pelas mãos de um homem. Ele também notificou aos homens a gravidade desse ato. Tais palavras foram pronunciadas para mostrar o fato de que Deus dá valor à vida humana. Lameque as torceu e distorceu para ostentar sua violenta e agressiva hostilidade contra o homem e contra Deus. Eis um homem que estava indo direto para o fundo do poço!
Em Romanos capítulo cinco, o apóstolo Paulo tem muito a dizer sobre a queda do homem no livro de Gênesis. Contudo, nesse mesmo capítulo, encontramos estas palavras de esperança: “mas onde abundou o pecado, superabundou a graça” (Romanos 5:20).
O pecado certamente abundou na linhagem de Caim, mas o capítulo não termina sem um vislumbre da graça de Deus.
Tornou Adão a coabitar com sua mulher; e ela deu à luz um filho, a quem pôs o nome de Sete; porque, disse ela, Deus me concedeu outro descendente em lugar de Abel, que Caim matou. A Sete nasceu-lhe também um filho, ao qual pôs o nome de Enos; daí se começou a invocar o nome do Senhor. (Gênesis 45-26)
Eva tinha esperança de que a salvação viesse por meio do seu primeiro filho, Caim, o que, com certeza, não viria dele, nem de seus descendentes. Nem poderia vir de Abel. No entanto, outro filho foi dado a ela, cujo nome, Sete, significa “designado”. Ele não foi só um substituto para Abel (versículo 25), ele foi o descendente por meio de quem nasceria o Salvador.
Sete também teve um filho, Enos. Começava a ficar claro que a libertação esperada por Adão e Eva não viria logo, mas, apesar de tudo, viria. E foi assim que naqueles dias os homens começaram “a invocar o nome do Senhor” (versículo 26). Entendo que este seja o início do culto coletivo.8 Em meio a uma geração perversa e deformada havia um remanescente fiel que confiava em Deus e esperava pela Sua salvação.
O Novo Testamento é, sem dúvida, o melhor comentário sobre este capítulo, além de nos informar sobre seus princípios e aplicações práticas.
Esta narrativa não é simplesmente um registro da história de dois homens que viveram há muito tempo, num lugar longínquo. Minha Bíblia me diz que esta é uma descrição de dois caminhos, o caminho de Abel e o caminho de Caim.
Ai deles! Porque prosseguiram pelo caminho de Caim, e, movidos de ganância, se precipitaram no erro de Balaão, e pereceram na revolta de Coré. (Judas 11)
Judas adverte seus leitores acerca dos falsos crentes (versículo 4). Eles não são salvos, mas se esforçam para se passar por crentes e perverter a verdadeira fé, afastando os homens de experimentar a graça de Deus. No versículo 11 tais homens são descritos como sendo como Caim. Eles são como ele no sentido de serem rebeldes que se escondem sob a bandeira da religião.
Gostaria só de dizer que o mundo de hoje está cheio de religião, e o inferno estará cheio de gente carola. No entanto, há uma diferença substancial entre quem é justo e quem é apenas religioso. Quem é realmente salvo, como Abel, se achega a Deus como pecador e sabe que só é salvo por causa do sangue derramado do perfeito Cordeiro de Deus, o Senhor Jesus Cristo. Todos os outros tentam ganhar a aprovação de Deus oferecendo o trabalho de suas mãos. O “caminho de Caim” é uma fila interminável de quem quer alcançar o céu “do seu próprio jeito” e não do jeito de Deus.
A ironia do caminho de Caim é que ele é claramente marcado. Embora quem o siga pareça oferecer a Deus boas obras, o seu coração é corrupto.
Porque a mensagem que ouvistes desde o princípio é esta: que nos amemos uns aos outros; não segundo Caim, que era do Maligno e assassinou a seu irmão, e por que o assassinou? Porque as suas obras eram más, e as de seu irmão, justas. (1 João. 3:11-12)
Os perversos não conseguem suportar quem é verdadeiramente justo. Eles proclamam amor fraternal, mas não o praticam. Não é de admirar, então, que os líderes religiosos da época de Jesus O tenham rejeitado e entregado à morte com o auxílio dos gentios. Foi isso o que João explicou no seu evangelho.
A vida estava nele e a vida era a luz dos homens. A luz resplandece nas trevas, e as trevas não prevaleceram contra ela... a saber, a verdadeira luz que, vinda ao mundo, ilumina a todo homem. O Verbo estava no mundo, o mundo foi feito por intermédio dele, mas o mundo não O conheceu. Veio para o que era Seu e os Seus não O receberam. (João 1:4-5; 9-11)
Para aqueles que andam no caminho de Caim há pouca razão para esperança. Talvez existam ganhos ilusórios de cultura ou tecnologia, mas, no final das contas, eles vão ter a mesma sorte de Caim. Vão passar seus dias longe da presença de Deus e vão perceber, finalmente, que seus dias na terra foram cheios de tristeza e pesar.
Nós, porém, podemos nos regozijar, pois há um caminho melhor, o caminho de Abel.
Pela fé, Abel ofereceu a Deus, mais excelente sacrifício do que Caim; pelo qual obteve testemunho de ser justo, tendo a aprovação de Deus quanto às suas ofertas. Por meio dela, também mesmo depois de morto, ainda fala. (Hebreus 11:4)
Para que dessa geração se peçam contas do sangue dos profetas, derramado desde a fundação do mundo; desde o sangue de Abel até ao de Zacarias, que foi assassinado entre o altar e a Casa de Deus. Sim, eu vos afirmo, contas serão pedidas a esta geração. (Lucas 11:50-51)
E a Jesus, o Mediador da nova aliança, e ao sangue da aspersão que fala cousas superiores ao que fala o próprio Abel. (Hebreus 12:24)
O que fez a diferença entre Caim e Abel foi a fé. Abel não confiou em si mesmo, mas em Deus. Seu sacrifício foi um sacrifício melhor porque evidenciava sua fé e refletia que seu alvo era Deus. Sem dúvida ele também tinha alguma compreensão do valor do sangue derramado de uma vítima inocente.
Mas Abel foi mais do que um exemplo de crente primitivo, ele foi, de acordo com nosso Senhor, um profeta. Talvez também pelos lábios, mas com certeza pelas suas obras ele proclamou ao irmão o caminho de acesso a Deus. Ele também foi profeta quando predisse em sua morte o destino de muitos que viriam tempos depois para pregar a palavra de Deus aos não crentes.
Embora Deus tenha valorizado o sangue de Abel que foi derramado pela sua fé, esse sangue não deve ser comparado àquele mais excelente que foi derramado por Jesus Cristo. O sangue de Abel foi um testemunho de fé. O sangue de Cristo é o agente purificador pelo qual os homens são purgados de seus pecados e libertos do castigo da eterna separação de Deus. Você já depositou sua fé no sangue de Jesus como meio de Deus, o único meio, para purificá-lo de seus pecados? Por que não faz isso hoje mesmo?
Tradução e Revisão: Mariza Regina de Souza
1 Cf. H. C. Leupold, Exposition of Genesis (Grand Rapids: Baker‑Book House, 1942), I, p. 189.
2 Literalmente, Eva replicou: “Consegui um filho, o Senhor”. Será que ela acreditava ter gerado o Salvador? Claro, isso é possível. Mas, o mais provável é que ela tenha reconhecido que Deus lhe deu a capacidade de dar à luz uma criança, uma criança por meio da qual sua libertação pudesse chegar rapidamente.
3 “A oferta aqui é minha, que nas relações humanas era um presente de admiração ou de lealdade e, como termo ritual, poderia descrever um animal ou, com mais freqüência, uma oferta de cereais (p. e. I Sm. 2:17; Lv. 2:1)” Derek Kidner, Genesis: An Introduction and Commentary (Chicago: Inter-Varsity Press, 1967), p. 75
4 Estas palavras são quase idênticas às do versículo 16 do capítulo três: “Teu desejo será para o teu marido, e ele te governará”. Será que Deus está sugerindo que a mesma tentação (ou, pelo menos o mesmo tentador) que Adão e Eva não conseguiram resistir é agora enfrentada por Caim?
5 Gerhard VonRad, Genesis (Philadephia: The Westminster Press, 1972), p. 106.
6 A pena capital só foi instituída por Deus no capítulo nove. Parece que “uma sentença de vida” como errante e vagabundo seria maior punição para Caim do que condená-lo à morte.
7 VonRad sugere uma tatuagem ou algo semelhante (página 107). A mesma palavra para sinal é encontrada em 9:13 e 17:11.
8 “Já que esse invocar pelo uso do nome definitivamente implica em adoração pública, temos aqui o primeiro registro de um culto público regular. Pressupõe-se que o culto particular seja anterior. A grande importância da adoração pública, tanto no caso de necessidade pessoal, como em caso de confissão pública, é lindamente estabelecida por este breve registro.” Leupold, p. 228.
Meus pais tiveram o privilégio de passar um ano dando aulas em Taiwan. Enquanto estavam em Taipei, eles conheceram um jovem chinês que queria aprender a ler e falar o inglês com mais fluência. Meu pai concordou em encontrar-se com “Johnny” uma vez por semana. Ele lhe disse que não cobraria nada pelas aulas e que o texto para os estudos seria o evangelho de Mateus. Aliás, Johnny recebeu a salvação no capítulo 16.
Uma das fitas que minha família nos mandou de Taiwan na época do Natal continha uma gravação de Johnny lendo Mateus em inglês. Se der para imaginar, ele lia a genealogia de Mateus capítulo um. Que introdução à língua inglesa e à Bíblia!
As genealogias nunca foram os trechos mais lidos da Palavra de Deus. Ray Stedman conta a história de um velho ministro escocês que ia ler o primeiro capítulo do evangelho de Mateus para sua igreja:
Ele começou: “Abraão gerou a Isaque, e Isaque gerou a Jacó, e Jacó gerou a Judá”. O velho senhor deu olhada no texto, viu a lista que se seguia e disse: “e eles continuaram gerando um ao outro página abaixo, até a metade da página seguinte”1.
Se formos honestos, é isso o que a maioria de nós faz com as genealogias da Bíblia — a gente passa por cima delas. Em meu ensino no livro de Gênesis, devo admitir que pensei seriamente em fazer a mesma coisa, ou seja, pular o capítulo cinco. Leupold, em um dos clássicos comentários de Gênesis, dá esta palavra de alerta aos pregadores: “Nem todo mundo se arrisca a usar este capítulo para pregar”2.
E podem acreditar, nem todo mundo mesmo. No entanto, existe um versículo da Escritura que não nos deixará passar por Gênesis cinco sem um estudo sério dessa genealogia: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção e para a educação na justiça” (2 Timóteo 3:16).
Assim sendo, precisamos lidar com este capítulo de Gênesis de forma a discernir seu proveito e benefício para nós. Em todos os meus anos de pregação da Bíblia, aprendi que a inadequação não está no texto da Escritura que é pregado, mas no professor que o expõe.
O quinto capítulo de Gênesis é apenas uma das muitas genealogias contidas na Escritura. Aprender com este capítulo irá nos encorajar e nos ensinar a estudar as outras inúmeras genealogias da Bíblia. De modo inverso, as outras genealogias lançarão uma luz considerável sobre a nossa abordagem deste texto em particular. Portanto, vamos prestar atenção ao propósito geral das genealogias antes de voltar ao nosso texto.
As genealogias dos capítulos 5 e 11 de Gênesis não são, de forma alguma, as únicas dos tempos antigos. Os egípcios tinham listas dos seus reis, assim como os sumérios. Os hititas mantinham catálogos das oferendas reais, sem dúvida de valor histórico e cronológico3. As antigas genealogias do Oriente Próximo são muito elucidativas para determinar a correta interpretação dos registros bíblicos.
Em primeiro lugar, aprendemos que o propósito das genealogias não era o de serem usadas como cronologia4. À primeira vista, quem lê Gênesis capítulo cinco pensa que é preciso apenas somar os números ali contidos para estabelecer a idade da civilização na terra. Ussher, por exemplo, chegou à data de 4.004 aC para os acontecimentos do capítulo um de Gênesis.
A indicação de nomes individuais não implica, necessariamente, numa sequência contínua. Muitas vezes, alguns nomes eram omitidos e os registros genealógicos eram seletivos5.
A expressão “A gerou B” nem sempre implica em descendência direta6. Mateus 1:8 diz que “Jorão gerou Uzias”, no entanto, no Antigo Testamento (2 Reis 8:25; 11:2; 14:1,21) vemos que Jorão foi pai de Acazias, pai de Joás, pai de Amazias, pai de Uzias. Portanto, “gerou” pode significar “gerou uma linhagem que culminou em”7. Como Kitchen afirma, “termos como ‘filho’ e ‘pai’ podem significar não só ‘filho (neto)’ e ‘pai (avô)’, mas também ‘descendente’ ou ‘ancestral’, respectivamente”8.
A disposição das genealogias num padrão claro e organizado também sugere algo diferente de um indicador cronológico. A genealogia de Cristo em Mateus, por exemplo (Mateus 1:1-17), está disposta em três séries de 14 gerações cada. Essa genealogia é conhecida como seletiva.
Nas genealogias do antigo Oriente Próximo, em geral, os números eram de importância secundária9. O propósito principal era estabelecer a identidade familiar de alguém, sua linhagem. Em parte alguma de Gênesis 5, ou da Bíblia, ou de qualquer outro lugar, os números foram indicados para estabelecer algum tipo de cronologia. Às vezes, os números de uma narrativa diferem dos números de outra10. Embora haja muitas explicações para isto, uma delas é que esses números foram fornecidos apenas como um indicador. Números exatos não servem ao propósito da genealogia. Ainda que não ousemos dizer que esses números não são literais, estamos simplesmente apontando a forma como eles eram usados no antigo Oriente Próximo11.
Vamos, então, analisar cuidadosamente as palavras do grande erudito, Dr. B. B. Warfield, quando diz:
Essas genealogias devem ser consideradas dignas de valor somente para o propósito ao qual foram registradas; elas não podem ser adaptadas para uso em outros fins para os quais não foram destinadas, e para os quais não são adequadas. Em especial, fica claro que o objetivo genealógico dessas genealogias não requeria um registro completo de todas as gerações pelas quais passava o descendente das pessoas a quem foram atribuídas; só uma indicação adequada da linhagem particular de onde procedia o descendente em questão. Portanto, um exame melhor das genealogias da Escritura mostra que elas são aplicadas livremente para toda sorte de propósitos e não se pode afirmar com segurança que contenham um registro completo de todas as séries de gerações, embora quase sempre seja óbvio que muitas delas foram omitidas. Não há uma razão inerente à natureza das genealogias bíblicas pela qual uma genealogia de dez ligações registradas, tais como as dos capítulos 5 e 11 de Gênesis, não possa representar um descendente real de cem, mil ou dez mil ligações. O ponto estabelecido pelo registro não é que estas sejam todas as ligações diretas ocorridas entre o início e o fim dos nomes, mas que é uma linhagem onde se pode traçar a ascendência ou descendência de uma pessoa12.
Se não podemos descobrir a idade da terra pela genealogia do capítulo cinco de Gênesis, o que vamos ganhar com seu estudo? Quanto mais penso nesta passagem, mais fica claro que ela precisa ser interpretada à luz do seu contexto. Uma parte significativa desse contexto é a genealogia de Caim no capítulo quatro. Portanto, o significado e a aplicação da genealogia do capítulo cinco podem ser obtidos por comparação e contraposição com o capítulo quatro.
Geralmente se diz que no capítulo quatro Moisés nos dá a genealogia de Caim, enquanto no capítulo cinco ele descreve a linhagem piedosa de Sete. Em certo sentido, isso é verdade. O capítulo quatro com certeza descreve uma descendência ímpia, enquanto o capítulo cinco registra a história da linhagem de onde viria o Salvador.
Tecnicamente, no entanto, o capítulo cinco não é o registro da linhagem de Sete, mas o de Adão.
Este é o livro da genealogia de Adão. No dia em que Deus criou o homem, à semelhança de Deus o fez; homem e mulher os criou, e os abençoou, e lhes chamou pelo nome de Adão, no dia em que foram criados. Viveu Adão centro e trinta anos, e gerou um filho à sua semelhança, conforme a sua imagem, e lhe chamou Sete. (Gênesis 5:1-3)
Tenho tentado decifrar a aparente repetição desses versículos iniciais. Por que Moisés nos diria aquilo que já sabemos? Observe que os versículos não estão ligados à genealogia do capítulo quatro, mas à do capítulo cinco. A genealogia de Caim termina num beco sem saída. Ela começa com o ímpio Caim, termina com o perverso Lameque e é levada pela “enxurrada” do dilúvio.
Moisés começa o capítulo cinco com a terminologia dos capítulos um e dois (por exemplo, ‘criou’, ‘à semelhança de Deus’, ‘homem e mulher’, ‘os abençoou’) para indicar ao leitor que os propósitos e planos de Deus para o homem, iniciados nos primeiros capítulos, devem ser cumpridos por meio da descendência de Adão, mas não pela linhagem de Caim, e sim pela de Sete. O capítulo cinco inteiro é uma descrição da linhagem estreita pela qual virá o Messias.
O contraste espiritual entre as duas linhagens é óbvio. E pode ser facilmente ilustrado pelos dois “Lameques” dos capítulos quatro e cinco. O Lameque (filho de Metusael, 4:18) da linhagem de Caim foi quem deu início à poligamia (4:19). Pior ainda, ele foi um assassino que se gabou do seu crime (4:23) e fez pouco das palavras de Deus ditas a Caim (4:24).
O Lameque do capítulo cinco (filho de Matusalém e pai de Noé) foi um homem piedoso. O nome de seu filho revela sua compreensão da queda do homem e da maldição de Deus sobre o solo (cf. 5:29). Isso também indica que ele acreditava que Deus libertaria o homem da maldição por meio do descendente de Eva. Creio que Lameque entendeu ainda que isso aconteceria especificamente por intermédio do filho dado por Deus a ele.
Na história dos descendentes de Caim nenhum número é empregado, enquanto na linhagem de Sete há um padrão numérico definido. Os números no capítulo cinco especificamente fornecem: 1) a idade do indivíduo quando do nascimento do filho mencionado; 2) os anos vividos após o nascimento desse filho;13 e 3) a idade do homem na época da sua morte. Basicamente, a vida da pessoa cai em uma das duas partes, A. F. e D. F.: antes ou depois do nascimento do filho. Esta não é uma divisão sem importância.
A duração da vida dos homens no capítulo cinco é extraordinariamente longa, mas qualquer tentativa de explicar esse fato de alguma forma que não seja entendendo esses números literalmente é simplesmente inútil. Sem dúvida, as condições eram muito diferentes antes do dilúvio.
Moisés, com certeza, pretendia nos impressionar com a longevidade daqueles homens. Esta é, obviamente, uma das razões pelas quais a idade deles foi incluída de forma tão evidente. Uma vida longa tornaria mais fácil a povoação da terra. Minha esposa e eu, em 17 anos de casados (NT: à época em que este estudo foi escrito), tivemos seis filhos. Imagine o que poderia ser feito em 900 anos!
Além do mais, Moisés, com isso, estaria mostrando que o homem originalmente foi planejado para viver muitos anos, mesmo depois da queda. Certamente a promessa de um reino milenar, onde o homem viveria até uma idade bem avançada (cf. Isaías. 65:20), é apoiada por este capítulo. Longevidade não era uma coisa nova, era simplesmente algo recuperado.
O principal contraste entre as linhagens de Caim e Sete é a ênfase de cada uma delas. À linhagem de Caim é creditado o que se pode chamar de “progresso secular” e grandes realizações. Caim edificou a primeira cidade (4:17). As contribuições tecnológicas e culturais vieram de seus descendentes. Trabalhadores em metal, pecuaristas e músicos vieram da sua linhagem.
Agora, o que é enfatizado na linhagem de Sete? Nenhuma menção é feita a grandes contribuições ou realizações. Duas coisas, no entanto, distinguem os homens do capítulo cinco. Em primeiro lugar, eles foram homens de fé (cf. Enoque, 5:18, 21-24; Lameque, 5:28-31). Esses homens olharam para o passado e compreenderam o fato de que o pecado foi a raiz de seus problemas e pesares. E olharam para o futuro na expectativa da redenção que Deus ia providenciar por meio da sua descendência.
Isso nos leva à sua segunda contribuição — eles geraram descendentes piedosos por meio dos quais os planos e propósitos divinos teriam continuidade. Ora, não está escrito que cada de um de seus filhos fosse temente a Deus. Contudo, sabemos que eles foram e que por meio deles e de seus filhos a linhagem continuou até culminar em Noé. Embora o resto da humanidade devesse ser destruído no dilúvio, em Noé, a raça humana (mais ainda, o descendente de Eva) seria preservada. A esperança dos homens, portanto, estava na preservação de uma descendência temente a Deus.
Mas que lição isso seria para os israelitas! Quando chegassem à terra de Canaã, eles encontrariam um povo completamente diferente dos egípcios. Os egípcios os desprezavam e não davam a mínima para casamentos mistos; os cananeus, no entanto, tentariam se casar com eles (cf. Gênesis 46:34; Deuteronômio 7:1 e ss; Números 25:1 e ss). Casar-se com os cananeus seria abandonar o Deus de Israel. Misturar-se com eles significava poluir a linhagem temente a Deus por meio da qual viria o Messias.
Deus tinha prometido abençoar a fé e obediência dos israelitas. Ele lhes daria chuva, boa colheita e gado (Deuteronômio 28). No entanto, com casamentos mistos, Israel talvez depositasse sua confiança não no Deus vivo, mas na tecnologia dos cananeus. Cavalos e carruagens deviam ser os últimos avanços tecnológicos na guerra, mas Deus tinha proibido Israel de acumular esse tipo de armamento. Eles deviam confiar somente nEle (cf. Êxodo 15:4; Deuteronômio 17:14 e ss; Josué 11:6). Fazer aliança com as nações pagãs podia ser o jeito do mundo, mas não o de Deus (2 Reis 18, 19).
Talvez fiquemos surpresos com tanta ênfase na morte na genealogia do capítulo cinco, já que isso não é mencionado no capítulo quatro. Não teria sido mais apropriado ressaltar a morte em conexão com a linhagem ímpia de Caim?
A primeira coisa que precisamos entender é o significado da morte no contexto do livro de Gênesis. Deus tinha dito a Adão que certamente eles morreriam no dia em que comessem do fruto proibido (2:17). Satanás descaradamente negou isso e garantiu a Eva que não seria assim (3:4). O capítulo cinco é um amargo lembrete de que o salário do pecado é a morte e que Deus cumpre a Sua Palavra, para julgar e para salvar.
Mas por que não ressaltar a relação entre a pecaminosidade e a morte? Por que não dar ênfase à morte no capítulo quatro? Deixe-me sugerir uma explicação. No capítulo quatro, a morte não parecia muito popular. Creio que Caim encontrou consolo no fato de ter gerado um filho e de ter dado o nome dele à cidade que edificou. Além disso, sua descendência foi responsável por grandes contribuições tecnológicas e culturais14. Esses “monumentos” de Caim talvez tenham lhe dado algum tipo de conforto.
No entanto, a triste realidade era completamente diferente. Como está escrito no livro de Provérbios: “A memória do justo é abençoada, mas o nome dos perversos cai em podridão” (Provérbios 10:7).
A maior tragédia não foi a morte dos homens do capítulo quatro, pois ela também ocorreu no capítulo cinco. A tragédia foi a descendência de Caim não ter sobrevivido ao julgamento de Deus. Contudo, Noé, o descendente de Sete, sobreviveu. Todos os homens morrerão um dia, mas alguns serão levados ao tormento eterno enquanto o povo da fé passará a eternidade na presença de Deus (cf. João 5:28-29; Apocalipse 20). A aparência externa mostra o que os filhos deste mundo “têm feito”, mas a realidade final é totalmente diferente.
A morte chegou à descendência piedosa de Sete. Isto é repetido oito vezes no capítulo cinco. Mas Enoque é um tipo daqueles que verdadeiramente caminham com Deus. A morte não irá tragá-los. Eles serão conduzidos à eterna presença de Deus, em cuja companhia viverão para sempre. A morte pode ser vista com naturalidade pelos verdadeiros crentes, pois seu aguilhão foi removido pela obra de Deus na morte de Jesus Cristo, o “descendente da mulher” (Gênesis 3:15).
Não posso deixar estes versículos sem mostrar sua relevância para nós hoje. A coisa mais importante do mundo, segundo Moisés, o que determina o destino dos homens, não é sua contribuição à cultura ou à civilização (por mais importante que seja). Quer você tenha ou não granjeado sua reputação por si mesmo, isso é de pouca consequência eterna. O fator decisivo para cada homem mencionado nestes capítulos é somente um: será que seu nome estava no livro de Deus?
Moisés começou o capítulo cinco com estas palavras: “Este é o livro da genealogia de Adão. No dia em que Deus criou o homem, à semelhança de Deus o fez” (Gênesis 5:1).
E, no último livro da Bíblia, encontramos as seguintes palavras:
Vi também os mortos, os grandes e os pequenos, postos em pé diante do trono. Então se abriram os livros. Ainda outro livro, o livro da vida, foi aberto. E os mortos foram julgados, segundo as suas obras, conforme o que se achava escrito nos livros. Deu o mar os mortos que nele estavam. A morte e o além entregaram os mortos que neles havia. E foram julgados, um por um, segundo as suas obras. Então, a morte e o inferno foram lançados para dentro do lado de fogo. Esta é a segunda morte, o lago de fogo. E, se alguém não foi achado inscrito no livro da vida, esse foi lançado para dentro do lago de fogo. (Apocalipse 20:12-15)
O que determinou o destino dos homens da Antiguidade foi se seu nome estava no livro da geração de Caim ou no livro da geração de Sete. E o que determinou o nome daqueles que são listados no capítulo cinco foi seu reconhecimento de pecado pessoal e sua fé em Deus para prover a salvação prometida por Ele.
E hoje em dia, meu amigo, ainda é assim. A pergunta que fica é: em que genealogia você será encontrado? Ainda está em Adão ou já está em Cristo (Romanos 5)? Se você reconhece que é pecador, que merece o castigo eterno de Deus e confia na justiça do Senhor Jesus e na Sua morte substitutiva, você está em Cristo. Seu nome está no livro da vida. Se não, você está em Adão. Embora suas obras possam impressionar os homens, elas não satisfarão o padrão de Deus para a vida eterna. Em qual livro seu nome será encontrado?
Em segundo lugar, este capítulo nos lembra que o valor de um homem, aos olhos de Deus, deve ser manifestado em seus filhos. Essa é a razão pela qual os presbíteros devem ser avaliados, em parte, por seu desempenho como pais (cf. 1 Timóteo 3; Tito 1).
Como isso deve mudar nossos valores e nossas prioridades! Caim edificou para seu filho, mas Sete edificou seu filho. Caim sacrificou seus filhos ao sucesso. Sete encontrou sucesso nos seus filhos. Como é frequente a nossa necessidade de sermos relembrados das palavras do salmista:
Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam; se o Senhor não guardar a cidade, em vão vigia a sentinela. Inútil vos será levantar de madrugada, repousar tarde, comer o pão que penosamente granjeastes; aos seus amados ele dá enquanto dormem. Herança do Senhor são os filhos; o fruto do ventre, seu galardão. Como flechas na mão do guerreiro, assim os filhos da mocidade. Feliz o homem que enche deles a sua aljava; não será envergonhado, quando pleitear com os inimigos à porta. (Salmo 127)
O salmista está relembrando a quem é viciado em trabalho que lutar pelo sucesso quase sempre sacrifica o que é de maior valor. Ele nos diz que os filhos, o grande presente de Deus aos homens, não são dados durante a labuta, mas durante o sono, não por se levantar cedo e deitar tarde, mas por descansar na fidelidade de Deus.
Que comentário excelente de Gênesis cinco encontra-se nas difíceis palavras de Paulo na primeira carta a Timóteo:
A mulher aprenda em silêncio, com toda a submissão. E não permito que a mulher ensine, nem exerça autoridade de homem; esteja, porém, em silêncio. Porque, primeiro, foi formado Adão, depois, Eva. E Adão não foi iludido, mas a mulher, sendo enganada, caiu em transgressão. Mas ela será preservada pelo nascimento de filhos se eles continuarem em fé e amor, e em santidade com domínio próprio. (1 Timóteo 2:11-15, versículo 15 tradução do Autor)15
As mulheres que não concordam com o ensinamento de Paulo talvez protestem: “Mas como posso encontrar satisfação com todas essas proibições, e como posso contribuir de forma significativa para a igreja?” Paulo diz que, de fato, “o trabalho mais importante de todos para a mulher temente a Deus é criar filhos tementes a Deus”.
E, a fim de não aplicarmos isso somente às mulheres, deixe-me sugerir que o mesmo vale para os homens, embora esta não seja a intenção original de Paulo neste versículo. Pais, vocês estão sacrificando seus filhos pelo sucesso no mundo dos negócios ou no ministério cristão? Não há chamado mais importante do que criar filhos tementes a Deus. Se falharmos neste ponto, teremos falhado no nosso maior chamado.
Sei que há quem não tenha, ou não possa, ter filhos. Por isso, eu lhes digo que não estamos na mesma época dos antigos israelitas. A linhagem piedosa foi preservada e o Messias já veio pela descendência da mulher. No entanto, é vital para o propósito de Deus que os remanescentes fieis continuem a realizar a Sua obra para o homem e por intermédio do homem. Nós, então, precisamos continuar a gerar filhos espirituais e nutri-los com as verdades da Palavra de Deus. Vamos levar a sério esta tarefa.
Tradução e Revisão: Mariza Regina de Souza
1 Ray Stedman, The Beginnings (Waco: Word Books, 1978), p. 47
2 H. C. Leupold, Exposition of Genesis (Grand Rapids: Baker Book House, 1942), I, p. 248.
3 K. A. Kitchen, Ancient Orient and Old Testament (Chicago: Inter‑Varsity Press, 1966 ), pp. 35-36.
4 “No entanto, em uma análise mais cuidadosa dos dados sobre os quais estes cálculos são feitos, não encontramos dados suficientes para fornecer uma base satisfatória à composição de um método cronológico definitivo. Esses dados consistem, em sua grande maioria e apenas em pontos específicos, de registros genealógicos; e nada pode ser claro do que a extrema precariedade de se tentar encontrar inferências cronológicas em registros genealógicos”. A Antigüidade e Unidade da Raça Humana, B. B. Warfield, Biblical and Theological Studies (Philadelphia: The Presbyterian and Reformed Publishing Co., 1968), p. 240.
5 “Essal mistura da genealogia contínua e seletiva não é, de forma nenhuma, incomum. Além do óbvio exemplo de Mateus 1:1-17, a lista do Rei Abydos, no Egito, tranquilamente omite três grupos inteiros de reis (da Nona para a Undécima Dinastia, da Décima Terceira para a Décima Sétima, e os faraós Amarna) em três pontos distintos, no que seria, de outra forma, uma série contínua; outras fontes nos ajudar a saber disso”. Kitchen, p. 38.
6 Ibid.
7 Ibid., pp. 38,39.
8 Ibid., p. 39.
9 Cf. J. N. Oswalt “Cronologia do Velho Testamento”, The International Standard Bible Encyclopedia, edição revista (Grand Rapids: William B. Eerdmans, 1979), I, p. 674.
10 Em Gênesis 5 há consideráveis variações entre o Texto Massorético (o texto Hebraico do Antigo Testamento), a Septuaginta (a tradução grega do Antigo Testamento) e o Pentateuco Samaritano. Para comparar estes números deve-se consultar o gráfico contido no artigo sobre a cronologia do Antigo Testamento da ISBE, I, p. 676.
11 “A mesma observação se aplica a uma segunda classe de dados: declarações cronológicas aleatórias como, por exemplo, a afirmação de Gênesis 15:13 sobre o período de permanência no Egito, ou de 1 Reis 6:1 sobre o lapso de tempo entre o êxodo e a construção do templo de Salomão. Embora não haja justificativa para se desprezar tais afirmações, também não é necessário presumir-se que sejam cômputos cronológicos precisos. Especialmente na sociedade pré-monárquica, longos registros cronológicos são altamente improváveis devido à sua falta de importância. Em vez disso, é de se esperar que as aproximações sejam feitas de várias formas; e o uso de números redondos, em especial, sugere algum grau de aproximação. É a importância desses números para o escritores bíblicos que o intérprete precisa entender antes de tentar construir uma cronologia absoluta sobre eles”. ISBE, p. 674.
12 Warfield, pp. 240-241.
13 Isso não quer dizer que os homens do capítulo cinco não tenham tido outros filhos e filhas. Eles podem ou não ter tido fé em Deus, e podem ou não ter nascido antes do filho indicado como tendo nascido em determinada época da vida de seu pai.
14 Não desejo ser conhecido por dizer, como alguns parecem querer*, que pessoas tementes a Deus devem abandonar todos os esforços para melhorar sua qualidade de vida, enriquecendo-a com contribuições morais, sociais, culturais e tecnológicas. Entendo que essas coisas fazem parte do mandamento de Deus para o homem “dominar a terra” (Gênesis 1:28, etc). O ponto aqui é que a fonte de consolo e conforto dos antigos não foram essas realizações, mas a promessa da salvação de Deus e a Sua fidelidade no seu cumprimento. *Cf. W. H. Griffith Thomas, Genesis, A Devotional Commentary (Grand Rapids: William B. Eerdmans, 1946), p. 63.
*Cf. W. H. Griffith Thomas, Genesis, A Devotional Commentary (Grand Rapids: William B. Eerdmans, 1946), p. 63.
15 O verso 15 é tradução minha, pois reflete melhor o grego. A palavra “mulher” fornecida pela NASV aqui é literalmente “ela” (singular). O “elas” da NASV é plural e, por isso, deve se referir ao “filhas” anterior, que também está no plural.
As tentativas de se produzir uma raça superior não tiveram início com Adolf Hitler, nem terminaram com ele. Nossa geração parece ter fixação por super humanos. Super Homem, Homem Biônico, Mulher Biônica, Hulk, e muitos outros personagens da televisão versam sobre o mesmo tema. E o domínio dessa super-raça não deve ser entendido apenas no campo da ficção. É quase assustador saber que os geneticistas vêm tentando criar humanos superiores enquanto o aborto pode se tornar um meio de eliminar sistematicamente os indesejáveis. Outro dia, li no jornal um artigo que falava sobre uma organização que disponibiliza o esperma de ganhadores do Prêmio Nobel para determinadas mulheres.
Contudo, é bem mais difícil determinar as últimas consequências dessas tentativas do que encontrar sua origem. Seu início está registrado no sexto capítulo do livro de Gênesis. Devo dizer, no entanto, antes de começar o estudo, que há mais discordância por centímetro quadrado neste texto do que em qualquer outro lugar da Bíblia. Em geral, as maiores dificuldades com esta passagem vêm dos teólogos conservadores. Isso se deve ao fato da narrativa ser classificada como lenda por aqueles que não tomam a Bíblia ao pé da letra ou não a levam a sério. Os eruditos conservadores precisam explicar este episódio de acordo com aquilo que Moisés afirmou ser, um acontecimento histórico. Embora o texto suscite grandes diferenças de interpretação, isso não tem muita importância, pois não irá afetar o fundamento da salvação eterna de ninguém. Em geral, as pessoas de quem mais discordo são justamente meus irmãos em Cristo.
A interpretação dos versículos 1 a 8 depende da definição de três termos-chave: “os filhos de Deus” (2 e 4), “as filhas dos homens” (2 e 4), e os “nefilins” (4). Existem três interpretações principais destes termos que tentarei descrever, começando por aquela que, a meu ver, é a menos provável, e terminando com a que me parece mais satisfatória.
Segundo quem defende este ponto de vista, “os filhos de Deus” são os homens piedosos da linhagem de Sete. As “filhas dos homens”, as filhas dos ímpios cainitas. E os “nefilins”, os homens ímpios e violentos resultantes dessa união pecaminosa.
O principal fundamento para essa interpretação é o contexto dos capítulos 4 e 5. O capítulo quatro descreve a ímpia geração de Caim, enquanto no capítulo cinco vemos a piedosa linhagem de Sete. Em Israel, a separação era uma parte vital da responsabilidade religiosa daqueles que verdadeiramente adoravam a Deus. O acontecimento do capítulo seis foi uma transgressão dessa separação que ameaçou a descendência piedosa da qual devia nascer o Messias. Essa transgressão foi a causa do dilúvio que viria a seguir. O mundo ímpio foi destruído e o justo Noé e sua família, por meio de quem seria cumprida a promessa de Gênesis 3:15, foram preservados.
Embora esta interpretação tenha a característica louvável de explicar a passagem sem criar problemas doutrinários ou teológicos, o que ela oferece em termos de ortodoxia é feito às expensas de uma prática exegética aceitável.
Em primeiro lugar, as definições dadas por essa interpretação não emergem do texto ou mesmo se adaptam a ele. Em lugar algum os descendentes de Sete são chamados de “os filhos de Deus”.
O contraste entre a linhagem piedosa de Sete e a linhagem ímpia de Caim talvez seja enfatizado demais. Não tenho absoluta certeza de que a linhagem de Sete, como um todo, tenha sido piedosa. Enquanto todos os descendentes da linhagem de Caim parecem ter sido ímpios, só um punhado dos descendentes de Sete são chamados de piedosos. O ponto que Moisés deseja ressaltar no capítulo cinco é que Deus preservou um remanescente justo pelo qual Suas promessas a Adão e Eva seriam cumpridas. Tem-se a distinta impressão de que bem poucas pessoas temiam a Deus naqueles dias (cf. 6:5-7, 12). Aparentemente, só Noé e sua família podiam ser chamados de justos na época do dilúvio. Teria Deus deixado de salvar algum justo?
Além disso, “as filhas dos homens” dificilmente poderiam se limitar somente às filhas dos cainitas. No versículo um Moisés escreveu: “como se foram multiplicando os homens na terra, e lhes nasceram filhas” (Gênesis 6:1).
É difícil concluir que os “homens” aqui não sejam os homens em geral ou a raça humana. Segue-se que a referência às suas “filhas” seria igualmente geral. Deduzir que as “filhas dos homens” no versículo dois seja algo diferente, um grupo mais restrito, é ignorar o contexto da passagem.
Por estas e outras razões1, devo concluir que esta posição é exegeticamente inaceitável. Embora cumpra os requisitos da ortodoxia, ela não se submete às leis da interpretação.
Reconhecendo as deficiências da primeira posição, alguns eruditos procuraram definir a expressão “os filhos de Deus” comparando-a com as línguas do antigo Oriente Próximo. É interessante saber que alguns governantes eram identificados como filho de um deus em particular. No Egito, por exemplo, o rei era chamado de filho de Rá2.
No Antigo Testamento, a palavra hebraica para Deus, Elohim, é usada para homens em posição de autoridade:
Então, o seu senhor o levará aos juízes que agirão em nome de Deus. (Êxodo 21:6, seguido do comentário à margem da NASV)
Deus assiste em Sua própria congregação; Ele julga em meio aos governantes (literalmente, os deuses, Salmo 82:1, cf. também 82:6)
Esta interpretação, como a dos anjos caídos, tem suas raízes na antiguidade3. De acordo com esta proposta, os “filhos de Deus” são nobres, aristocratas e reis.
Esses déspotas ambiciosos cobiçavam poder e riqueza e queriam se tornar “homens de renome”, ou seja, célebres (cf. 11:4)! Seu pecado não era o “casamento misto entre dois grupos, ou entre dois mundos (anjos e homens), ou entre duas comunidades religiosas (descendentes de Sete e de Caim), ou ainda entre duas classes sociais (plebe e realeza) — seu pecado era a poligamia”. Era o mesmo tipo de pecado de Lameque, o descendente de Caim, o pecado da poligamia, mais especificamente visto na forma de um harém, instituição característica da corte de um antigo déspota oriental. Nessa transgressão, os “filhos de Deus”, com frequência, violavam o dever sagrado de seu ofício como guardiães das ordenanças gerais de Deus para a conduta humana4.
No contexto de Gênesis 4 e 5, encontramos algumas evidências que poderiam ser interpretadas como suporte ao ponto de vista sobre os déspotas. Caim edificou uma cidade e em seguida deu a ela o nome de seu filho Enoque (versículo 4:17). As dinastias seriam mais facilmente estabelecidas num ambiente urbano. Sabemos, ainda, que Lameque teve duas mulheres (versículo 4:19). Embora isso esteja bem longe de ser um harém, poderia ser visto como um passo nessa direção. Esta posição também define “as filhas dos homens” como mulheres e não só como as filhas da linhagem de Caim.
Apesar desses fatores, esta interpretação provavelmente nunca teria sido concebida não fossem os “problemas” criados pela posição sobre os anjos caídos. Embora os reis pagãos fossem considerados como filhos de alguma divindade, nenhum rei israelita foi assim designado. É bem verdade que os nobres e algumas autoridades foram, ocasionalmente, chamados de “deuses”, mas não de “filhos de Deus”. Essa interpretação prefere ignorar a definição precisa fornecida pelas próprias Escrituras.
Além disso, toda a idéia de homens famintos de poder, procurando estabelecer uma dinastia com a formação de um harém, parece forçada nessa passagem. Quem teria tirado essa idéia do próprio texto, a menos que impusesse isso a ele? E mais, a definição dos nefilins como sendo meros homens violentos e tirânicos também parece inadequada. Por que tais homens seriam mencionados com tanta deferência se fossem como quaisquer outros daquela época? (cf. 6:11, 12). Embora a interpretação dos déspotas seja menos violenta ao texto do que a dos descendentes de Sete e Caim, ainda assim ela me parece inapropriada.
De acordo com esta posição, os “filhos de Deus” dos versículos 2 e 4 são anjos caídos, os quais assumiram uma forma semelhante à dos homens. Esses anjos se casaram com mulheres da raça humana (descendentes de Caim ou de Sete) e a descendência resultante foram os nefilins. Os nefilins eram gigantes de superioridade física, os quais, por isso, se estabeleceram como homens de renome pelas suas proezas físicas e poderio militar. Essa raça de criaturas meio humanas foi varrida pelo dilúvio, junto com a humanidade em geral, pecadores confessos (versículos 6:11, 12).
Minha pressuposição básica na abordagem do nosso texto é que devemos deixar a Bíblia definir seus próprios termos. Se as definições bíblicas não forem encontradas, então devemos examinar a linguagem e a cultura dos povos contemporâneos. No entanto, a Bíblia define para nós o termo “os filhos de Deus”.
Um dia em que os filhos de Deus vieram apresentar-se perante o Senhor, veio também Satanás entre eles. (Jó 1:6)
Num dia em que os filhos de Deus vieram apresentar-se perante o SENHOR, veio também Satanás entre eles apresentar-se perante o SENHOR. (Jó 2:1)
Quando as estrelas da alva, juntas, alegremente cantavam, e rejubilavam todos os filhos de Deus? (Jó 38:7, cf. Salmo 89:6, Daniel 3:25)
Os eruditos que rejeitam esta posição prontamente reconhecem o fato de que o termo exato é claramente definido na Escritura5. A razão pela qual rejeitam a interpretação dos anjos caídos é por acharem que esse ponto de vista é uma afronta à razão e à Escritura.
A principal passagem problemática citada é a do evangelho de Mateus, onde nosso Senhor disse: “Errais, não conhecendo as Escrituras nem o poder de Deus. Porque, na ressurreição, nem casam, nem se dão em casamento; são, porém, como os anjos no céu” (Mateus 22:29-30).
Eles dizem que nosso Senhor falou que anjos não têm sexo, mas isso é mesmo verdade? Jesus estava comparando homens no céu com anjos no céu. Não está escrito que, no céu, homens ou anjos sejam assexuados, e sim que no céu não haverá casamento. Não há anjos femininos com quem os anjos possam gerar descendência. Nunca foi dito aos anjos “crescei e multiplicai-vos”, como foi dito ao homem.
Quando encontramos anjos descritos no livro de Gênesis, fica claro que eles podem assumir a forma humana, e que seu sexo é masculino. O escritor aos Hebreus menciona o fato de eles poderem ser hospedados sem o conhecimento das pessoas (Hebreus 13:2). Com certeza, eles devem ser bem convincentes como homens. Os homossexuais de Sodoma eram muito bons para julgar a sexualidade. Eles foram atraídos pela “masculinidade” dos anjos que foram lá para destruir a cidade (cf. Gênesis 19:1 e ss, especialmente o versículo 5).
No Novo Testamento, duas passagens parecem se referir ao incidente de Gênesis 6, e dão base à interpretação dos anjos:
Ora, se Deus não poupou a anjos quando pecaram, antes, precipitando-os no inferno os entregou a abismos de trevas, reservando-os para o juízo. (2 Pedro 2:4)
E a anjos, os que não guardaram o seu estado original, mas abandonaram o seu próprio domicílio, ele tem guardado sob trevas, em algemas eternas, para o juízo do Grande Dia. (Judas 6)
Estes versículos podem indicar que alguns anjos que caíram com Satanás não ficaram contentes com seu “próprio domicílio” e, por isso, começaram a viver entre os homens (e mulheres) como homens. O julgamento de Deus foi colocá-los em algemas6 para que não pudessem mais servir aos propósitos de Satanás na terra como fazem os anjos caídos que ainda estão soltos executando suas ordens.
Os nefilins são claramente indicados como resultado da união entre os anjos caídos e as mulheres. Embora os estudos dessa palavra apresentem diversas sugestões para o significado do termo, sua definição bíblica vem de apenas um outro exemplo na Escritura, Números 13:33:
Também vimos ali gigantes (nefilins, os filhos de Anaque são descendentes de gigantes), e éramos, aos nossos próprios olhos, como gafanhotos e assim também o éramos aos seus olhos.
Portanto, entendo que os nefilins sejam uma raça de super-humanos, produto dessa invasão angélica à terra7.
Esta interpretação não só está em conformidade com o uso bíblico da expressão “filhos de Deus”, como também é a que mais se encaixa no contexto da passagem. Os efeitos da queda são vistos na descendência ímpia de Caim (capítulo 4). Embora ele e seus descendentes estivessem “sob o domínio de Satanás”, Satanás conhecia muito bem as palavras de Deus de Gênesis 3:15, que da descendência da mulher Deus traria o Messias que iria destruí-lo. Não sabemos se toda a linhagem de Sete foi temente a Deus. Na verdade, podemos supor exatamente o contrário. Só Noé e sua família direta parecem justos na época do dilúvio.
Gênesis seis descreve uma tentativa desesperada de Satanás para atacar o remanescente piedoso mencionado no capítulo cinco. Enquanto um descendente justo é preservado, a promessa de Deus paira sobre a cabeça de Satanás, como uma ameaça da sua destruição iminente.
As filhas dos homens não foram violentadas ou seduzidas. Elas simplesmente escolheram o marido da mesma forma que os anjos as selecionaram — pela atração física. Ora, se naquela época, você fosse uma mulher desimpedida, a quem escolheria? A um homem atraente e musculoso, famoso por sua força e por seus feitos, ou a alguém que comparado a ele tivesse a aparência de um fracote de meia tigela?
Aquelas mulheres tinham esperança de ser a mãe do Salvador. Quem seria o pai mais provável dessa criança? Não seria um “valente de renome”, que também podia se gabar de imortalidade? Alguns descendentes piedosos de Sete viveram quase 1000 anos, mas os nefilins não morreriam se fossem anjos. E assim começou uma nova raça.
Enquanto os versículos 1 a 4 ressaltam a invasão dos anjos no início de uma nova super-raça, os versículos 5 a 7 servem para informar que a humanidade em geral merecia a intervenção destrutiva de Deus na história — o dilúvio. No entanto, é aqui que encontramos um problema muito sério, pois quase parece que Deus muda de ideia, como se a criação do homem fosse um erro colossal da Sua parte. Vamos tratar, então, da questão: “Será que Deus muda de ideia?” Vários fatores precisam ser considerados.
Deus não é homem para que minta, e nem filho de homem para que se arrependa. Porventura tendo ele prometido não o fará, ou tendo ele falado, não o cumprirá? (Números 23:19)
Também a glória de Israel não mente, nem se arrepende, porquanto não é homem, para que se arrependa. (1 Samuel. 15:29, cf. também Salmos 33:11, 102:26-28, Hebreus 1:11-12, Malaquias 3:6, Romanos 11:29, Hebreus 13:8 e Tiago 1:17).
Disse mais o Senhor a Moisés: Tenho visto este povo, e eis que é povo de dura cerviz. Agora, pois, deixa-me, para que se acenda contra eles o meu furor, e eu os consuma; e de ti farei uma grande nação... Então, se arrependeu o Senhor do mal que dissera havia de fazer ao povo. (Êxodo 32:9-10, 14)
Viu Deus o que fizerem, como se converteram do seu mal caminho e Deus se arrependeu do mal que tinha dito lhes faria e não o fez. (Jonas 3:10)
Então o Senhor se arrependeu disso. Não acontecerá, disse o Senhor... E o Senhor se arrependeu disso. Também não acontecerá, disse o Senhor Deus. (Amós 7:3, 6)
a) A expressão “Deus se arrependeu” é um antropomorfismo, ou seja, uma descrição de Deus que assemelha Suas ações às ações do homem. De outra forma, como o homem poderia entender o pensamento de Deus? O “mudar de ideia” de Deus pode ser apenas a maneira de ver da perspectiva do homem. Em ambos os textos, de Gênesis 22 (cf. versículos 2, 11-12) e de Êxodo 32, o que Deus propôs foi uma prova. Nos dois casos, Seu propósito eterno não mudou.
b) Nos casos em que tanto julgamento quanto bênção são prometidos, pode haver uma condição implícita ou explícita. A mensagem pregada por Jonas aos ninivitas é um deles:
Começou Jonas a percorrer a cidade de caminho dum dia, e pregava, e dizia: Ainda quarenta dias, e Nínive será subvertida. Os ninivitas creram em Deus e proclamaram um jejum, e vestiram-se de pano de saco, desde o maior até o menor. Chegou esta notícia ao rei de Nínive: ele levantou-se do seu trono, tirou de si as vestes reais. cobriu-se de pano de saco e assentou-se sobre a cinza. E fez-se proclamar e divulgar em Nínive: Por mandato do rei e seus grandes, nem homens, nem animais, nem bois, nem ovelhas provem coisa alguma, nem, os levem ao pasto, nem bebam água; mas, sejam cobertos de pano de saco, tanto os homens como os animais, e clamarão fortemente a Deus; e se converterão, cada um do seu mau caminho e da violência que há nas suas mãos. Quem sabe se voltará Deus, e se arrependerá, e se apartará do furor da sua ira, de sorte que não pereçamos? (Jonas 3:4-9)
O que era desejado pelos ninivitas, para Jonas era um fato. Eles clamaram por misericórdia e perdão, no caso de Deus poder ouvir e perdoar. Quando eles se arrependeram e Deus demonstrou compaixão, Jonas ficou louco de raiva:
Com isso, desgostou-se Jonas extremamente e ficou irado. E orou ao Senhor e disse: Não foi isso o que eu disse, estando ainda na minha terra? Por isso, me adiantei, fugindo para Társis, pois sabia que és Deus clemente, e misericordioso, e tardio em irar-se, e grande em benignidade, e que se arrepende do mal. (Jonas 4:1-2)
Jonas sabia que Deus era amoroso e clemente. A mensagem pregada por ele indicava uma exceção. Se os ninivitas se arrependessem, Deus os perdoaria. Foi sobre isso que Jeremias escreveu, dizendo:
No momento em que eu falar acerca de uma nação de ou de um reino para o arrancar, derribar e destruir, se tal nação se converter da maldade contra a qual eu falei, também eu me arrependerei do mal que pensava fazer-lhe. E, no momento em que eu falar acerca de uma nação ou de um reino, para o edificar e plantar, se ele fizer o que é mal perante mim e não der ouvidos à minha voz, então, me arrependerei do bem que houvera dito lhe faria. (Jeremias 18:7-10)
c) Embora o decreto de Deus não possa ser alterado, precisamos admitir que Ele é livre para agir como quiser. E, embora Seu roteiro possa mudar, Seus propósitos não mudam, “porque os dons e a vocação de Deus são irrevogáveis” (Romanos 11:29).
Deus prometeu levar Seu povo à terra de Canaã. Devido à sua incredulidade, a primeira geração não tomou posse da terra, mas a segunda sim. Quando Jesus veio, Ele Se ofereceu a Israel como o Messias. A rejeição de Israel tornou possível oferecer o evangelho aos gentios. Apesar disso, quando os propósitos de Deus para os gentios forem cumpridos, Deus derramará Sua graça e salvação novamente sobre os judeus. O roteiro de Deus pode mudar, mas não Seus propósitos (cf. Romanos 9-11).
d) Ainda que a vontade de Deus (Seu decreto) não possa mudar e não mude, Ele é livre para mudar Suas emoções. Gênesis 6:6-7 descreve a reação de Deus ao pecado humano. Pesar é a resposta de amor ao pecado. Deus não é estóico; Ele é uma pessoa que Se regozija na salvação do homem e em sua obediência, e que Se aflige diante da incredulidade e da desobediência. Embora o propósito de Deus para a raça humana não mude, Sua atitude muda. Com certeza, um Deus Santo deve Se sentir diferente com relação ao pecado e com relação à obediência. Esse é o ponto dos versículos seis e sete. Deus é afligido pelo pecado do homem e suas consequências. No entanto, Ele cumprirá Seus propósitos independentemente disso. Embora tal circunstância tenha sido decretada desde a eternidade pretérita, Deus jamais poderia se regojizar nela, só lamentar a maldade e a obstinação do homem.
Uma ilustração semelhante é a reação emocional de nosso Senhor no Jardim do Getsêmani (cf. Mateus 26:36 e ss). Desde a eternidade pretérita Ele tinha Se proposto a ir à cruz para comprar a salvação do homem. No entanto, quando o momento da Sua agonia se aproximou, Ele teve medo. Seu propósito não mudou, mas Suas emoções, sim.
Para os antigos israelitas esta passagem ensinou diversas lições valiosas. Primeiro, ela lhes deu uma explicação adequada para o dilúvio. Podemos entender que aquela super-raça tinha de ser eliminada. O dilúvio não foi apenas uma forma de Deus julgar os homens pecaminosos, mas também de cumprir Sua promessa de trazer salvação pelo descendente da mulher. Se o relacionamento entre anjos e homens não tivesse sido interrompido, o remanescente piedoso teria deixado de existir (humanamente falando). Segundo, a passagem ilustrou o que Deus tinha dito à serpente, Adão e Eva: “Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e o seu descendente” (Gênesis 3:15a).
Israel não ousou esquecer que havia uma intensa batalha sendo travada, não só entre os descendentes de Caim e Sete, mas entre Satanás e o descendente da mulher. Embora nós estejamos acostumados a tal ênfase no Novo Testamento, os antigos tinham poucas referências diretas a Satanás ou a seus assistentes demoníacos (cf. Gênesis 3, Deuteronômio 32:17, 1 Crônicas 21:1, Jó 1 e 2, Salmo 106:37, Daniel 10:13, Zacarias 3:1-2). Esta passagem seria uma vívida lembrança da exatidão da Palavra de Deus.
Terceiro, a passagem ressaltou a importância de Israel manter sua pureza racial e espiritual. O remanescente crente em Deus tinha de ser preservado. Quando os homens deixaram de perceber a importância disso, Deus teve de julgá-los com rigor. Quando a nação entrasse na terra de Canaã, poucas lições seriam mais importantes do que a necessidade de separação.
Muito embora o Novo Testamento tenha muito mais a dizer sobre as atividades de Satanás e seus demônios, poucos de nós parecem levar a sério a nossa luta espiritual. Nós realmente acreditamos que a igreja consegue operar somente com o esforço e a sabedoria humana, ou com uma ajudazinha de Deus. Muitas vezes tentamos viver a vida espiritual no poder da carne. Dizemos às pessoas para fazer uma nova dedicação da sua vida e redobrar seus esforços, mas deixamos de lhes dizer que a nossa única força é aquela que Deus nos dá.
Hoje, a batalha travada entre os filhos de Satanás e os filhos de Deus (no sentido do Novo Testamento — João 1:12, Romanos 8:14, 19) é muito mais intensa do que foi nos tempos antigos. O destino de Satanás está selado e seus dias estão contados (cf. Mateus 8:29). Vamos, pois, nos revestir da armadura espiritual de Deus para a luta espiritual de que somos parte (Efésios 6:10-20).
Em segundo lugar, precisamos entender que Satanás ainda hoje nos ataca com os mesmos instrumentos. Não conheço nenhum caso de seres angélicos caídos invadindo a terra em forma humana para promover a causa de Satanás em nossos dias. No entanto, Satanás continua trabalhando sutilmente por intermédio dos homens.
Porque os tais são falsos apóstolos, obreiros fraudulentos, transformando-se em apóstolos de Cristo. E não é de se admirar, porque o próprio Satanás se transforma em anjo de luz. Não é muito, pois, que os seus próprios ministros se transformem em ministros de justiça; e o fim deles será conforme as suas obras. (2 Coríntios 11:13-15)
Assim como Satanás procurou corromper os homens manifestando-se (ou melhor, seus anjos) na forma de seres humanos superiores, hoje ele usa os “anjos de luz”. Nossa tendência é supor que, na maioria das vezes, ele use os réprobos. Às vezes, até parece que esperamos encontrá-lo num patético endemoninhado ou num pobre-coitado desesperado. É fácil atribuir a Satanás esse tipo de coisa. No entanto, seu melhor trabalho e, em minha opinião, o mais comum, é quando usa pregadores aparentemente piedosos, devotos e religiosos que estão atrás do púlpito, ou se assentam no Conselho da igreja, falando de salvação em termos de comunidade e não de almas, e pelas obras ao invés da fé. Satanás continua promovendo sua causa usando homens que não são o que parecem ser.
Por fim, observe que o melhor trabalho de Satanás está justamente nas áreas onde homens e mulheres depositam a esperança da sua salvação. Quando os homens-anjos pediram as filhas dos homens em casamento, eles deviam parecer pais dos mais promissores. Se tais criaturas fossem imortais, sua descendência também não seria? Seria esta a forma de Deus reverter os efeitos da queda e da maldição? Assim deve ter parecido àquelas mulheres.
E é exatamente isso o que Satanás faz ainda hoje. Ah, mas não pense que ele esteja se autopromovendo através do ateísmo ou de outros “ismos”, pois o lugar onde ele faz mais sucesso é justamente na religião. Ele usa sua expressão mais piedosa e emprega terminologia religiosa. Ele não procura acabar com a religião, mas retira dela seu elemento crucial, a fé no sangue derramado de Jesus Cristo como substituto para o pecado dos homens. Ele está sempre pronto a se juntar a qualquer causa religiosa, desde que esse ingrediente seja omitido ou distorcido, ou fique perdido num labirinto de legalismo e libertinagem. Cuidado, meu amigo, Satanás está no mundo da religião. Que melhor maneira de desviar a alma dos santos e de cegar a mente dos homens (2 Coríntios 4:4)?
Onde está sua esperança de imortalidade? Está na sua descendência? Isso não funcionou para Caim. Está no seu trabalho? Você quer construir um império ou erigir um monumento dedicado ao seu nome? Você não será o último. Tudo isso sucumbiu no dilúvio do julgamento de Deus. Só a fé no Deus da Bíblia e, mais especificamente, no Filho enviado por Ele, lhe dará imortalidade e o libertará da maldição. O único jeito para isso acontecer é você se tornar um filho de Deus por intermédio do Filho de Deus.
Jesus lhe disse: Eu sou o caminho, a verdade e a vida, ninguém vem ao Pai senão por mim. (João 4:6)
Tradução e Revisão: Mariza Regina de Souza
1 O problema mais sério desse ponto de vista se encontra no versículo 4. Sob todos os aspectos, os gigantes (nephilim) e os homens poderosos (gibborim) são os descendentes dos casamentos entre os “filhos de Deus” e as “filhas dos homens”. Como diz Kline:
“De forma alguma fica clara a razão pela qual a descendência de casamentos mistos deva ser nephilim-gibborim, no entanto, estes devem ser entendidos dentro do alcance da interpretação provável... Mas sua (a do autor bíblico) referência ao ato conjugal e à gestação encontra justificativa apenas se ele estiver descrevendo a origem dos nephilim-gibborim. A menos que a dificuldade resultante dessa conclusão seja superada, a interpretação do casamento misto nesta passagem deve ser definitivamente descartada”.
Para resumir o problema: “Por que é declarado o tipo de descendência mencionada no versículo quatro se aqueles foram apenas casamentos mistos?” Manfred E. Kober, The Sons of God of Genesis 6: Demons, Degenerates, or Despots? p. 15. Kober cita aqui Meredith G. Kline, “Divine Kingship and Genesis 6:1-4”, Westminster Theological Journal, XXIV, Nov. 1961- May 1962, p. 190.
2 “No Egito o rei era chamado de o filho de Ra (o deus-sol). O rei Sumero-Akkadian era considerado descendente da deusa e um dos deuses, e essa identificação com a divindade remonta aos primórdios, de acordo com Engell. Em uma inscrição há uma referência a ele como “o rei, o filho de seu deus”. O rei Hitita era chamado “filho do deus-tempo”, e o título de sua mãe era Tawannannas (mãe do deus). Na região semítica noroeste o rei era diretamente chamado de filho de deus e o deus era chamado de pai do rei. O texto Ras Shamra (Ugarítico) Krt se refere a deus como o pai do rei e o rei Krt como Krt bn il, o filho de el ou o filho de deus. Assim, com base no uso semítico, o termo be ne ha elohim, os “filhos de deus” ou “filhos dos deuses”, muito provavelmente se refere aos governantes da dinastia de Gênesis 6.” An Exegetical Study of Genesis 6:1-4, Journal of the Evangelical Theological Society, XIII, inverno 1970, pp. 47-48, como citado por Kober, p. 19.
3 Em excelente artigo apresentando sobre esta posição, Kline escreve que, nos tempos antigos, surgiu entre os judeus a opinião de que os “filhos de Deus” de Gênesis 6 seriam aristocratas, príncipes, e nobres, em contraste com as socialmente inferiores “filhas dos homens”. Dessa interpretação, por exemplo, chegou-se à expressão no Targum Aramaico (o Targum de Onkelos traduz o termo como “filhos dos nobres”) e na tradução grega de Symmachus (que interpreta “os filhos de reis ou lordes”) e é seguida por muitas autoridades judaicas até o presente”. Kober, pp; 16-17, referindo-se a Kline, p. 194.
4 Kober, p. 16, citando Birney, p. 49 e Kline, p. 196.
5 Por exemplo, W. H. Griffith Thomas, que sustenta a posição dos descendentes de Caim e de Sete, diz:
“O versículo 2 fala da união de duas linhagem pelo casamento misto. Alguns escritores consideram a frase “filhos de Deus” como se referindo aos anjos, o que é apoiado por outras passagens — cf. Jó 1:6; Salmo 28:1, Daniel. 3:25 — e, de fato, em qualquer lugar da Escritura, a frase invariavelmente quer dizer anjos”. Genesis: A Devotional Commentary (Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1946), p. 65.
6 Será que não é este o cativeiro temido pelos demônios em Marcos 5:10 e Lucas 8:31?
7 Será que o fato de os nefilins serem mencionados depois do dilúvio significa que essa prática continuou mesmo depois dele? Alguns pensam que sim, enfatizando a frase “e também depois” (Gênesis 6:4). Se foi assim, precisamos dizer que isso não ameaçou a promessa de Deus naquela época. Só seria um reforço à importância de não se casar com alguém dos cananeus, entre os quais se encontravam os nefilins.
Pessoalmente, não acho que a super-raça tenha aparecido após o dilúvio. A expressão nefilim, da forma como a entendo, não é sinônima desta, uma super-raça, mas a descrição dela. Refere-se simplesmente à grande estrutura física deles, exatamente como as outras expressões (“homens poderosos”, “homens de renome”) se referem à sua reputação e ao seu poderio militar. Não acho que precisamos encontrar criaturas super-humanas em Números 13:33, só gigantes. A palavra nefilim, portanto, é definida por Moisés em Números como se referindo a uma grande estatura física. Nenhum nome técnico é dado à super-raça, somente descrições que podem ser usadas em qualquer outro lugar para outras criaturas que não sejam anjos.
O mundo conhece muito pouco sobre a Bíblia, mas são poucas as pessoas que desconhecem a história da arca de Noé. Ela é tema de piadas, de pinturas, de filmes sobre sua busca e até mesmo de representações em cerâmica. O conhecimento a respeito do dilúvio é quase universal, mesmo fora do relato bíblico do livro de Gênesis.
No entanto, devido a certas indicações na narrativa de Gênesis e também porque em todos os continentes e entre quase todos os povos são encontradas histórias sobre uma grande inundação, parece que devemos concluir que o dilúvio de Gênesis se não abrangeu toda a terra, no mínimo engolfou toda a raça humana. Todos os relatos se referem a um dilúvio destrutivo ocorrido nos primórdios de cada uma dessas histórias tribais. Em cada caso, um ou mais alguns indivíduos foram salvos e foram encarregados de repovoar a terra. Até agora, os antropólogos já reuniram cerca de 250 a 300 dessas histórias.1
Essa familiaridade com a história é o maior obstáculo ao nosso aproveitamento do estudo do livro de Gênesis. Quando abordamos o texto já estamos com a cabeça-feita, achando que nada ou quase nada irá mudar o nosso pensamento ou a nossa atitude.
Suponhamos, por exemplo, que o tema da história seja juízo e destruição, o que, de certa forma, é verdade. Hollywood faria um estardalhaço em cima disso. Veríamos tudo quanto é tipo de ato pecaminoso representado na tela. Quando o enredo já tivesse esgotado as cenas de luxúria, o foco seria voltado para a destruição e violência. Famílias seriam separadas por correntes tempestuosas. Bebês seriam arrancados de suas mães. Prédios rachariam e desmoronariam na inundação.
Embora essa pareça ser a força propulsora da narrativa, não existem palavras para descrever o processo real que resultou em agonia, sofrimento e morte. Nenhuma cena se passa diante dos nossos olhos de tal devastação. O julgamento, com certeza, é um dos temas do que aconteceu, mas, graças a Deus, há um tema muito maior, o da graça salvadora de Deus. Embora não nos atrevamos a ignorar as advertências do texto, também não podemos perder de vista o seu encorajamento.
Enquanto algumas pessoas atentam para o pecado e a devastação do dilúvio, outras se preocupam com o que causou a inundação, não com o seu significado. Estou certo de que há muita coisa interessante nesse acontecimento para as mentes científicas, no entanto, gostaria de chamar sua atenção para o fato de que muito do que é proposto em nome da ciência é apenas teoria e especulação. Não desejo de forma alguma desacreditar ou desencorajar as pesquisas sobre isso. Só quero dizer que não ousamos construir nossa vida sobre elas e ressaltar que esse tipo de abordagem não é o foco principal da narrativa do dilúvio em Gênesis.
Uma análise detalhada desse fenômeno não é o propósito desta lição, e sim uma visão ampla do significado e da mensagem do dilúvio para as pessoas de todas as épocas. Tendo isso em mente, vamos voltar nossa atenção para o texto.
De modo geral, este trecho trata dos preparativos necessários para o dilúvio. As razões são dadas nos versículos 9 a 12. A revelação é feita a Noé nos versículos 13 a 21. A ordem para entrar na arca está em Gênesis 7:1-4. Gênesis 6:22 e 7:5 registram a obediência de Noé às instruções divinas.
Os versículos 9 a 12 do capítulo 6 e os versículos finais do capítulo 8 são os mais importantes desta passagem, pois ressaltam as razões para o dilúvio e o propósito de Deus para a história. Por isso, vamos dedicar a maior parte do nosso estudo a estes versículos, bem como às passagens do Novo Testamento que tratam deste assunto.
Enquanto o dilúvio foi proposto para destruir a raça humana, a arca foi designada para salvar Noé e sua família, e garantir o cumprimento do propósito divino para a criação e da promessa de salvação de Gênesis 3:15. A chave para o entendimento desta história está na compreensão do contraste entre Noé e sua geração.
Noé era homem justo e íntegro entre os seus contemporâneos; Noé andava com Deus (Gênesis 6:9).
Que epitáfio! Noé era um homem justo. Seu caráter é descrito por apenas duas palavras: justo e íntegro. A palavra justo (do hebraico saddiq)
... é comumente usada em referência aos homens. Significa que eles se ajustam a um padrão. Uma vez que Noé se ajustava ao padrão divino, ele recebeu a aprovação de Deus. No entanto, o termo é basicamente forense. Por isso, embora haja aprovação divina, esta não implica em perfeição da parte de Noé. Implica simplesmente em que as coisas que Deus busca num homem estavam presentes na vida dele.2
Sem qualquer pretensão a ser perfeito, Noé foi um homem que deu crédito à Palavra de Deus. Ele satisfez a expectativa divina para o homem, enquanto o resto da humanidade era vil.
A segunda expressão usada para Noé é “íntegro” (versículo 9). A palavra hebraica é tamim. “Uma vez que a raiz hebraica envolve a idéia de ‘completo’, é justo concluir que somente aquela vida era completa em todos os sentidos, bem estruturada e com todas as qualidades essenciais”.
Abandonando essas duas expressões técnicas, Moisés resumiu a vida de Noé escrevendo: “Noé andava com Deus” (Gênesis 6:9).
Com isso ele deu ênfase ao relacionamento entre Noé e Deus, a intimidade entre eles. Isso também reflete a continuidade daquela convivência. Era um caminhar diário, confiante.
Sem dúvida, esse relacionamento tinha como base a revelação acerca da criação do homem e da sua queda. Mais especificamente, devia incluir a promessa de redenção de Gênesis 3:15. E, com toda probabilidade, alguma outra revelação não registrada por Moisés.
Para mim, a justiça de Noé era baseada mais em sua fé em Deus do que no temor das consequências da desobediência. Pelo que sei, ele não fazia ideia do julgamento divino que ia ser infligido à terra até Deus lhe revelar pessoalmente (versículo 13 e ss). Esta revelação do derramamento da ira divina foi resultado do relacionamento direto de Noé com Deus. Se os homens tivessem sido avisados do dilúvio que estava por vir, eles poderiam muito bem ter obedecido a Deus simplesmente por medo da punição. O relacionamento entre Noé e Deus não era motivado por tal temor, mas pela fé. Fé, não medo, é o motivo bíblico para um relacionamento com Deus (embora deva haver um certo temor respeitoso).
Vamos ser bem claros quanto à justiça de Noé. Era uma justiça que veio pela fé.
Pela fé, Noé, divinamente instruído a cerca de acontecimentos que ainda não se viam e sendo temente a Deus, aparelhou uma arca para a salvação de sua casa; pela qual condenou o mundo e se tornou herdeiro da justiça que vem pela fé. (Hebreus 11:70)
Não foram as obras de Noé que o preservaram do julgamento, mas a graça. “Mas Noé achou graça diante do Senhor” (Gênesis 6:8). Salvação é pela graça, mediante a fé, não por obras, mas para boas obras (Efésios 2:8-10).
Em contraste com a justiça de Noé estava a corrupção do homem: “A terra estava corrompida à vista de Deus e cheia de violência. Viu Deus a terra, e eis que estava corrompida, porque todo o ser vivente havia corrompido o seu caminho na terra”. (Gênesis 6:11-12)
Somente Noé era justo em seus dias. “Disse o Senhor a Noé: Entra na arca, tu e tua casa, porque reconheço que tens sido justo diante de mim no meio desta geração” (Gênesis 7:1).
O que isso nos diz acerca da família de Noé eu não sei, mas não dá para acreditar que todos os que entraram na arca não acreditassem em Deus, pelo menos após o dilúvio! Não havia outros justos para serem introduzidos na arca, pois ninguém mais andava com Deus. Todos os justos relacionados no capítulo cinco morreram antes da ocorrência do dilúvio.
Por sua própria natureza, os homens eram depravados e corruptos. O que Deus determinou destruir já tinha se autodestruído3. O relacionamento entre o homem e seu semelhante podia ser resumido com apenas uma palavra: “violência”.
Gostaria que percebessem que em parte alguma Moisés especifica os pecados daquela geração. Isso poderia despertar nossa curiosidade ou luxúria. Mais ainda, não acredito que as pessoas daquela época foram destruídas por terem se tornado uma sociedade totalmente decadente. O pecador que bate na mulher, ou pratica a homossexualidade, ou vive com uma garrafa pelos becos, não é, necessariamente, a pessoa mais vil aos olhos de Deus. Desconfio que muitas pessoas mortas no dilúvio foram pessoas religiosas. Imagino que a sociedade daqueles dias não era muito diferente, em questão de caráter, de muitas outras, a não ser por uma notável exceção: aparentemente elas não tinham qualquer tipo de restrição. A questão é que, homens educados, bem barbeados, gentis com senhoras idosas, etc, mas fraudam o imposto de renda ou se aproveitam dos outros, são tão pecadores quanto aqueles cujos pecados são socialmente inadmissíveis.
A principal manifestação do pecado do homem é sua rebelião contra Deus e seu espírito independente. Ele supõe que, embora Deus exista, Ele não se importa com o que as pessoas façam ou em que creiam. E, caso Se importe, não é muito. Pior ainda é a conclusão de que isso não é, de forma alguma, da conta de Deus.
Observe como Deus condena esse tipo de atitude:
Então, me respondeu: A iniqüidade da casa de Israel e de Judá é excessivamente grande, a terra se encheu de sangue, e a cidade, de injustiça; e eles ainda dizem: O SENHOR abandonou a terra, o SENHOR não nos vê. Também quanto a mim, os meus olhos não pouparão, nem me compadecerei; porém sobre a cabeça deles farei recair as suas obras. (Ezequiel 9:9-10)
As inclinações perversas do homem pairam sobre as chamas do inferno por causa da sugestão ou crença de que, embora Deus exista, Ele não se preocupa com o pecado, nem intervém na história humana para tratar dele. Esse tipo de pensamento é fatal.
Deus não escondeu de Noé Seus intentos. Ele lhe revelou Sua decisão de destruir a civilização perversa daquela época e de preservá-lo, bem como ao descendente por meio de quem a promessa de salvação seria cumprida. Noé recebeu a revelação de que essa destruição viria por meio de um dilúvio, e que ele e sua família seriam salvos por meio de uma arca.4
Mesmo não sendo necessário para nós o registro de todas as instruções para a construção da arca, é preciso observar que os detalhes fornecidos são específicos, até no que se refere à coleta de alimento. A arca era um barco incrível, 135 metros de comprimento, 22,5 metros de largura e 13,5 metros de altura (6:15). Ela serviria para salvar tanto o homem quanto os animais.
A arca, agora completa, tendo sido construída ao longo de muitos anos de acordo com o plano divino, é ocupada ao mando de Deus (7:1) pelo homem e pelos animais. Antes do início do dilúvio, Deus fecha a porta. Imagino que se não fosse assim, Noé a teria aberto para quem depois quisesse entrar. No entanto, o dia de salvação tinha de chegar ao fim.
A fonte de água parece sobrenatural. Talvez nunca tivesse chovido (cf. 2:6). Agora a chuva era torrencial. Além disso, as “fontes do grande abismo” (7:11) foram abertas. A água, vinda de cima e de baixo, irrompe durante quarenta dias (7:12). As águas prevalecem durante 150 dias (7:24) sobre a terra, e, em seguida, diminuem ao longo de alguns meses. Cinco meses após o início do dilúvio, a arca pousa sobre o monte Ararate (8:4, cf. 7:11). Leva um tempo considerável para que elas retrocedam e o solo fique seco o suficiente para se andar sobre ele. Noé e sua família passaram pouco mais de um ano dentro da arca. Ao mando do Senhor, alegremente (tenho certeza) eles desembarcam.
A primeira coisa que Noé faz ao colocar os pés em terra firme é oferecer sacrifícios a Deus. Esta é mais uma evidência da sua fé e, com certeza, expressão da sua gratidão pela salvação proporcionada por Deus.
Em resposta ao sacrifício de Noé, Deus faz uma promessa solene. Gostaria que entendessem, no entanto, que este é um compromisso firmado na mente de Deus — é uma promessa que Ele faz a Si mesmo. A manifestação dessa decisão é dada a Noé no capítulo 9. Isto é o que Deus propôs Consigo mesmo:
E o Senhor aspirou o suave cheiro e disse Consigo mesmo: Não tornarei a amaldiçoar a terra por causa do homem, porque é mau o desígnio íntimo do homem desde a sua mocidade; nem tornarei a ferir todo vivente, como fiz. Enquanto durar a terra, não deixará de haver sementeira e ceifa, frio e calor, verão e inverno, dia e noite. (Gênesis 8:21-22)
A resolução de Deus é que Ele nunca mais irá amaldiçoar a terra ou destruir todas as coisas viventes como tinha feito. Por que Ele assumiria um compromisso assim? Com certeza Ele não estava triste pelo que havia feito. O pecado tinha de ser julgado, não tinha?
O problema com o dilúvio é que seus efeitos foram apenas temporários. O problema não estava na criação, mas no pecado. Não estava nos homens, mas no homem. Apagar o passado e começar tudo de novo não adianta, pois o que é preciso é um novo homem para a criação. Esta é a ardente expectativa da criação.
Pois a criação está sujeita à vaidade, não voluntariamente, mas por causa daquele que a sujeitou, na esperança de que a própria criação será redimida do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus. (Romanos 8:20-21)
Portanto, Deus decidiu lidar de forma diferente com o pecado no futuro. Embora o pecado tenha sofrido um revés temporário no dilúvio, ele sofrerá um golpe fatal com a vinda do Messias. É nessa época que os homens se tornarão novas criaturas (2 Coríntios 5:17). Depois de cuidar dos homens, Deus providenciará também um novo céu e uma nova terra (2 Pedro 3:13).
Em resposta à oferta sacrificial feita por Noé como expressão da sua fé, Deus renova Sua promessa de salvação final e definitiva. Até o dia quando essa salvação for consumada, Deus garante ao homem que medidas como o dilúvio não serão tomadas novamente.
Em primeiro lugar, o dilúvio é um lembrete da graça ímpar de Deus. Enquanto os incrédulos acharam julgamento, Noé achou graça (Gênesis 6:8).
Até certo ponto, todas as pessoas daquela época experimentaram a graça de Deus. Somente 120 anos após sua revelação foi que o juízo de Deus realmente caiu sobre os homens. Esse período foi uma época de graça na qual o evangelho foi proclamado.
A diferença entre Noé e quem morreu no dilúvio foi sua reação à graça de Deus. Aqueles que pereceram interpretaram a graça de Deus como indiferença divina. Eles concluíram que Deus não Se importava nem Se incomodava com o pecado dos homens.
Noé, por outro lado, entendeu a graça exatamente como ela é — uma oportunidade para ter relacionamento íntimo com Deus e, ao mesmo tempo, evitar o desprazer e o juízo divino. Os anos de Noé foram gastos andando com Deus, construindo a arca e proclamando a Sua Palavra.
A graça de Deus é claramente vista nesta promessa: “Enquanto durar a terra, não deixará de haver sementeira e ceifa, frio e calor, verão e inverno, dia e noite” (Gênesis 8:22).
Eis a ironia da nossa época. Como nos dias de Noé, o pecador perdido vê a vida como ela é e pergunta: “Como é que Deus pode realmente existir e não fazer nada para endireitar as coisas — para dar um jeito nelas?” Ele conclui que Deus ou está morto, ou não Se importa, ou não consegue lidar com o mundo do jeito que ele é, fazendo pouco da advertência de 2 Pedro 3:8-9:
Há, todavia, uma coisa, amados, que não deveis esquecer: que, para o Senhor, um dia é como mil anos, e mil anos como um dia. Não retarda o Senhor a sua promessa, como alguns a julgam demorada, pelo contrário, Ele é longânimo para convosco, não querendo que nenhum pereça, mas que todos cheguem ao arrependimento.
Como Noé, o crente reconhece que a vida como ela se encontra é reflexo do controle soberano de um Deus gracioso sobre todas as coisas:
Pois, Nele, foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam soberanias, quer principados, quer potestades. Tudo foi criado por meio Dele e para Ele. Ele é antes de todas as coisas. Nele, tudo subsiste. (Colossenses 1:16-17)
A continuidade das coisas como elas são — dia e noite, verão e inverno, tempo de flores e tempo de frutos — faz o cristão dobrar os joelhos diante de Deus em louvor e submissão pelo Seu cuidado providencial. Os não-crentes, no entanto, distorcem essa promessa como desculpa para pecar:
Tendo em conta, antes de tudo, que, nos últimos dias, virão escarnecedores com os seus escárnios, andando segundo as próprias paixões e dizendo: Onde está a promessa de sua vinda? Porque, desde que os pais dormiram, todas as coisas permanecem como desde o princípio da criação”. (2 Pedro 3:3-4)
Eles não reconhecem que esse tempo é concedido aos homens para arrependimento e reconciliação com Deus. No entanto, assim como o período da graça terminou nos dias de Noé, assim será para os homens hoje:
Virá, entretanto, como ladrão, o Dia do Senhor, no qual os céus passarão com estrepitoso estrondo, e os elementos se desfarão abrasados; também a terra e as obras que nela existem serão atingidas. (2 Pedro 3:10)
Nosso Senhor ensinou que os dias que precederão a Sua vinda para julgar a terra serão exatamente como os dias que antecederam o dilúvio:
Pois assim como foi nos dias de Noé, também será a vinda do Filho do Homem. Porquanto, assim como nos dias anteriores ao dilúvio comiam e bebiam, casavam e davam-se em casamento, até ao dia em que Noé entrou na arca, e não o perceberam, senão quando veio o dilúvio e os levou a todos, assim será também a vinda do Filho do Homem”. (Mateus 24:37-39)
Esses dias não são descritos em termos de sensualidade ou decadência, mas de normalidade — de coisas comuns. Os homens dos últimos tempos estarão fazendo aquilo que sempre fizeram. Não há nada de errado em comer e beber, casar-se ou comprar e vender. Errado é fazer essas coisas sem Deus, supondo que podemos pecar como quisermos sem pagar o preço por isso. O tempo da graça chegará ao fim. Que saibamos reagir corretamente à graça de Deus.
Em segundo lugar, o dilúvio nos ensina sobre a ira de Deus. Aprendemos que, embora seja tardia, ela não falha. O juízo deve, finalmente, recair sobre aqueles que rejeitam a graça de Deus.
Fique bem claro, no entanto, que embora a ira e o juízo sejam uma certeza, eles não dão prazer ao coração de Deus. Em lugar algum desta passagem há a uma cena detalhada de angústia e sofrimento. Até os olhos de Noé foram poupados de ver o tormento sofrido por quem morreu no dilúvio. A arca não tinha vigias nem janelas por onde se pudesse olhar para a destruição feita por Deus. A única abertura era aquela no topo da arca permitindo a entrada de luz.
Deus não se deleita no juízo, nem o prolonga sem necessidade; no entanto, ele é certo para quem resiste à Sua graça. Não se engane, meu amigo, haverá uma época em que a oferta de salvação será retirada.
Há algum tempo, visitei uma senhora que estava morrendo de câncer. Não foi possível compartilhar o evangelho com ela em minha primeira visita, pois ela tinha de ser levada para terapia. Quando bati à sua porta pela segunda vez, seu marido atendeu e, pela abertura, pude vê-la, obviamente enfraquecida pela doença. Quando ele lhe perguntou se ela queria conversar comigo, ela balançou a cabeça dizendo que não. Não a vi de novo até a sua morte.
Muitas pessoas parecem pensar que podem esperar até estar com o pé na cova para serem salvas. Normalmente não acontece desse jeito. Deus silenciosamente fecha a porta da salvação. Quando vivemos em pecado e rebelião contra Deus, não podemos nos dar ao luxo de tomar a decisão no leito de morte. Às vezes acontece, concordo, mas é raro.
Além disso, muitas vezes o juízo de Deus permite que as coisas tomem seu próprio rumo. A história do dilúvio parece até uma reversão às condições do segundo dia da criação (Gênesis 1:6-7).
No livro de Colossenses está escrito que nosso Senhor Jesus Cristo é o Criador e Sustentador do universo (Colossenses 1:16-17). Quem rejeita a Deus vive como se Ele realmente não existisse. Na Grande Tribulação, Deus vai dar aos homens sete anos para descobrirem como é viver sem Ele. A mão de Deus que controla e restringe será retirada e o caos reinará. O juízo de Deus com frequência dá aos homens o que eles querem e o que merecem — as consequências naturais das suas ações.
Por fim, vamos considerar a questão da salvação de Deus. No caso de Noé, precisamos observar que o caminho de Deus para a salvação era restritivo. Deus providenciou somente um meio de salvação (uma arca) e somente uma porta. Os homens não poderiam ser salvos do jeito que quisessem, só do jeito de Deus. Tal é a salvação oferecida por Deus aos homens hoje.
Disse-lhe Jesus: Eu sou o caminho, a verdade e a vida, ninguém vem ao Pai senão por mim. (João 14:6)
A salvação da arca também tinha fins educativos. Ela nos dá uma imagem da salvação que foi cumprida em Cristo. Para aqueles da época de Moisés, ela foi um “tipo” de Cristo. A diferença entre quem foi salvo e quem morreu no dilúvio foi a diferença entre estar dentro ou fora da arca.
Todos passaram pelo dilúvio, tanto quem foi salvo como quem morreu. Mas os sobreviventes foram aqueles que estavam dentro da arca, a qual os abrigou dos efeitos do desprazer divino de Deus pelo pecado. Tanto quem estava dentro da arca quanto quem estava fora dela sabia da sua existência e foi informado da advertência de Deus sobre o julgamento vindouro. Alguns escolheram ignorar esses fatos, embora Noé os tenha alertado.
O mesmo acontece ainda hoje. Deus disse que é preciso haver punição para o pecado — a morte. Quem, pela fé, está em Cristo, recebe a ira de Deus em Cristo. Na cruz do Calvário a ira de Deus foi derramada sobre Seu Filho sem pecado, Jesus Cristo. Quem nEle crê experimenta a salvação de Deus em Cristo. Quem se recusa a crer nEle por um ato da vontade deve sofrer a ira de Deus fora de Cristo, a nossa arca. Saber acerca de Cristo não salva uma pessoa, assim como saber acerca da arca não salvou ninguém na época de Noé. Só estando na arca, estando em Cristo, é que salva!
O caminho de Deus para a salvação não foi glamoroso. Creio que muitos teriam entrado no Queen Mary se ele tivesse sido construído por Noé, mas não na arca. A arca era pouco chamativa aos olhos, mas era suficiente para a tarefa de salvar os homens do dilúvio.
Muitas pessoas não querem ser salvas se isso não for feito de forma glamorosa, atraente e aceitável. Eu não gostaria de passar um ano preso com animais barulhentos e fedorentos mais do que você, mas esse era o jeito de Deus.
Nosso Senhor Jesus, quando veio oferecer salvação aos homens, não veio como Alguém que tinha um grande magnetismo ou atração pessoal. Como Isaías falou a Seu respeito, 700 anos antes da Sua vinda:
Não tinha aparência nem formosura; olhamo-lo, mas nenhuma beleza havia que nos agradasse. (Isaías 53:2)
Muitos aceitariam a salvação se seu apelo fosse carnal. Mas a salvação de Deus não é assim.
Alguns cristãos falham exatamente neste ponto. Eles acham que o caminho de Deus é glorioso do começo ao fim. Só milagres e maravilhas. Sem sofrimento, sem dor, sem agonia, sem dor de cabeça. Preciso lhes dizer que nem sempre o caminho de Deus é tão glorioso quanto desejamos, mas só ele é o caminho da libertação, da paz e da alegria.
E a salvação proporcionada por Deus é aquela recebida pela fé na Sua Palavra revelada. Noé provavelmente nunca tinha visto uma chuva, ou mesmo ouvido o estrondo de um trovão. No entanto, Deus disse que viria um dilúvio e que ele tinha de construir uma arca. Noé creu em Deus e agiu em conformidade com a sua fé.
A fé que Noé tinha não era uma fé acadêmica — conceitual, mas uma fé ativa — uma fé prática. Ele passou 120 anos construindo aquela arca, comprometido com o Deus que ele conhecia. A nossa fé, também, precisa ser ativa.
Está escrito que Noé foi um pregador. Não creio que ele falasse com frequência por detrás de um púlpito, mas por detrás de uma tábua e de um martelo. Foi seu modo de vida que condenou os homens da sua época e os advertiu sobre o julgamento por vir. Sua vida inteira foi direcionada pela certeza de que o julgamento de Deus estava chegando.
Quem é cristão como nós sabe que nosso Senhor virá outra vez para julgar o mundo. Fico me perguntando o quanto isso tem afetado o nosso dia a dia. Será que seus vizinhos e os meus podem dizer que estamos vivendo à luz daquele dia quando haverá julgamento e salvação? Sinceramente espero que sim.
Tradução e revisão: Mariza Regina de Souza
1 Howard F. Vos, Gênesis e Arqueologia (Chicago: Moody Press, 1963), p. 32, Vos, nas páginas seguintes dá um excelente resumo dos mais significativos relatos da antiguidade e propõe sua relação com o relato de Gênesis.
2 H. C. Leupold, Exposição de Gênesis (Grand Rapids: Baker Book House, 1942), I, pp. 264-265.
Leitch define mais adiante o conceito de justiça:
“No uso geral, representa qualquer conformidade com um padrão caso esse padrão tenha a ver com o caráter interno de uma pessoa, ou com o padrão objetivo de uma norma estabelecida. Thayer sugere a definição ‘o estado daquele que é como deve ser’. Num sentido mais amplo, isso se refere àquele que é reto e virtuoso, demonstrando em sua vida integridade, pureza e honestidade de sentimentos e ações”. A. H. Leitch, “Justiça”. The Zondervan Pictorial Encyclopedia of the Bible (Grand Rapids: Zondervan, 1975, 1976), V. p. 104.
3 “O hebraico para corrupto (corrompido) (ou “destruído”) também deixa claro que aquilo que Deus decidiu ‘destruir’ (13), na prática, já se autodestruiu”. Derek Kidner, Genesis (Chicago: Inter-Varsity Press, 1967), p. 87.
4 Curiosamente, a palavra usada para arca (te,,ba) neste relato é encontrada outra vez só em Êxodo capítulo 2, a “arca” onde o bebê Moisés foi colocado por sua mãe para salvar a criança dos Egípcios.
Vivemos numa época em que as pessoas não querem mais assumir compromissos a longo prazo. O contrato matrimonial com frequência é evitado e os votos carecem da firmeza e do compromisso de antigamente. As garantias têm pouca duração. Os contratos muitas vezes são vagos ou cheios de lacunas e letras miúdas.
Estranhamente, os cristãos parecem pensar que cláusulas contratuais bem definidas não sejam muito espirituais, especialmente entre crentes. Dizem que “se deve cumprir o que se promete”. E deve-se mesmo.
É interessante observar que o imutável, infinito e todo poderoso Deus do universo tenha escolhido Se relacionar com os homens por meio de alianças. A aliança com Noé, no capítulo 9 de Gênesis, é a primeira aliança bíblica da Bíblia. Embora a palavra “aliança” apareça em Gênesis 6:18, ela se refere à aliança do capítulo 9.
A aliança com Noé, por uma série de razões, é muito importante para nós. Enquanto estou preparando esta mensagem, está chovendo lá fora, e um pouco forte também. Se esta aliança ainda não estivesse em vigor, isso seria motivo de grande preocupação para você e para mim. A nossa tranquilidade é resultado direto da aliança feita por Deus com Noé séculos atrás.
A aliança com Noé, além do fato de ainda estar em vigor, também nos dá um padrão para as outras alianças bíblicas. Conforme viermos a entender esta aliança, iremos apreciar muito mais o significado das demais e, especialmente, o da nova aliança instituída por nosso Senhor Jesus Cristo.
Por fim, a aliança com Noé estabelece as bases para a existência do governo humano. Particularmente, ela trata da questão da pena de morte. E é aqui que nossas considerações sobre este tema tão debatido devem começar.
Você irá perceber que os últimos versículos do capítulo oito de Gênesis já foram discutidos em minha última mensagem. Embora esses versículos não façam parte da aliança com Noé, certamente são uma introdução a ela. Por isso, devemos começar nosso estudo por eles.
Tecnicamente, Gênesis 8:20-22 não é uma promessa de Deus a Noé. Antes é um propósito assentado no coração de Deus.
E o Senhor aspirou o suave cheiro e disse consigo mesmo: Não tornarei a amaldiçoar a terra por causa do homem, porque é mau o desígnio íntimo do homem desde a sua mocidade; nem tornarei a ferir todo vivente, como fiz. (Gênesis 8:21)
Essas palavras não foram ditas a Noé, elas são intentos reafirmados na mente de Deus. Os teólogos do pacto dão muita ênfase a dois ou três pactos teológicos: o pacto das obras, o pacto da graça e o pacto da redenção1. Todos eles, embora sejam “bíblicos” em essência, são mais implícitos do que explícitos. Os teólogos do pacto geralmente tendem a enfatizar os pactos implícitos às expensas dos pactos claramente bíblicos, como o pacto de Deus com Noé. Por outro lado, os teólogos dispensacionalistas muitas vezes dão muita importância aos pactos bíblicos e menosprezam os pactos teológicos.
Nos capítulos 8 e 9 de Gênesis, ambos os elementos são encontrados. O propósito eterno de Deus para salvar os homens foi estabelecido muito antes dos dias de Noé (cf. Efésios 1:4, 3:11; 2 Tessalonicenses 2:13; 2 Timóteo 1:9, etc). O que encontramos em Gênesis 8:20-22 não é a origem desse propósito, mas sua confirmação na história. Assim como Deus está reafirmando Seu propósito aqui, é sempre bom que os homens também ratifiquem seus compromissos (cf. Filipenses 3:8-16).
A aliança de Deus Consigo mesmo foi motivada pelo sacrifício oferecido por Noé (Gênesis 8:20). A resolução de Deus foi não destruir a terra novamente por um dilúvio (cf. 9:11). Entendo que as palavras “não tornarei a amaldiçoar a terra...” (versículo 21) são análogas à expressão “nem tornarei a ferir todo vivente, como fiz” (versículo 21).2
O que propiciou a resolução de Deus foi a natureza do homem: “porque é mau o desígnio íntimo do homem desde a sua mocidade” (verso 21).
O justo Noé (6:9) logo seria encontrado nu em estado de embriaguez (9:21). Não importa o quanto o passado da terra seja lavado por um dilúvio, o problema sempre vai existir enquanto houver um só homem no mundo. O problema está dentro do homem — é a sua natureza pecaminosa. Sua predisposição ao pecado não é aprendida, é inata — ele é “mau desde a sua mocidade”. Por isso, uma restauração completa precisa começar com um novo homem. Isso é o que Deus propôs realizar historicamente.
Esse propósito é parcialmente expresso no versículo 22: “Enquanto durar a terra, não deixará de haver sementeira e ceifa, frio e calor, verão e inverno, dia e noite”.
Ray Stedman chama estes versículos (e os versículos 8-17) de “As Regras do Jogo”3, e acho que ele realmente captou o significado desta seção. Um novo começo, com um novo conjunto de regras, é evidente pela similaridade destes versículos com Gênesis capítulo um.
Tanto aqui (Gênesis 9:1) como lá (Gênesis 1:28) Deus abençoou Suas criaturas e lhes disse para serem fecundas e se multiplicarem. Tanto aqui (Gênesis 9:3) como lá (Gênesis 1:29-30) Deus prescreveu o alimento que o homem poderia comer.
Contudo, existem algumas diferenças que indicam que o novo começo ia ser diferente do antigo. Deus avaliou a criação original como sendo “boa” (cf. 1:21, 31). O mundo dos dias de Noé não recebeu tal aprovação, pois o homem que o dominava era pecador (8:21).
Adão foi encarregado de dominar a terra e governar o reino animal (1:28). Noé não recebeu tal mandato. Em vez disso, Deus colocou medo do homem nos animais, pelo qual o homem poderia exercer certo controle sobre eles (a razão pela qual meu cachorro me obedece — quando obedece — é porque tem medo de mim).
Enquanto Adão e seus contemporâneos parecem ter sido vegetarianos (Gênesis 1:29-30, cf. 9:3), Noé e seus descendentes poderiam comer carne (9:3-4). Havia, no entanto, uma condição. Eles não poderiam comer o sangue dos animais, pois a vida do animal estava no seu sangue. Isso ia ensinar ao homem não só que Deus dá valor à vida, mas também que ela Lhe pertence. Deus permite aos homens tirar a vida dos animais para sobreviver, no entanto, eles não podem comer o sangue.
Algumas pessoas podem estranhar o fato de se poder comer carne depois do dilúvio, mas não antes (ou assim parece). Talvez as condições da terra tenham mudado tanto que agora a vida necessitasse da ingestão de proteínas. No entanto, o mais provável é que era preciso o homem perceber que, por causa do seu pecado, ele só poderia viver pela morte de outrem. O homem vive pela morte dos animais.
Mas, o mais importante é que o homem aprendeu a respeitar a vida. Depois da queda, os homens eram obviamente homens de violência (cf. Gênesis 6:11), os quais, como Caim (Gênesis 4:8) e Lameque (Gênesis 4:23-24), não tinham qualquer respeito pela vida humana. Isso é declarado com mais ênfase nos versículos 5 e 6 do capítulo 9:
Certamente requererei o vosso sangue, o sangue da vossa vida; de todo animal o requererei, como também da mão do homem, sim, da mão do próximo de cada um requererei a vida do homem. Se alguém derramar o sangue do homem, pelo homem se derramará o seu; porque Deus fez o homem segundo a sua imagem.
A vida do homem é preciosa e pertence a Deus. Ela foi dada por Deus e só Ele pode tomá-la. Os animais que derramassem o sangue de um homem deviam ser mortos (versículo 5, cf. Êxodo 21:28-29). Os homens que, deliberadamente, tirassem a vida de outro homem deviam morrer “pelo homem” (versículo 6, cf. Números 35:33).4
Nestes versículos, além do assassinato, o mandamento de Deus proíbe também o suicídio. A vida pertence a Deus — não só a vida dos animais e de outras pessoas, mas também a nossa própria vida. Precisamos entender que o suicídio é tomar a nossa vida em nossas próprias mãos quando Deus disse que ela Lhe pertence. Nas palavras de Jó: “o Senhor o deu e o Senhor o tomou” (Jó 1:21).
Esta passagem também parece lançar luz sobre a controvertida questão do aborto. O homem não pode derramar o sangue de outro homem. A vida do homem está no sangue (Gênesis 9:4, Levítico 17:11). Deixando de lado muitas outras considerações, não deveríamos concluir que, se um feto tem sangue, ele tem vida? Não deveríamos também reconhecer que derramar esse sangue, destruir esse feto, é violar o mandamento de Deus e ficar sujeito à pena de morte?5
O homem é criado à imagem de Deus (Gênesis 1:27, 9:6). Em vista disso, o assassinato é muito mais do que um ato de hostilidade contra o homem — é uma afronta contra Deus. Atacar o homem é atacar a Deus, à imagem de Quem ele foi criado.
Dissemos que matar é pecado porque a vida pertence a Deus. Mostramos também que o assassinato deve ser rigorosamente tratado, pois a vítima é uma pessoa criada à imagem divina. Uma outra razão para a aplicação da pena de morte nesta passagem é: o homem deve derramar o sangue do assassino porque ele também é parte da imagem divina. “Se alguém derramar o sangue do homem, pelo homem se derramará o seu; porque Deus fez o homem segundo a sua imagem” (versículo 6).
Deus não tirou a vida de Caim quando este matou seu irmão, Abel. Creio que Ele tenha permitido a Caim viver para podermos ver as consequências de se deixar um assassino à solta. Lameque matou um rapaz, provavelmente só por causa de um insulto, e se gabou disso (Gênesis 4:23-24). Os homens que morreram no dilúvio eram homens violentos (6:11). Deus de fato puniu o pecado, mas protelou sua execução até os dias do dilúvio para podermos aprender o alto preço de se deixar um assassino à solta.
Agora que toda a raça humana tinha perecido devido ao seu pecado, Deus podia requerer da sociedade a vida do assassino. Aplicando a pena de morte, o homem agiria no interesse de Deus — ele refletiria a imagem moral de Deus, ou seja, Sua indignação e Sua sentença sobre o assassino.
O homem (e com isso entendo que Moisés estivesse se referindo à sociedade e suas agências governamentais) devia executar o assassino a fim de refletir a pureza moral de seu Criador. Os atos governamentais em nome de Deus punem o malfeitor e respeitam aqueles que fazem o bem:
Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores; porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por Ele instituídas. De modo que aquele que se opõe à autoridade resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos condenação. Porque os magistrados não são para temor, quando se faz o bem, e sim quando se faz o mal. Queres tu não temer a autoridade? Faze o bem e terás louvor dela, visto que a autoridade é ministro de Deus para teu bem. Entretanto, se fizeres o mal, teme; porque não é sem motivo que ela traz a espada; pois é ministro de Deus, vingador, para castigar o que pratica o mal. (Romanos 13:1-4)
A “espada” mencionada por Paulo no versículo quatro é a espada usada pelo executor no cumprimento da pena de morte. O próprio Senhor deu testemunho de que a tarefa de executar os transgressores da lei foi dada ao Governo:
Então, Pilatos o advertiu: Não me respondes? Não sabes que tenho autoridade para te soltar e autoridade para te crucificar? Respondeu Jesus: Nenhuma autoridade terias sobre mim, se de cima não te fosse dada; por isso quem me entregou a ti maior pecado tem. (João 19:10-11)
Creio que o mandamento relativo à pena capital seja o alicerce para qualquer sociedade de homens pecaminosos. O reino animal é controlado, em grande parte, pelo medo que os animais sentem do homem (9:2). As tendências pecaminosas do homem também são mantidas sob controle pelo medo que ele tem das consequências. Qualquer sociedade que perca o respeito pela vida não pode durar muito tempo. Por esta razão, Deus instituiu a pena capital como uma restrição graciosa da tendência pecaminosa do homem para a violência. E, por isso, a humanidade pode viver em relativa paz e segurança até o Messias de Deus acabar de vez com o pecado.
E assim tem início uma nova época. Não uma época de otimismo ingênuo, mas de vida debaixo de leis muito claras. E, como veremos nos próximos versículos, uma época com esperança para o futuro.
A aliança de Deus com Noé e seus descendentes revela muitas das características das alianças subsequentes feitas por Deus com o homem. Por isso, vamos destacar as mais relevantes.
(1) A aliança com Noé foi iniciada e ditada por Deus. A soberania de Deus é claramente vista nesta aliança. Embora algumas alianças do passado tenham sido resultado de negociações, esta não. Deus deu início a ela como expressão externa do Seu propósito revelado em Gênesis 3:20-22. Ele ditou os termos para Noé, e não houve discussão.
Um amigo meu tinha um carro que estava “no fim da picada”. Com meu apoio, ele foi a uma feira de carros usados em busca de algo mais confiável. Ele encontrou um veículo que parecia promissor, mas decidiu pensar um pouco mais no assunto. Quando entrou no carro velho para ir embora, não conseguiu dar a partida. Como dá para imaginar, meu amigo não estava em condições de barganhar. Ele comprou o outro carro sem negociar o preço. A situação de Noé era exatamente a mesma. E devo acrescentar: será que nós ousaríamos questionar os termos de Deus? Acho que não!
(2) A aliança com Noé foi feita com ele e todas as gerações subsequentes: “Disse Deus: Este é o sinal da minha aliança que faço entre mim e vós e entre todos os seres viventes que estão convosco, para perpétuas gerações” (9:12).
Esta aliança permanecerá em vigor até a época em que nosso Senhor retornar à terra para purificá-la pelo fogo (2 Pedro 3:10).
(3) Esta é uma aliança universal. Enquanto algumas alianças envolvem apenas um pequeno grupo de pessoas, esta aliança em particular abrange “toda carne”, isto é, todos os seres viventes, incluindo o homem e os animais:
Eis que estabeleço a minha aliança convosco, e com a vossa descendência, e com todos os seres viventes que estão convosco: assim as aves, os animais domésticos e os animais selváticos que saíram da arca, como todos os animais da terra. (Gênesis 9:9-10)
(4) A aliança com Noé é uma aliança incondicional. Algumas alianças eram condicionais, onde as partes deveriam cumprir determinadas condições. Esse foi o caso da aliança Mosaica. Se Israel guardasse os mandamentos de Deus, eles receberiam Suas bênçãos e teriam prosperidade. Se não, seriam expulsos da terra (Deuteronômio 28). As bênçãos da aliança com Noé não eram condicionais. Deus daria regularidade de estações e não destruiria novamente a terra por um dilúvio simplesmente porque disse que seria assim. Embora a raça humana tenha recebido certos mandamentos nos versículos 1 a 7, estes não devem ser vistos como condições da aliança. Tecnicamente, eles não fazem parte dela.
(5) Esta aliança foi uma promessa de Deus de nunca mais destruir a terra por um dilúvio: “então, me lembrarei da minha aliança firmada entre mim e vós e todos os seres viventes de toda carne; e as águas não mais se tornarão em dilúvio para destruir toda carne” (Gênesis 9:15).
Deus irá destruir a terra pelo fogo (2 Pedro 3:10), mas só após a salvação ser comprada pelo Messias e os eleitos serem levados, do mesmo modo que Noé foi protegido da ira de Deus.
(6) O sinal da aliança com Noé é o arco-íris:
Porei nas nuvens o meu arco; será para sinal da aliança entre mim e a terra. Sucederá que, quando eu trouxer nuvens sobre a terra, e nelas aparecer o meu arco, então, me lembrarei da minha aliança firmada entre mim e vós e todos os seres viventes de toda carne; e as águas não mais se tornarão em dilúvio para destruir toda carne. (Gênesis 9:13-15)
Toda aliança tem seu sinal correspondente. O sinal da aliança Abraâmica é a circuncisão (Gênesis 17:15-27); o da Mosaica, a observância do sábado (Êxodo 20:8-11; 31:12-17).
O arco-íris é um “sinal” bastante apropriado. Ele é constituído pelo reflexo dos raios solares nas partículas de água das nuvens. A mesma água que destruiu a terra forma o arco-íris. O arco-íris, também, aparece no fim de uma tempestade. Por isso, este sinal declara ao homem que a tempestade da ira de Deus (num dilúvio) já passou.
O mais interessante é que o arco-íris não foi planejado para o homem (pelo menos não neste texto), mas para Deus. Ele disse que o arco-íris O faria Se lembrar da Sua aliança com o homem. Que conforto saber que a fidelidade de Deus é a nossa garantia!
Para os antigos israelitas que primeiro receberam esta revelação de Deus, a aliança com Noé explicou o motivo de várias regras da lei Mosaica. As leis referentes à pena de morte, por exemplo, têm origem e explicação no capítulo 9 de Gênesis. A questão específica do sangue ganha ainda mais significado à luz deste capítulo.
Os antigos profetas também fizeram alusão à aliança de Deus com Noé. Isaías relembrou à nação, Israel, a fidelidade de Deus em manter esta aliança:
Porque isto é para mim como as águas de Noé; pois jurei que as águas de Noé não mais inundariam a terra, e assim jurei que não mais me iraria contra ti, nem te repreenderia. Porque os montes se retirarão, e os outeiros serão removidos; mas minha misericórdia não se apartará de ti, e a aliança da minha paz não será removida, diz o Senhor, que se compadece de ti. (Isaías 54:9-10)
Na época dos escritos de Isaías parecia haver poucos motivos de esperança para eles como nação. Isaías relembrou-lhes que sua esperança era tão segura quanto a Palavra de Deus. A promessa da redenção por vir deveria ser vista à luz da fidelidade de Deus em manter Sua aliança com Noé e seus descendentes.
A linguagem de Gênesis capítulo nove foi empregada por Oseias para garantir ao povo de Deus a sua restauração:
Naquele dia, farei a favor dela aliança com as bestas-feras do campo, e com as aves do céu, e com os répteis da terra; e tirarei desta o arco, e a espada, e a guerra, e farei o meu povo repousar em segurança. (Oséias 2:18)
Jeremias também falou das bênçãos futuras de Deus ao relembrar ao povo Sua fidelidade em manter a aliança com Noé:
Assim diz o Senhor, que dá o sol para a luz do dia e as leis fixas à luz e às estrelas para a luz da noite, que agita o mar e faz bramir as suas ondas; Senhor dos Exércitos é o seu nome. Se falharem estas leis fixas diante de mim, diz o Senhor, deixará também a descendência de Israel de ser uma nação diante de mim para sempre. Assim diz o Senhor: Se puderem ser medidos os céus lá em cima e sondados os fundamentos da terra cá embaixo, também eu rejeitarei a descendência de Israel, por tudo quanto fizeram, diz o Senhor. (Jeremias 31:35-37, cf. também 33:20-26, Salmo 89:30-37).
Os Israelitas podiam ansiar pela salvação que Deus lhes traria. E nós podemos olhar para o que Ele já fez por intermédio do Messias, o Senhor Jesus Cristo. Embora Israel ainda aguarde o pleno cumprimento da aliança de Deus no milênio, eles podem fazê-lo na confiança de que Deus mantém Seus compromissos. E nós também, como cristãos, podemos ter plena certeza da fidelidade de Deus.
A aliança com Noé, de diversas formas, prefigurava a nova aliança. Consequentemente, a nova aliança cumpriu muitas das coisas antecipadas pela aliança com Noé. O derramamento de sangue adquiriu novo significado na aliança com Noé. O derramamento do sangue de Cristo no Calvário subitamente trouxe à baila o capítulo 9 de Gênesis.
Tendo em vista que todas as alianças bíblicas têm seu ápice na nova aliança, que as deixa obscurecidas, vamos gastar alguns momentos para comparar as características da nova aliança com a aliança de Deus com Noé.
A nova aliança é prometida em Jeremias 31:30-34:
Cada um, porém, será morto pela sua iniqüidade; de todo homem que comer uvas verdes os dentes se embotarão. Eis aí vêm dias, diz o Senhor, em que firmarei nova aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá. Não conforme a aliança que fiz com seus pais, no dia em que os tomei pela mão, para os tirar da terra do Egito; porquanto eles anularam a minha aliança, não obstante eu os haver desposado, diz o Senhor. Porque esta é a aliança que firmarei com a casa de Israel, depois daqueles dias, diz o Senhor: Na mente, lhes imprimirei as minhas leis, também no coração lhas escreverei; eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo. Não ensinará jamais cada um ao seu próximo, nem cada um ao seu irmão, dizendo: Conhece o Senhor, porque todos me conhecerão, desde o menor até o maior deles, diz o Senhor. Pois perdoarei as suas iniquidades e dos seus pecados jamais me lembrarei.
Nosso Senhor instituiu esta aliança pela Sua morte na cruz do Calvário. O sinal da aliança é a ceia do Senhor:
Enquanto comiam, tomou Jesus um pão e, abençoando-o, o partiu, e o deu aos discípulos, dizendo: Tomai, comei; isto é o meu corpo. A seguir, tomou um cálice e, tendo dado graças, o deu aos discípulos, dizendo: Bebei dele todos; porque isto é o meu sangue, o sangue da nova aliança, derramado em favor de muitos, para remissão de pecados. E digo-vos que, desta hora em diante, não beberei deste fruto da videira, até aquele dia em que o hei de beber, novo, convosco no reino de meu Pai. (Mateus 26:26-29)
O escritor aos Hebreus salientou que a nova aliança substituiu a antiga (Mosaica) e é infinitamente superior a ela.
A nova aliança, assim como a aliança de Deus com Noé, foi iniciada por Deus e executada por Ele. Enquanto toda carne se beneficia da graça comum prometida por Deus na aliança com Noé, somente quem está “em Cristo” é beneficiado pelas bênçãos da nova aliança. É a nova aliança “no Seu sangue” que é experimentada por quem confia no sangue derramado de Cristo, o Cordeiro de Deus, para receber o perdão dos pecados e o dom da vida eterna. Nosso Senhor disse a Seus seguidores:
Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: se não comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o seu sangue, não tendes vida em vós mesmos. Quem comer a minha carne e beber o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. Pois a minha carne é verdadeira comida, e o meu sangue é verdadeira bebida. (João 6:53-55)
Com isto Ele quis dizer que não se deve somente reconhecer a divindade de Cristo e Sua morte pelo pecador, mas que isso precisa se tornar a parte mais importante da vida, crendo que somente em Cristo há salvação.
A única condição para participar das bênçãos da nova aliança é expressando uma fé pessoal em Cristo ao recebê-lo:
Mas a todos quantos O receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que crêem no Seu nome. (João 1:12)
E o testemunho é este: que Deus nos deu a vida eterna; e esta vida está no seu Filho. Aquele que tem o Filho tem a vida; aquele que não tem o Filho de Deus não tem a vida. (1 João 5:11-12)
Como na aliança com Noé, quem está debaixo da nova Aliança não precisa temer a futura explosão da ira de Deus. Embora a aliança com Noé garantisse a toda carne que Deus não iria destruir novamente a vida por um dilúvio, a nova aliança garante ao homem que ele não sofrerá o derramamento da ira divina por outros meios, tais como o fogo (2 Pedro 3:10).
... e a Jesus, o Mediador da nova aliança, e ao sangue da aspersão que fala cousas superiores ao que fala o próprio Abel. (Hebreus 12:24)
Como as alianças são reconfortantes! Elas permitem ao homem saber exatamente onde ele está com Deus. Não tente fazer seu próprio acordo com Ele, meu amigo. Você pode enfrentar a eterna ira de Deus por confiar em si mesmo, ou pode receber o perdão divino e a vida eterna pela fé em Cristo. Os termos que Deus estabelece para a paz são muito claros. Você já se rendeu a Ele? Que Deus o ajude a fazê-lo.
Tradução e Revisão: Mariza Regina de Souza
1 A teologia das Igrejas Reformadas, no que se refere às alianças, tem seu protótipo na teologia patrística, sistematizada por Agostinho de Hipona. Ela representa a totalidade das Escrituras como sendo coberta por duas alianças: 1) o pacto das obras e 2) o pacto da graça. As partes da primeira aliança eram Deus e Adão. A promessa da aliança era a Vida. A condição era a perfeita obediência de Adão. E o castigo para o fracasso era a morte. Para salvar o homem do castigo da sua desobediência, uma segunda aliança, feita desde a eternidade, entrou em vigor, chamada de aliança da graça. Ao longo do Antigo Testamento houve sucessivas proclamações dessa aliança”. A Teologia dos Pactos, Baker’s Dictionary of Theology (Grand Rapids: Baker Book House, 1960). p. 144.
2 Alguns poderiam esperar alguma referência à maldição sobre o solo referida em Gênesis 3:17 e 5:29. No entanto, tanto teologicamente quando na prática, sabemos que ela não foi removida. Qualquer jardineiro sabe disso por experiência própria.
A palavra para “maldição” em Gênesis é Qalal, embora em 3:17 e 5:29 a palavra seja Arur. É muito interessante que, em Gênesis 12:3, ambas sejam empregadas. A maldição do solo em Gênesis 8:21 é o dilúvio que destruiu toda coisa vivente, não a maldição de Gênesis 3:17.
3 Ray Stedman, The Beginnings (Waco: Word Books, 1978), pp. 116-130.
4 Outro trecho da Escritura deixa claro que somente o assassinato deliberado e premeditado está em foco. Deus estipulou as cidades de refúgio para aqueles que acidentalmente matassem uma outra pessoa (cf. Deuteronômio 19:1 e ss).
5 A morte de um feto, como em outros exemplos, pode ter circunstâncias atenuantes e, por isso, nem todos os abortos podem ser chamados de assassinato, assim como todas as mortes não podem ser assim definidas. Creio, no entanto, que, em geral, a destruição deliberada da vida de um feto seja assassinato.
A ordem de Deus para destruição dos cananeus tem incomodado tanto crentes como não crentes:
Porém, das cidades destas nações que o Senhor, teu Deus, te dá em herança, não deixarás com vida tudo o que tem fôlego. Antes, como te ordenou o Senhor, teu Deus, destrui-las-á totalmente: os heteus, os amorreus, os cananeus, os ferezeus, os heveus e os jebuseus, para que não vos ensinem a fazer segundo todas as suas abominações, que fizeram a seus deuses, pois pecaríeis contra o Senhor, vosso Deus. (Deuteronômio 20:16-18)
Embora seja provável que a matança dos cananeus irá sempre nos causar uma certa apreensão, Gênesis capítulo 9 aumenta muito o nosso entendimento do problema.
Precisamos compreender que assimilar essa ordem foi muito mais difícil para os antigos israelitas do que é para nós hoje. Se Deus não tivesse endurecido o coração dos cananeus para não fazerem alianças com Israel (cf. Josué 11:20), Israel provavelmente não teria tentado obedecer com tanto rigor ao mandamento do Senhor para destruí-los.
Talvez seja um pouco complicado para nós avaliar a situação enfrentada por Israel antes de tomar posse da terra dos cananeus. Havia pouco ou nenhum contato com aqueles povos pagãos. Eles devem ter achado muito difícil entender as razões para tratar seus inimigos, os cananeus, sem nenhuma misericórdia. Gênesis capítulo 9 coloca as coisas em perspectiva. Ele explica a origem das nações com as quais Israel, de algum modo, precisava se relacionar ao longo da história. Em particular, esta narrativa explica a depravação moral dos cananeus que tornou necessário o seu extermínio.
Gênesis 9 é crucial também por outras razões. É uma passagem que tem sido muito empregada para justificar a escravidão e, em particular, o domínio violento e pecaminoso sobre os povos negros ao longo dos séculos. Segundo dizem, a maldição de Cam está simplesmente sendo cumprida na medida em que os negros vivem em servidão a outras raças, especialmente aos brancos. Como vamos ver, uma análise cuidadosa do nosso texto não dá nenhuma base a essa interpretação.
Os versículos que estamos considerando devem ser entendidos no contexto da seção onde se encontram. Gênesis 9:18 inicia uma nova divisão que vai até o capítulo 11, versículo 10. Moisés fala do repovoamento da terra pelos filhos de Noé. Gênesis 9:20-27 explica a tríplice divisão da raça humana pela dimensão espiritual de cada seguimento. Enquanto os cananeus estão sujeitos à maldição de Deus, Sem será a linhagem pela qual virá o Messias e Jafé encontrará bênção na união com a linhagem de Sem (e seu descendente final, o Messias).
Cronologicamente, o capítulo 10 deveria vir após a confusão de Babel (11:1-9). Os versículos do capítulo 11 explicam a razão para a dispersão das nações. O capítulo 10 descreve os resultados dessa dispersão. No entanto, o capítulo 10 vem primeiro para permitir que a ênfase recaia sobre o estreitamento da linhagem piedosa até Abrão.
Depois do dilúvio, Noé começou a lavrar a terra, plantando uma vinha. O resultado do seu trabalho foi o fruto da videira, vinho. Embora a primeira menção ao vinho não seja sem uma conotação negativa, não devemos concluir que, devido a esse excesso, a Bíblia sempre ou quase sempre condene seu uso (cf. Deuteronômio 24:24-26, 1 Timóteo 5:23).
Muitos ficam incomodados diante da deplorável situação de Noé, o homem que antes do dilúvio fora descrito como “justo e íntegro entre seus contemporâneos” (6:9). Alguns sugerem que a fermentação talvez só tenha ocorrido após o dilúvio e que Noé estava simplesmente colhendo os frutos da sua criatividade.
Embora não devamos procurar desculpas para Noé, precisamos reconhecer que Moisés não ressalta sua culpa, e sim o pecado de Cam. Alguns sugerem vários tipos de males que poderiam ter ocorrido na tenda de Noé. Ainda que a linguagem empregada possa dar margem a certos pecados sexuais (cf. Levítico 18), pessoalmente não encontro nenhuma razão para presumir alguma atitude errada por parte de Noé, além da indiscrição da sua bebedeira e sua consequente nudez. Talvez a melhor descrição para o seu comportamento e seu estado seja a palavra “impróprio”.
Fico impressionado com a maneira pela qual Moisés se refere a este incidente, com um mínimo de detalhes e quase nenhuma explicação. Ter escrito qualquer coisa a mais teria sido perpetuar o pecado de Cam. Hollywood teria nos levado para dentro da tenda de Noé numa grande tela em Tecnicolor. Moisés nos deixa do lado de fora junto com Sem e Jafé.
Parece que Cam e seus irmãos foram avisados sobre o estado de Noé, a fim dos três ficarem fora da tenda: “Cam, pai de Canaã, vendo a nudez do pai, fê-lo saber, fora, a seus dois irmãos” (Gênesis 9:22).
Enquanto Sem e Jafé se recusaram a entrar, Cam não teve tantas reservas. Qualquer que tenha sido a falta de Noé, ele estava na privacidade da sua própria tenda (9:21). E era assim que Sem e Jafé queriam. No entanto, Cam entrou, violando o princípio da privacidade, e, além de não ajudar seu pai, divertiu-se às suas custas.
Cam não fez nada para preservar a dignidade de seu pai. Ele não cuidou para que Noé fosse devidamente coberto. Em vez disso, ele saiu da tenda e descreveu claramente a seus irmãos o desatino que tinha tomado conta de seu pai. Parece-me também que ele pode ter dito a Sem e Jafé para entrarem na tenda e verem por si mesmos.1
As medidas tomadas por Sem e Jafé para não ver a nudez do pai parecem meio radicais numa sociedade sexualmente permissiva. Por outro lado, nossas televisões têm nos tornado insensíveis à nudez ou à falta de educação. Existe propaganda para tudo quanto é coisa, mesmo para produtos que já foram considerados extremamente pessoais.
Colocando “a” roupa, aquela com que Noé deveria se vestir, em seus próprios ombros, eles entraram de costas na tenda. Sem olhar para o pai, eles o cobriram e saíram de lá.
Na manhã seguinte, quando acordou da bebedeira, Noé tomou conhecimento do acontecido. Não sabemos como ele soube disso. Talvez ele estivesse consciente o suficiente para se lembrar dos acontecimentos da noite anterior. Uma coisa é certa — Sem e Jafé não disseram nada a ele, nem a ninguém. Desconfio que a estória já estivesse na boca do povo na manhã seguinte e, com toda probabilidade, por causa de Cam. Se ele não hesitou em contar aos irmãos, por que não contaria a todo mundo?
Sem levar em conta a fonte de informação de Noé, sua reação teve grandes implicações. Canaã, o filho mais novo de Cam, foi amaldiçoado. Ele ia ser o menor dos servos2 de seus irmãos. Embora alguns entendam que “irmãos” no versículo 25 se refira a seus companheiros, creio que seja especificamente a seus irmãos terrenos, os outros filhos de Cam. Nesse sentido, a maldição de Canaã ganha intensidade nesses três versículos. No versículo 25, ele será servo dos seus irmãos; nos versículos 26 e 27, servo dos irmãos de seu pai, Sem e Jafé.
Visto desta forma, é impossível divisar qualquer aplicação deste texto à sujeição dos povos negros. Cam não foi amaldiçoado nesta passagem, e sim Canaã. Canaã não foi o pai dos povos negros, mas dos cananeus que viveram na Palestina e eram uma ameaça para os israelitas.
No versículo 26, não é Sem quem é bendito, mas seu Deus: “Bendito seja o Senhor, Deus de Sem, e Canaã lhe seja servo” (Gênesis 9:26).
Com isso a linhagem piedosa seria preservada por meio de Sem. Da sua descendência viria o Messias. A bênção não vem de Sem, mas por intermédio dele. A bênção emana do seu relacionamento com Yahweh, o Deus da aliança de Israel. E a servidão de Canaã é uma das evidências dessa bênção.
O SENHOR fará que sejam derrotados na tua presença os inimigos que se levantarem contra ti; por um caminho, sairão contra ti, mas, por sete caminhos, fugirão da tua presença. O Senhor determinará que a bênção esteja no teu celeiro em tudo que colocares a mão; e te abençoará na terra que te dá o Senhor, teu Deus. O Senhor te constituirá para si em povo santo, como te tem jurado, quando guardares os mandamentos do Senhor, teu Deus, e andares nos seus caminhos. (Deuteronômio 28:7-9)
Assim como a bênção de Sem consistia no seu relacionamento com Yahweh, Jafé seria abençoado no seu relacionamento com Sem.
Engrandeça Deus a Jafé, e habite ele nas tendas de Sem; e Canaã lhe seja servo. (Gênesis 9:27)
Acredita-se que o nome “Jafé” signifique “engrandecer” ou “alargar”3. Por meio de um jogo de palavras, Noé abençoa Jafé usando o seu próprio nome4. A bênção de Jafé deve ser encontrada no seu relacionamento com Sem e não independentemente. Essa promessa é declarada mais especificamente no capítulo 12, versículo 3: “Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; em ti serão benditas todas as famílias da terra”.
Deus prometeu abençoar Abrão, e nele, as outras nações. Quem abençoasse Abrão receberia as bênçãos de Deus, enquanto quem o amaldiçoasse seria amaldiçoado. Além disso, Canaã seria subjugado todas as vezes que Jafé estivesse unido a Sem.
Existe uma clara correspondência entre as atividades de Cam, Sem e Jafé e as bênçãos e maldições que os seguiram. Sem e Jafé glorificaram a Deus quando agiram em conjunto para preservar a honra de seu pai. Cam desonrou tanto ao pai quanto a Deus por se divertir com a humilhação de Noé. Assim, Cam foi amaldiçoado e Sem e Jafé foram abençoados pela cooperação mútua.
A questão que se levanta na maldição de Canaã é: por que Deus amaldiçoou Canaã pelo pecado de Cam? E mais, por que Deus amaldiçoou os Cananeus, uma nação, pelo pecado de um único homem?
A explicação que melhor parece responder a essas perguntas é que as palavras de Noé não foram só de bênção e maldição, mas também de profecia. Embora seja verdade que os pecados dos pais visitem os filhos, isso é somente “até a terceira e quarta geração” (Êxodo 20:5). Se esse princípio tivesse sido aplicado, todos os filhos de Cam deveriam ter sido amaldiçoados.
Pela revelação profética, Noé previu que as falhas morais demonstradas por Cam seriam manifestadas em sua totalidade em Canaã e em sua descendência. Levando isso em consideração, a maldição de Deus recai sobre os cananeus por causa da pecaminosidade prevista por Noé5. A ênfase, então, está no fato de que os cananeus seriam amaldiçoados por causa do seu próprio pecado, não devido ao pecado de Cam. Creio que isso explique porque Canaã é amaldiçoado e não Cam, ou o restante de seus filhos.
As palavras de Noé, portanto, contêm uma profecia. Canaã irá refletir mais amplamente as falhas morais de seu pai, Cam. E os cananeus irão manifestar essas mesmas tendências em sua sociedade. Devido à pecaminosidade dos cananeus prevista por Noé, a maldição de Deus é proferida. O caráter daqueles três indivíduos e o destino de cada um deles será refletido corporativamente nas nações que deles emergirem.
Muito trabalho já foi gasto neste capítulo, por isso vamos nos restringir aos pontos principais. Como já mencionamos, a confusão de Babel precede cronologicamente este capítulo.
A ordem empregada para tratar dos três filhos de Noé reflete a ênfase e o objetivo de Moisés. Jafé é abordado primeiro porque é o menos importante no tema que está sendo desenvolvido. Cam é o seguinte devido ao papel importante desempenhado pelos cananeus na história de Israel. Sem é mencionado por último porque ele é o personagem principal do capítulo. Ele é aquele por intermédio de quem virá o “descendente da mulher”. A linhagem piedosa será preservada por meio de Sem.
A tábua das nações mostra uma seletividade que também é útil para o objetivo da narrativa. Somente as nações que são descritas irão desempenhar um papel chave no desenvolvimento nacional de Israel na terra de Canaã.
Em geral, a identidade dos descendentes dos três filhos de Noé é bem conhecida. De Jafé vêm os indo-europeus, dos quais os mais conhecidos seriam os gregos. Até mesmo a história secular helênica vê Iapetos como seu antepassado6. Leupold nos diz:
... os descendentes de Jafé são vistos dispersos por uma área bem definida desde a Espanha até a Media e quase em linha direta de leste a oeste.7
A maioria de nós seria da linhagem de Jafé.
Cam foi o antepassado daqueles que construíram grandes cidades e impérios, incluindo a Babilônia, a Assíria, Nínive e o Egito. Pute, provavelmente, foi o pai dos povos negros. De Canaã vieram as nações normalmente conhecidas como os cananeus:
Canaã gerou a Sidom, seu primogênito, e a Hete, e aos jebuseus, aos amorreus, aos girgaseus, aos heveus, aos arqueus, aos sineus, aos arvadeus, aos zemareus, e os hamateus; e depois se espalharam as famílias dos cananeus. (Gênesis 10:15-18, cf. Deuteronômio 20:17)
O território deles era aquele diretamente ligado a Israel:
E o limite dos cananeus foi desde Sidom, indo para Gerar, até Gaza, indo para Sodoma, Gomorra, Admá e Zeboim, até Lasa. (Gênesis 10:19)
Sem é o antepassado dos semitas. Precisamos ter cuidado para não confundir essa designação com os povos que falam as línguas semíticas. Estas línguas incluem tanto os povos descendentes de Sem quanto os de Cam8. Ross menciona os descendentes de Sem como “... as famílias que se estendem da Ásia Menor até as montanhas ao norte da região do Tigre, a Ur na Suméria, ao Golfo Pérsico e finalmente ao Norte da Índia”.9
O descendente mais proeminente de Sem é Éber, pai de Pelegue (10:25), antepassado de Abrão (cf. 11:14-26).
Cassuto sintetiza muito bem o objetivo do capítulo 10:
(a) mostrar que a providência divina é refletida na distribuição das nações sobre a face da terra não menos que em outros atos da criação e da administração do mundo; (b) determinar o relacionamento entre o povo de Israel e os outros povos; c) ensinar a unidade da humanidade pós-diluviana, a qual, como a raça humana antediluviana, era inteiramente descendente de um único par de seres humanos.10
Os capítulos 9 e 10 de Gênesis foram vitais à nação de Israel por terem precedido a ocupação da terra prometida de Canaã. A maldição de Canaã explicou a origem da depravação moral dos cananeus da sua época. Mais do que qualquer outro povo, sua depravação sexual é comprovada pelas descobertas arqueológicas. Albright escreveu:
A comparação de objetos de culto e textos mitológicos dos cananeus com os dos egípcios e mesopotâmios leva a uma única conclusão: a religião dos cananeus era totalmente voltada para o sexo e suas manifestações. Em nenhum outro país têm sido encontradas tantas estatuetas de deusas da fertilidade nuas, algumas claramente obscenas. Em nenhum outro lugar a adoração de serpentes aparece com tanta força. As duas deusas, Astarte (Astarote) e Anate, são chamadas de “as grandes deusas que concebem, mas não dão à luz”.11
Além de explicar a razão para o extermínio dos cananeus, Gênesis 10 ajuda também a identificá-los:
Aqui os cananeus são especificados, pois Moisés sabia que Israel teria muitas ligações com aqueles povos (cf. 15:16), e os israelitas precisavam saber claramente quais eram cananeus e quais não eram, pois tinham o dever de expulsá-los da terra de Canaã (Deuteronômio 20:17 e paralelos).12
Infelizmente, precisamos reconhecer que Israel deixou de aplicar totalmente o ensino desta passagem. Eles não destruíram por completo os cananeus e até se casaram com eles, para seu próprio prejuízo.
Há uma grande lição para nós nesta porção da Escritura:
Ora, estas coisas se tornaram exemplos para nós, a fim de que não cobicemos as coisas más, como eles cobiçaram. Não vos façais, pois, idólatras, como alguns deles; porquanto está escrito: O POVO ASSENTOU-SE PARA COMER E BEBER E LEVANTOU-SE PARA DIVERTIR-SE. E não pratiquemos imoralidade, como alguns deles o fizeram, e caíram, num só dia, vinte e três mil. Não ponhamos o Senhor à prova, como alguns deles já fizeram e pereceram pelas mordeduras das serpentes. Nem murmureis, como alguns deles murmuraram e foram destruídos pelo exterminador. Estas coisas lhes sobrevieram como exemplos e foram escritas para advertência nossa, de nós outros sobre quem os fins dos séculos têm chegado. Aquele, pois, que pensa estar em pé veja que não caia. (1 Coríntios 10:6-12)
Tenho pensado muito nesta passagem porque, de certa forma, ela não parecia ter grande impacto sobre a minha vida. De repente, me ocorreu que a questão é justamente a história da nudez de Noé para as pessoas da nossa época.
É muito difícil para nós ficar impressionado com o fato de Noé estar estendido nu e bêbado em sua tenda. Afinal, alguns poderiam dizer: “Será que o pecado dele prejudicou alguém? Ele não estava nu na privacidade da sua tenda?” Ficamos mais surpresos com as medidas “extremas” tomadas por Sem e Jafé do que com a nudez de Noé, é ou não é?
Devido a isso, os eruditos têm tentado encontrar algum pecado mais chocante que tenha ocorrido dentro da tenda. Alguns sugerem que Cam presenciou a intimidade sexual de seu pai com sua mãe. Outros pensam que ele teve relações homossexuais com o pai semiconsciente. Mas nada disso é exigido pelo texto.
O grande problema dos nossos dias é que quase não há mais identificação com o tipo de atitude ou ação dos dois filhos piedosos de Noé, Sem e Jafé. Nós não ficamos envergonhados, nem chocados com o que aconteceu com Noé em sua tenda. E a razão disso é o que torna esta passagem realmente chocante: fazemos parte de uma sociedade que não se envergonha, nem se escandaliza diante da indecência moral e sexual. Praticamente todo tipo de intimidade sexual é retratado nos filmes e nas telas da TV.
Mesmo condutas anormais e pervertidas têm se tornado rotineiras para nós. Sem o mínimo senso de decência, as coisas mais íntimas e particulares são anunciadas diante de nós e de nossos filhos.
Você percebe qual é o problema? Nós não nos preocupamos com a nudez de Noé porque descemos tanto no caminho da decadência que nem vacilamos diante do que aconteceu nesta passagem. Ora, meu amigo, se a condenação de Deus recaiu sobre os atos de Cam e de quem andou em seus caminhos, o que isso diz para você e para mim? Deus nos perdoe por não ficarmos mais chocados e envergonhados. Deus nos guarde dos pecados dos cananeus. Deus nos ensine o valor da pureza moral e a sermos implacáveis com o pecado. Que não deixemos o pecado habitar entre nós, como este texto ensinou a Israel.
Mas existe ainda um outro nível de aplicação. A maioria de nós tende a pensar em santidade em termos dos pecados que cometemos ou evitamos. Esta história nos diz que um dos testes do caráter cristão é a nossa reação aos pecados dos outros. Cam, aparentemente, se divertiu com o pecado de Noé, em vez de ficar horrorizado com o que viu. E não é exatamente é isso o que acontece na nossa sala de estar diante do aparelho de TV? Nós não achamos o pecado repugnante, mas engraçado.
Qual deve ser a nossa reação diante dos pecadores hoje em dia? Será que devemos acabar com eles como fez Israel com os cananeus? O Novo Testamento nos dá instruções muito claras quanto a isso:
E não sejais cúmplices nas obras infrutíferas das trevas; antes, porém, reprovai-as. Porque o que eles fazem em oculto, o só referir é vergonha. (Efésios 5:11-12)
Irmãos, se alguém for surpreendido nalguma falta, vós, que sois espirituais, corrigi-o com espírito de brandura; e guarda-te para que não sejas também tentado. (Gálatas 6:1)
Acima de tudo, porém, tende amor intenso uns para com os outros, porque o amor cobre multidão de pecados. (1 Pedro 4:8)
Salvai-os, arrebatando-os do fogo; quanto a outros, sede também compassivos em temor, detestando até a roupa contaminada pela carne. (Judas 23)
Ao contrário de Cam, devemos aplicar o princípio da privacidade reiterado por Paulo em Efésios 5:12. Alguns pecados não devem ser esquadrinhados. Não devemos explorá-los, nem compartilhar o que sabemos com outras pessoas. Este princípio, creio, foi seguido por Moisés pelo modo como ele registrou, de forma breve e sucinta, o pecado de Noé e suas consequências. As consequências são bem salientadas, mas não as circunstâncias. Vamos aprender com isso.
Observe que nesta passagem em Efésios aprendemos a reprovar as obras infrutíferas das trevas (4:11). Mas isso não deve ser feito explorando o pecado ou vivendo nas trevas, mas vivendo como luzes, brilhando num mundo de escuridão.
... até que todos cheguemos à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, à perfeita varonilidade, à medida da estatura da plenitude de Cristo, para que não mais sejamos como meninos, agitados de um lado para o outro e levados ao redor por todo o vento de doutrina, pela artimanha dos homens, pela astúcia com que induzem ao erro. (Efésios 4:13-14)
O pecado é reprovado pela retidão, não por fazer fofoca de atos pecaminosos.
Gálatas 6:1 nos ensina a restaurar aquele que caiu em pecado. Nessa passagem Paulo ressalta a atitude de quem deve se encarregar dessa obrigação. A pessoa precisa ser dotada de espírito de brandura, e também extremamente consciente da sua própria fraqueza na mesma área.
Pedro nos ensinou que a melhor maneira de lidar com o pecado é quando ele é conhecido pelo menor número de pessoas. O amor não cobre multidão de pecados da forma como vimos em Watergate. Aquilo foi acobertar, não cobrir. Eles tentaram manter os atos ilegais longe do escrutínio público. A cobertura sobre a qual Pedro escreveu é o esforço para falar o mínimo possível sobre o pecado, de modo que os culpados encontrem perdão e reconciliação enquanto os outros não são tentados ou prejudicados pelo conhecimento desse pecado.
Finalmente, Judas nos fala sobre o ódio que devemos sentir pelo pecado e sobre o desejo de santidade de permanecer puros para a glória de Deus. Não podemos odiar o pecador, mas o pecado, sim. Não devemos nos afastar daquele que caiu, mas arrancá-lo do fogo.
Para concluir, vejo nestes três homens — Sem, Cam e Jafé, um retrato dos homens ao longo da história do relacionamento de Deus com eles. No capítulo 12 de Gênesis, vemos a linhagem pela qual virá o Salvador estreitando-se na descendência de Abraão. Os homens serão abençoados ou amaldiçoados de acordo com sua atitude para com ele (Gênesis 12:1-3).
No Calvário vemos representada a epítome do pecado do homem. Sem estava presente nos líderes religiosos judaicos que queriam o Messias morto e fora do caminho. Jafé estava presente nos romanos que se uniram aos judeus para crucificar o Senhor da glória. E Cam estava presente em Simão Cirineu, que servilmente carregou a cruz de Jesus (cf. Lucas 23:26).
Temos uma escolha a fazer, pois podemos experimentar as bênçãos de Jafé ou a maldição de Canaã. A descendência justa finalmente culminou na vinda do Messias, o descendente da mulher (Gênesis 3:15), o descendente de Sem (Gênesis 9:26) e de Abraão (12:2-3). Em Cristo, pela fé e submissão a Ele como meio de Deus para dar perdão e justificação aos pecadores podemos experimentar a bênção de Jafé. Desprezando e rejeitando a Cristo — permanecendo em nossos pecados, ficamos sujeitos à maldição de Canaã por toda a eternidade.
Queira Deus ajudá-lo a encontrar salvação e bênção em Jesus Cristo.
Tradução e Revisão: Mariza Regina de Souza
1 Alguns acusam Cam de praticar um ato homossexual com Noé, enquanto este estava no torpor da bebedeira. Nosso texto diz que Cam “viu a nudez de seu pai” (versículo 22). Embora a expressão “descobrir a nudez de outrem” possa ser um eufemismo para relações sexuais (cf. Levítico 18:6 e ss), esta não é a linguagem empregada no nosso texto. Além do mais, há nesta passagem, um contraste entre Cam, que viu a nudez de Noé, e sem e Jafé, que não viram (Gênesis 9:23). A descrição de como eles viraram o rosto para não ver a condição de Noé é uma implicação muito forte de que ver ou não ver era o xis da questão. A sugestão de que Cam viu Noé e sua mãe no meio de uma relação sexual tem o mesmo ponto fraco.
2 A expressão “servo dos servos” (versículo 25) é similar às expressões “Senhor dos senhores” e “Rei dos reis”. É uma maneira enfática de expressar soberania ou servidão extrema.
3 “Tanto os antigos quanto os modernos eruditos consideram essa palavra com sentido de “engrandecer”, com base no seu uso aramaico... e essa parece ser a interpretação correta.” U. Cassuto, Comentário do Livro de Gênesis (Jerusalém: The Magnes Press, 1964), II, pp. 168-169.
4 Sem significa “nome” e é provável que também seja um jogo de palavras.
5 Esta é a conclusão de Leupold, que escreve: “Mas, e quanto à justiça no desenrolar desta história? Do nosso ponto de vista, a maioria dos problemas já foi resolvida. Nós interpretamos “maldito é Canaã”, e não “seja Canaã” (A. V.); e “ele será servo dos servos”, e não no sentido opcional “talvez seja”. O traço perverso revelado por Cam nesta história, foi, sem dúvida, visto por Noé como algo mais marcante em Canaã, filho de Cam. A raça toda de Canaã irá demonstrar esse traço muito mais que qualquer outra raça na terra. Predizer não implica em qualquer injustiça. O filho não é punido pela iniquidade do pai. Sua própria depravação moral miserável, que ele mesmo desenvolve e mantém, é predita.” H. C. Leupold, Exposição de Gênesis (Grand Rapids: Baker Book House, 1942), I, p. 350.
6 “O primeiro ancestral desses povos foi Helena, uma descendente de Prometeu, cujo pai foi o titã Iapetos (Jafé).” Allen Ross, A Tábua das Nações (dissertação de doutorado não publicada: Seminário Teológico de Dallas), 1976, p. 365, citando Neiman, “Data e circunstâncias da maldição de Canaã”, p. 126.
7 Leupold, Gênesis, I, p. 362.
8 Para uma análise mais detalhada, cf. Ross, pp. 371 e seguintes.
9 Ross, p. 375
10 Cassuto, II, p. 175
11 William F. Albright, “Recentes Descobertas nas Terras da Bíblia”, Young´s Analytical Concordance to the Bible, 20ª ed., p. 29, como citado por Louis B. Hamada, Implicações proféticas da maldição de Noé sobre Canaã (tese não publicada: Seminário Teológico de Dallas, 1978), p. 24.
12 Leupold, Gênesis, I, p. 372.
Recentemente, posar para a câmera da Playboy custou o emprego a uma aeromoça de 26 anos. Conforme noticiado pelo Dallas Morning News1, a tragédia não foi sua liberação, mas suas razões para se expor. Ela ficou sabendo que precisava de uma cirurgia no pulmão e que o resultado poderia não ser bom. Por isso resolveu posar, para o mundo poder se lembrar dela.
Admiro a honestidade dessa jovem, mas fico preocupado com sua decisão. Embora a maioria das pessoas não seja tão franca quanto a seus motivos, o mundo está repleto de gente que deseja desesperadamente ser lembrada. Todos nós temos uma certa tendência para erguer monumentos a nós mesmos.
Os homens precisam encarar aquilo que é conhecido como a “crise da meia-idade”. Alcançamos essa fase quando começamos a perceber que a maioria das coisas que tínhamos a intenção de fazer ainda não foi feita. E não podemos mais negar o fato de que a melhor parte da vida já passou. Muitas vezes, no meio dessa crise, os homens começam febrilmente a erguer monumentos pelos quais querem ser lembrados.
Esta é a razão pela qual a história da Torre de Babel, encontrada em Gênesis capítulo 11, é tão importante para nós. Ela revela a causa principal para se erguer monumentos. Melhor ainda, ela nos dá a cura para isso e nos ensina a enfrentar o futuro com paz no coração.
A tentação de se referir a este incidente na planície de Sinear como “a Torre de Babel” é muito grande. Embora tudo o que saibamos sobre ele nos leve a pensar na torre, este não foi o principal problema, só um sintoma. Cassuto, em seu comentário sobre Gênesis, se recusou a intitular a seção da maneira tradicional, pois percebeu qual era o verdadeiro vilão da história2. Uma vez apreciada a sabedoria de Cassuto, vamos ao centro da história e à sua aplicação para nós hoje.
O versículo um destaca uma particularidade da raça humana que, em si mesma, não é uma coisa ruim: “Ora, em toda a terra havia apenas uma linguagem e uma só maneira de falar” (Gênesis 11:1). É preciso reconhecer que, sendo a raça humana proveniente de um ancestral comum, a saber, Noé, todos os homens falavam uma língua comum3. Moisés começa o relato da confusão de línguas chamando nossa atenção para esse fato.
Ora, não havia nada de errado numa linguagem comum. Isso não era ruim, e nem foi essa a causa do mal. Ela otimizava a comunicação; facilitava a vida da comunidade e era base para a união. Potencialmente, uma linguagem comum poderia ter atraído homens e mulheres para, juntos, adorar e servir a Deus. Na prática, ela foi deturpada para promover desobediência e incredulidade. O dom da linguagem dado por Deus, como outros dons da Sua graça, foi mal usado. O homem pecaminoso nada pode fazer, exceto fazer mau uso dos dons da graça de Deus.
Nossa atenção, portanto, é atraída para o fato de um conhecimento comum, não porque não saibamos disso, mas porque isso deu ocasião ao mal que veio a seguir. E isso também foi o que Deus mudou a fim de frustrar os planos mal intencionados dos homens.
O homem havia migrado para a planície fértil na terra de Sinear e lá se assentado. “Sucedeu que, partindo eles do Oriente, deram com uma planície na terra de Sinear, e habitaram ali” (Gênesis 11:2).
Parece que a descendência de Noé resolveu trocar suas tendas por casas na cidade4. “Engrandeça Deus a Jafé, e habite ele nas tendas de Sem; e Canaã lhe seja servo” (Gênesis 9:27).
Leupold observa que a palavra “partiram” em Gênesis 11:2 significava, literalmente, “mudar de lugar”5. Até aqui, a vida urbana não tem sido apresentada sob uma luz muito favorável. Caim edificou uma cidade e deu a ela o nome de seu filho Enoque (Gênesis 4:17). Deus tinha dito que ele seria fugitivo e errante (4:12). Ninrode, descendente de Cam, também parece ter sido um fundador de impérios (10:9-12). De fato, é possível que ele tenha sido o líder do movimento de assentamento em Sinear e da construção da cidade e da torre6.
Estabelecer-se no vale de Sinear foi um ato de desobediência. Deus tinha ordenado aos homens que se espalhassem e enchessem a terra, não que se ajuntassem em cidades:
Abençoou Deus a Noé e a seus filhos e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a terra... Mas sede fecundos e multiplicai-vos; povoai a terra e multiplicai-vos nela. (Gênesis 9:1, 7)
Nos versículos 3 e 4, as intenções humanas são especificadas:
E disseram uns aos outros: Vinde, façamos tijolos e queimemo-los bem. Os tijolos serviram-lhes de pedra, e o betume, de argamassa. Disseram: vinde, edifiquemos para nós uma cidade e uma torre cujo tope chegue aos céus e tornemos célebre o nosso nome, para que não sejamos espalhados por toda a terra. (Gênesis 11:3-4)
O versículo 3 nos diz o quanto o homem queria edificar uma cidade e construir uma torre. Para um judeu palestino, particularmente alguém recém-chegado do Egito, seria de esperar que qualquer projeto de construção empregasse pedra e cimento. Mas ali não havia abundância desses materiais, por isso, foi necessário substituir as pedras por tijolos queimados e o cimento por betume7.
Aqueles homens não deram início à construção sem antes calcular todos os custos. Eles previram os obstáculos e estavam decididos a superá-los. Sua determinação de construir uma cidade apesar das dificuldades nos mostra o tamanho do seu esforço. Alguns veem no versículo 4 uma forte conotação religiosa, como se, construindo a torre, eles estivessem tentando chegar a Deus.
Disseram: vinde, edifiquemos para nós uma cidade e uma torre cujo tope chegue aos céus e tornemos célebre o nosso nome, para que não sejamos espalhados por toda a terra. (Gênesis 11:4)
Não creio que esse argumento possa ser confirmado. É difícil acreditar que Moisés deixasse uma questão como essa para simples inferência. A expressão “chegue aos céus” é específica, não espiritual. Ela implica simplesmente em grande altura. Essa é a conotação em outras passagens:
Para onde subiremos? Nossos irmãos fizeram com que se derretesse o nosso coração, dizendo: Maior e mais alto do que nós é este povo: as cidades são grandes e fortificadas até aos céus. Também vimos ali os filhos dos enaquins. (Deuteronômio 1:28, cf. 9:1; Salmo 107:26)
A torre não recebe muito destaque. Ela é considerada como parte da cidade. Embora as zigurates mesopotâmicas de épocas posteriores tenham sido distintamente religiosas8, não há nenhuma indicação desse tipo no nosso texto. A declaração: “e tornemos célebres o nosso nome” (versículo 4) explica melhor a finalidade da construção da cidade e da torre imponente.
O que deu origem às ações dos homens parece ter sido arrogância, rebelião e orgulho9.
Como quase sempre acontece, não revelamos os nossos verdadeiros motivos até o último minuto. Creio que isso seja verdade nesta passagem. A última afirmação do povo da antiga Babel é a chave para o texto: “...para que não sejamos espalhados por toda a terra” (versículo 4).
Aquelas pessoas não podiam conceber bênção e segurança como resultado da dispersão, mesmo que Deus a tenha ordenado. Eles se sentiam mais seguros vivendo perto uns dos outros. O futuro seria mais brilhante se pudessem deixar para a posteridade um monumento à sua criatividade e ao seu talento10.
Embora rebelião, orgulho e incredulidade sejam evidentes nesta história, o problema mesmo era o medo. Richardson coloca o dedo na ferida quando escreve:
A aversão pelo anonimato ou leva o homem a grandes feitos heróicos ou a longas horas de trabalho maçante; ou os induz a espetáculos de vexame ou de inescrupulosa autopromoção. Nas piores formas, essa aversão tenta lhes granjear a honra e a glória que pertencem somente ao nome de Deus11.
Aqueles homens da antiguidade deviam conhecer os mandamentos de Deus e da Sua aliança. Caso contrário, por que teriam receio de serem espalhados? No entanto, tudo o que eles tinham era uma promessa de Deus. Suas esperanças estavam em palavras abstratas, não em algo concreto, por isso, eles depositaram sua fé em tijolos e piche.
Os versículos seguintes registram a reação de Deus à desobediência do homem:
Então, desceu o Senhor para ver a cidade e a torre, que os filhos dos homens edificavam; e o Senhor disse: Eis que o povo é um e todos têm a mesma linguagem. Isto é apenas o começo; agora não haverá restrição para tudo que intentam fazer. Vinde, desçamos e confundamos ali a sua linguagem, para que um não entenda a linguagem do outro. Destarte, o Senhor os dispersou dali pela superfície da terra; e cessaram de edificar a cidade. (Gênesis 11:5-8)
Como Cassuto observou12, esta passagem é um exemplo de talento literário. As intenções do homem são refreadas pela intervenção divina.
Os versículos 5 e 6 têm incomodado muita gente, pois pode parecer que diminuem a soberania de Deus. Tem-se a impressão de que Ele deixa a situação quase sair de controle antes mesmo de ter ciência dela. É como se um dos anjos O tivesse informado sobre o incidente em Babel e Ele tivesse descido às pressas para investigar o assunto. Qualquer concepção desse tipo carece do ponto de vista do escritor.
Esses versículos são uma sátira muito bem feita à tolice das atitudes humanas. Aqueles homens tinham começado a edificar uma cidade com uma grande torre por acharem que isso lhes daria renome. Moisés está sugerindo que os pensamentos e esforços do homem, por mais altos que sejam, são insignificantes para Deus. Mesmo que o topo da torre parecesse, do ponto de vista da terra, penetrar as nuvens, para o Deus infinito, todo poderoso, aquilo era apenas um pontinho indistinto na terra. É como se Deus tivesse de Se inclinar para vê-lo13. Se Ele tivesse de “descer” à terra para examinar aquela cidade, seria devido à sua total insignificância, não devido à inabilidade divina de acompanhar Sua criação.
Se o versículo 5 descreve a investigação de Deus, o versículo 6 nos fala da Sua avaliação da situação.
E o Senhor disse: Eis que o povo é um e todos têm a mesma linguagem. Isto é apenas o começo; agora não haverá restrição para tudo que intentam fazer. (Gênesis 11:6)
O mal não residia no fato de todos falarem uma só língua. Isso só dava oportunidade ao homem pecaminoso de se expressar com maior facilidade. Todavia, esse fato realmente indicou um meio para o homem planejar a reversão da ordem de Deus.
O término da cidade, de forma alguma, seria uma ameaça à autoridade de Deus. Obviamente, seria uma violação ao Seu mandamento para o homem se dispersar e encher a terra. O versículo 6 explica o impacto que a construção da cidade teria nos homens se seus planos fossem bem-sucedidos. Eles poderiam concluir que, como conseguiram edificar a cidade apesar dos obstáculos, poderiam fazer qualquer coisa que tivessem em mente. Um pouco dessa mentalidade foi visto quando o homem pôs os pés na Lua pela primeira vez. Lembro-me de que disseram algo mais ou menos assim: “Um pequeno passo para o homem, um grande salto para a humanidade”. Quando a criatividade humana foi empregada com êxito para superar as diversas barreiras para alcançar a superfície da Lua, o homem sentiu que nenhum problema estava além do seu alcance.
Nos dias dos descendentes de Noé, em Babel, os homens depositaram sua confiança em tijolos e argamassa, e na obra das suas mãos. Na nossa época somos apenas um pouco mais sofisticados. Confiamos em transistores, circuitos integrados e tecnologia. Sentimos que, se conseguimos colocar um homem na Lua, nada pode nos impedir de resolver qualquer problema.
É essa atitude arrogante de autoconfiança e independência de Deus que Ele sabia ser inevitável se os homens fossem bem-sucedidos. Por isso, Ele Se propôs a frustrar os planos humanos: “Vinde, desçamos e confundamos ali a sua linguagem, para que um não entenda a linguagem do outro” (Gênesis 11:7).
O que vemos aqui é mais uma medida preventiva do que uma punição. A mecânica da confusão de línguas só pode ser imaginada, mas o resultado é evidente. O projeto foi abruptamente interrompido, um monumento ao pecado do homem.
Aquilo que o homem mais temia veio a acontecer.
Chamou-se-lhe, por isso, o nome de Babel, porque ali confundiu o Senhor a linguagem de toda a terra e dali o Senhor os dispersou por toda a superfície dela. (Gênesis 11:9)
A ironia dessa história é que aquilo que os homens mais queriam teria causado sua destruição, e aquilo que eles mais temiam acabou sendo ser uma parte da sua libertação.
Num momento determinado da história, o nome babilônico de Babel (Bab-ili) teve o significado de “o portão Deus”14. Com um jogo de palavras, Deus mudou-o para “confusão” (Balal)15.
Nesta breve narrativa, encontramos alguns princípios que são essenciais para os verdadeiros crentes de qualquer época.
(1) Os planos do homem nunca poderão frustrar os propósitos de Deus. Deus ordenou à raça humana que “enchesse a terra” (Gênesis 9:1). Os homens preferiram se enclausurar a se dispersar em cumprimento a essa ordem. Apesar do grande esforço feito pelo homem, os propósitos de Deus prevaleceram. Meu amigo, pessoas de todas as épocas têm aprendido que não se pode resistir à vontade de Deus. Você pode ser destruído, mas Deus nunca Se afastará dos Seus propósitos. Essa foi a conclusão a que Saulo chegou:
E caindo todos em terra, ouvi uma voz que me falava em língua hebraica: Saulo, Saulo, por que me persegues? Dura cousa é recalcitrares contra os aguilhões. (Atos 26:14)
Um amigo meu costumava dizer: “Essa parede está ficando mais macia ou é a minha cabeça que está ficando cada vez mais ensanguentada?”
Homem nenhum pode frustrar a vontade de Deus. Passar a vida resistindo à vontade revelada do Senhor Deus só pode acabar em frustração e fracasso. Ninguém pode ser bem-sucedido resistindo a Deus.
(2) A união não é a melhor coisa, e sim a pureza e obediência à Palavra de Deus. Ecumenismo é o lema religioso da nossa época, mas essa é uma união feita às custas da verdade. Alguns consideram a união como um alvo digno de qualquer sacrifício. Deus não. Na verdade, os antigos israelitas logo iriam aprender que os cananeus, diferentemente dos egípcios (cf. Gênesis 46:33-34), estavam ansiosos para se unir ao povo escolhido de Deus (cf. Gênesis 34: 8-10, Números 25:1 e ss). Paz e união nunca devem ser alcançadas às custas da pureza. O povo de Deus deve ser santo, assim como Ele é santo (Levítico 11:44 e ss, 1 Pedro 1:16).
A verdadeira união só pode ocorrer em Cristo (João 17:21, cf. Efésios 2:4-22). Essa união deve ser diligentemente preservada (Efésios 4:3). No entanto, a união em Cristo resulta em separação daqueles que O rejeitam (Mateus 10:34-36). Precisamos nos separar de quem nega a verdade (2 João 7-11, Judas 3). Não pode existir união verdadeira com quem nega o nosso Deus.
(3) A falta de comunicação criada em Gênesis 11 só pode ser transposta por Cristo. Os profetas do Antigo Testamento reconheceram o efeito progressivo de Babel e falaram do dia em que ele seria revertido:
Então, darei lábios puros aos povos, para que todos invoquem o nome do Senhor e o sirvam de comum acordo. Dalém dos rios da Etiópia, os meus adoradores, que constituem a filha da minha dispersão, me trarão sacrifícios. Naquele dia, não te envergonharás de nenhuma de tuas obras, com que te rebelaste contra mim; então, tirarei do meio de ti os que exultam na sua soberba, e tu nunca mais te ensoberbecerás no meu santo monte. (Sofonias 3:9-11)16
O fenômeno de línguas em Atos capítulo dois indica “os primeiros frutos” da renovação que ainda será plenamente realizada.
Francamente, fico muito preocupado com a ignorância de cristãos da nossa época quanto à falta de comunicação em nossos relacionamentos. O colapso nas comunicações tem suas raízes em Gênesis capítulo 11. Muitas esposas sofrem em silêncio por seus maridos não conseguirem entender o que elas tentam lhes dizer, e por eles serem incapazes de revelar seus sentimentos mais íntimos. Embora Cristo seja a resposta para esse dilema, a maioria de nós não consegue compreender o fato de que isso é uma ameaça aos nossos relacionamentos.
(4) Relacionamentos superficiais e atividades artificiais inevitavelmente farão a vida perder sentido. Alguém já disse que a definição de “casca” é: “algumas migalhas de pão com um pouco de massa para mantê-las unidas”. O que mantém a vida de vocês unida? Como é triste saber que os antigos babilônios acharam que sua segurança estava numa cidade e depositaram sua esperança em tijolos queimados e betume.
O que mais me assusta é muitas vezes a igreja cair na mesma armadilha que o mundo. Criamos uma porção de programações com o intuito de manter as pessoas ocupadas e lhes dar a falsa sensação de envolvimento e atividade. Embora essas programações não sejam contrárias à vida cristã, muitas vezes elas se transformam no substituto de uma fé viva, devoção e poder. Em muitas igrejas, Deus poderia ter morrido há 50 anos e ninguém teria percebido.
Ao estudar a torre de Babel, é impossível não pensar em nossos projetos de construção de igreja. Como é comum darmos início a um projeto de construção ou reforma da igreja achando que isso será motivo de ânimo para as pessoas, e que um belo edifício, de alguma forma, atrairá novos membros!
Que Deus nos ajude a evitar a artificialidade de Babel. Esse é o tipo de religião dissimulada, sem vida e sem valor.
(5) A Palavra de Deus, não as obras das nossas mãos, é a única coisa digna da nossa fé. Os homens de Babel começaram a ver o trabalho como solução, não como maldição. Eles acreditaram que a obra das suas mãos poderia lhes garantir alguma espécie de imortalidade além-túmulo. Desconfio que essa seja a força motora por trás do viciado em trabalho. Ele (ou ela) não consegue nem descansar por não estar seguro de ter construído um monumento grande o suficiente.
E não é sobre isso que o salmista escreveu?
Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam; se o Senhor não guardar a cidade, em vão vigia a sentinela. Inútil vos será levantar de madrugada, repousar tarde, comer o pão que penosamente granjeastes; aos seus amados ele o dá enquanto dormem. Herança do Senhor são os filhos; o fruto do ventre, seu galardão. Como flechas na mão do guerreiro, assim os filhos da mocidade. Feliz o homem que enche deles a sua aljava; não será envergonhado, quando pleitear com os inimigos à porta. (Salmo 127:1-5)
Já reparou na referência do versículo dois ao “pão que penosamente granjeastes”? Com certeza, isso é um reflexo da maldição de Gênesis capítulo três: “No suor do rosto comerás o teu pão...” (Gênesis 3:19a)
O salmista sabia que o trabalho nunca poderia dar ao homem o descanso e a paz pelos quais labutou, e sim a confiança somente no que Deus providenciasse. A bênção viria pelos filhos que Deus lhe desse no descanso e intimidade do seu lar (Salmo 127:3-5). Não era isso o que as pessoas de Babel precisavam entender?
O esforço humano nunca é gratificante, nem recompensador. Somente o trabalho feito para o Senhor, e na Sua força, produz satisfação permanente.
A mulher samaritana, no capítulo quatro de João, buscava água para saciar sua sede. Jesus lhe ofereceu a água que a satisfaria para sempre:
Afirmou-lhe Jesus: Quem beber desta água tornará a ter sede; aquele, porém, que beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede; pelo contrário, a água que eu lhe der será nele uma fonte a jorrar para a vida eterna. (João 4:13-14)
O “alimento” que era muito mais precioso que simples comida era fazer a vontade do Pai:
Nesse ínterim, os discípulos lhe rogavam, dizendo: Mestre, come! Mas ele lhes disse: Uma comida tenho para comer, que vós não conheceis. Diziam, então, os discípulos uns aos outros: Ter-lhe-ia, porventura, alguém trazido o que comer? Disse-lhes Jesus: A minha comida consiste em fazer a vontade daquele que me enviou e realizar a sua obra. (João 4:31-34)
Você já encontrou a satisfação e o descanso proporcionados por Deus em Jesus Cristo? Somente isso pode satisfazer os anseios do homem.
Esse é o “descanso” que Lameque, o pai de Noé, esperava na descendência de seu filho:
Pôs-lhe o nome de Noé, dizendo: Este nos consolará dos nossos trabalhos e das fadigas de nossas mãos, nesta terra que o Senhor amaldiçoou. (Gênesis 5:29)
Deus oferece salvação aos homens na morte sacrificial de Jesus Cristo na cruz do Calvário. Ele garante que, quem crer em Jesus Cristo — quem confiar nEle para receber o perdão de seus pecados e a vida eterna — será salvo. Isso é suficiente. Esse é o fundamento da esperança além-túmulo.
(6) Muitas coisas feitas pelo homem na terra são um monumento à sua própria insegurança. Mais do que nunca esta passagem me impressiona pela grande insegurança demonstrada pelo homem. Muitas vezes sinto que a fonte das suas atitudes pecaminosas é sua rebelião obstinada ou sua constante agressividade contra Deus. O homem se rebela mesmo contra Deus, mas o motivo de grande parte da sua desobediência tem como base a sua insegurança.
Por trás da fachada de realizações, conquistas, bravatas e autoconfiança está o fantasma assustador de deixar esta vida sem nenhuma certeza do que vem a seguir. Esta, na minha opinião, foi a verdadeira razão para a construção da cidade de Babel e sua torre. As pessoas daquela época estavam dispostas a fazer quase qualquer sacrifício para ter alguma esperança de imortalidade. Essa esperança estava no prestígio que poderiam conquistar por si mesmos.
Você já parou para pensar no papel que a insegurança pode desempenhar nas coisas às quais você dedica tempo e energia? Cristãos que não entendem profundamente a graça de Deus e Seu soberano controle são atormentados pela insegurança de achar que o trabalho de Deus e Sua vontade estão condicionados à sua própria fidelidade, não à fidelidade divina. Nossa insegurança pode ser a razão para muitas das nossas atividades cristãs. Se fizermos mais pelo Senhor, nós nos sentiremos mais seguros e teremos certeza das Suas bênçãos. Esse tipo de ativismo não é muito diferente daquele demonstrado pelos que viveram na planície de Sinear.
Nós, pregadores, também precisamos aprender uma lição importante com esta história. Queremos ver os resultados do nosso trabalho. Talvez fiquemos inseguros com aquilo que Deus nos chama a fazer. Devido à nossa própria insegurança, podemos exigir mais das outras pessoas e incitá-las a se envolver mais no trabalho de Deus. Esses motivos sempre são razões erradas para o serviço cristão. Servir deve ter como fundamento a gratidão, não a culpa ou o medo.
Como Paulo escreveu: “Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis os vossos corpos...” (Romanos 12:1a).
Os problemas que discutimos são complexos, mas a solução é simples. Devemos fazer aquilo que os filhos de Noé deveriam ter feito, simplesmente confiar e obedecer. Este é o jeito de ter bênção em Jesus.
Tradução e Revisão: Mariza Regina de Souza
1 “People,” The Dallas Morning News, p. 3a, April 23, 1980.
2 Sou grato a U. Cassuto, que colocou a torre de Babel na perspectiva apropriada quando escreveu:
“A torre é apenas um detalhe neste episódio — parte de uma cidade gigantesca que os homens tentaram construir para alcançar seu objetivo. Não é sem razão, portanto, que o final da história se refira somente à suspensão da construção da cidade, mas não à construção da torre (v. 8: e cessaram de edificar a cidade). Assim sendo, não coloco no cabeçalho dessa narrativa o título usual de “A Torre de Babel” ou “A Construção da Torre de Babel”; ao invés disso, uso a expressão costumeira empregada na literatura judaica: “A História da Geração da Divisão”, que retrata melhor a intenção e o conteúdo do texto”. U. Cassuto, Comentário no Livro de Gênesis (Jerusalém: The Magnes Press, 1964), II, p. 226.
3 “Literalmente, o texto diz ‘as mesmas palavras’, ou seja, as palavras eram comuns a todos, indicando que todos as compartilhavam, apoiando a tradução ‘um vocabulário’. A sintaxe (linguagem) e o vocabulário eram simples, totalmente compreensíveis a todo mundo. A comunicação era rápida, e ideias e planos eram difundidos de imediato”. Harold G. Stigers, Comentário em Gênesis (Grand Rapids: Zondervan, 1976), p. 131.
4 Havia também um elemento nômade natural, pois eles estavam sempre indo de um lugar para outro. As condições da vida agrícola sem dúvida precisavam de muita movimentação. Em suas jornadas, finalmente eles chegaram à terra de Sinear, a planície onde tempos depois foi estabelecida a Babilônia (cap. 10:10). A fertilidade dessa planície era especial, e não ficamos surpresos ao ler que “ali eles habitaram”. W. H. Griffith Thomas, Genesis: A Devotional Commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 1946), p. 108.
5 H. C. Leupold, Exposition of Genesis (Grand Rapids: Baker Book House, 1942), I, p 384.
6 “Mais uma vez, como este evento, com toda probabilidade, ocorreu durante a vida de Ninrode, o primeiro indivíduo de quem se tem registro por ter almejado o domínio sobre as outras pessoas, e, conforme é declarado a seu respeito: ‘o início de seu reino foi Babel’, nada mais natural do que supor que ele tenha sido o líder deste ousado empreendimento, o qual pode muito bem ter sido um plano seu para alcançar o governo do mundo”. (George Bush, Notes on Genesis (Minneapolis: James and Clock Publishing Co., 1976, Reprint), p. 183.
7 “Aqui Moisés introduz uma nota explicativa antes de nos deixar saber o resto do propósito daqueles homens, ao discorrer sobre a natureza única dos materiais empregados — única para a Palestina rochosa, com suas incontáveis pedras; pois os construtores se propuseram a usar tijolos queimados em lugar de pedra e betume como argamassa. Muitas ruínas de construções semelhantes mostram como o autor foi preciso em sua afirmação, já que nas construções principais eram usados tijolos secos ao forno, não ao sol, cimentados com betume. Essas estruturas permanecem sólidas até hoje. Para um não babilônio, essa forma de construção devia parecer tão estranha quanto digna de nota”. Leupold, Genesis, I, pp. 385-386.
8 “Essas zigurates, mais de 30 das quais ainda sabe-se existir, eram formadas por pequenas plataformas sucessivas, ou andares, feitas de tijolo queimado ou seco ao sol, em cujo topo era construído um templo”. Howard F. Vos, Genesis and Archaeology (Chicago: Moody Press, 1963), p. 46.
9 “Em Gênesis 9:1 Deus disse especificamente a Noé e seus filhos: ‘Sede fecundos e multiplicai-vos, e povoai (literalmente ‘enchei’) a terra’. Em clara desobediência a Deus, seus descendentes ficaram preocupados por terem de se espalhar pela terra e, com orgulho, tentaram construir uma cidade e uma torre como ponto de encontro e para simbolizar ou celebrar sua grandeza. Isso Deus não podia deixar passar em branco. Gênesis não diz que eles pretendiam entrar no céu pela torre ou que tivessem a intenção usá-la com propósito de adoração. Os hebreus simplesmente a chamam de poderosa (‘torre’), a qual poderia ser usada tanto para defesa quanto para inúmeros outros fins, e não há indicação de que os construtores planejassem erigir um templo sobre ela, a fim de que a estrutura pudesse servir como “ligação entre o céu e a terra”, como eram as zigurates. Além disso, a narrativa de Gênesis implica em que tais torres ainda não tinham sido construídas e que esta seria algo único na experiência do homem”. (Ibid., pp. 46-47)
10 A história primeva alcança seu clímax inútil quando o homem, consciente de suas novas habilidades, se prepara para glorificar e fortalecer a si mesmo com o esforço coletivo. Os elementos da história são características atemporais do espírito do mundo. O projeto é realmente imponente; os homens o descrevem uns aos outros com excitação, como se ele fosse sua última façanha — exatamente como os homens modernos se vangloriam dos seus projetos espaciais. Ao mesmo tempo, eles traem sua insegurança quando se unem para preservar sua identidade e controlar sua fortuna”. Derek Kidner, Genesis, An Introduction and Commentary (Chicago: Inter-Varsity Press, 1967), p. 109.
11 Alan Richardson, Genesis 1-11, Introduction and Commentary (London: SCM Press Ltd., 1953), p. 128, como citado por Allen Ross, The Table of Nations in Genesis (Dissertação de Doutorado não publicada, Dallas Theological Seminary, 1976), pp. 292-293.
12 “Nesta breve narrativa temos um exemplo perfeito da arte literária bíblica. O texto compreende dois parágrafos, quase de igual tamanho, que constituem um paralelismo antitético um ao outro na forma e no conteúdo. O primeiro começa com uma referência à situação que existia no início (v. 1) e, a partir daí, descreve o que os homens passaram a fazer (versísulos 2-4). O segundo relata o que o Senhor fez (versos 5-8), e conclui com uma referência à situação que passou a existir no final do episódio (v. 9)”. Cassuto, Genesis, II, pp. 231-232.
13 “Como já expliquei na introdução, aqui temos uma alusão irônica: eles imaginavam que o topo da sua torre chegaria aos céus, no entanto, do ponto de vista de Deus, sua gigantesca estrutura era apenas uma obra de pigmeus, uma empreitada terrestre, não celeste, e, se Aquele que habita nos céus, quisesse dar um close naquilo, teria de descer do céu até a terra”. Ibid., pp. 244-245.
“Yahweh precisou se aproximar, não porque fosse míope, mas porque habita nas maiores alturas, e a obra deles era incrivelmente minúscula. O movimento de Deus, então, precisa ser entendido como uma extraordinária sátira aos feitos do homem”. Esta é uma citação de Proksch feita por Gerhard Von Rad, Genesis (Philadelphia: Westminster Press, 1972), p. 149.
14 Ross, p. 299.
15 “Babel (Babilônia) chamava a si mesma de Bab-ili, ‘portão de Deus’ (o que talvez seja uma reinterpretação lisonjeira do seu significado original); mas, por meio de um jogo de palavras, a Escritura se sobrepõe com um título mais verdadeiro ba,,lal (‘Ele confundiu’)”. Kidner, Genesis, p. 110.
16 Ross entende que “lábio puro” do versículo 9 se refira a uma linguagem comum: “Dito no singular, “lábio puro” pode significar que a barreira da linguagem será quebrada para se tornar uma língua universal. A segunda ideia na expressão significa que sua fala será purificada”. Ross, p. 258. fn. 1. Infelizmente a versão NASB coloca a expressão no plural ‘lábios puros’ (em português, a ARA também).
O capítulo 12 inicia uma nova divisão no livro de Gênesis. Os primeiros onze capítulos costumam ser chamados de “história primitiva”. Os últimos capítulos são conhecidos como “a história dos patriarcas”. Enquanto o efeito do pecado do homem se tornou cada vez mais abrangente, o cumprimento da promessa de Deus de Gênesis 3:15 se tornou cada vez mais seletivo. O Redentor devia vir do descendente da mulher (Gênesis 3:15), depois dos descendentes de Sete, de Noé e então de Abraão (Gênesis 12:2-3).
Teologicamente, Gênesis capítulo 12 é uma das passagens-chave do Antigo Testamento, pois contém aquilo que é chamado de a Aliança Abraâmica. Esta aliança é a linha que une todo o Antigo Testamento. Ela é crucial para o entendimento correto das profecias da Bíblia.
Em Gênesis capítulo doze não só chegamos a uma nova divisão e a uma importante aliança teológica, mas, acima de tudo, a um grande e piedoso homem — Abraão. Quase um quarto do livro de Gênesis é dedicado à vida deste homem. Mais de 40 referências são feitas a ele no Antigo Testamento. É interessante observar também que o Islã considera Abrão o segundo homem mais importante depois de Maomé, sendo que o Alcorão se refere a ele 188 vezes1.
O Novo Testamento também não diminui a importância da vida e do caráter de Abraão. Há cerca de 75 referências a ele no Novo Testamento. Paulo o escolheu como o melhor exemplo de um homem que é justificado diante de Deus pela fé e não pelas obras (Romanos 4). Tiago se refere a ele como um homem que demonstrou sua fé diante dos homens por suas obras (Tiago 2:21-23). O escritor aos Hebreus o cita como exemplo de alguém que andou pela fé, dedicando mais espaço a ele do que a qualquer outro indivíduo no capítulo onze (Hebreus 11:8-19). Em Gálatas, capítulo 3, Paulo escreve que os cristãos são “filhos de Abraão” pela fé, e por isso, herdeiros legítimos das bênçãos prometidas a ele (Gálatas 3:7-9).
Ao voltar nossa atenção para o capítulo 12 de Gênesis, vamos fazê-lo com o objetivo de ver Abraão como um exemplo de quem anda pela fé. Em especial, quero ressaltar o processo empregado por Deus para fortalecer sua fé e fazê-lo o homem temente que ele se tornou. Muitos dos erros mais comuns nos círculos cristãos a respeito da natureza de uma vida de fé podem ser corrigidos com o estudo da vida de Abraão.
Moisés não nos dá todas as informações necessárias para compreendermos totalmente a importância do chamado de Abrão, mas isso está registrado na Bíblia para nós. Estêvão esclarece a época em que Abrão recebeu o primeiro chamado de Deus. Não foi em Harã, como uma leitura casual de Gênesis pode nos levar a crer, mas em Ur. Quando Estêvão estava diante de seus incrédulos irmãos judeus, ele recontou a história do povo escolhido de Deus, começando pelo chamado de Abraão:
Estêvão respondeu: Varões, irmãos e pais, ouvi. O Deus da glória apareceu à Abraão, nosso pai, quando estava na Mesopotâmia, antes de habitar em Harã, e lhe disse: Sai da tua terra e da tua parentela e vem para a terra que eu te mostrarei. (Atos 7:2-3)
Apesar de nem todos os estudiosos da Bíblia concordarem com a localização de Ur2, a maioria aceita a Ur da Mesopotâmia meridional, onde costumava ser a costa do Golfo Pérsico. O sítio da grande cidade foi descoberto em 1854, e desde aquela época tem sido escavado, revelando muitas coisas sobre os tempos de Abrão3. Embora o verdadeiro período de sua vida em Ur possa ser matéria de discussão, podemos dizer com certeza que a ostentação da cidade como uma civilização altamente desenvolvida era justificada. Existem amplas evidências de grandes fortunas, artesanato elaborado e ciência e tecnologia avançadas4. Tudo isso nos diz alguma coisa sobre a cidade que Abrão recebeu ordens para deixar. Nas palavras de Vos,
Independentemente de quando Abraão saiu de Ur, ele deu as costas a uma grande metrópole, iniciando sua jornada de fé para uma terra sobre a qual pouco ou nada sabia e que, provavelmente, tinha muito pouco a lhe oferecer do ponto de vista material5.
Se a cidade onde Abrão vivia era grande, o lar que ele deixou pra trás parece não ter sido muito piedoso. Poderíamos presumir que Terá fosse um homem temente a Deus, que educou seu filho, Abrão, para crer no único Deus, diferente das pessoas da sua época; mas as coisas não foram bem assim. No final da sua vida, Josué, em suas palavras de despedida, nos dá uma compreensão melhor do caráter de Terá:
Então, disse Josué a todo o povo: Assim diz o Senhor, Deus de Israel: Antigamente, vossos pais, Terá, pai de Abraão e de Naor, habitaram dalém do Eufrates e serviram a outros deuses. (Josué 24:2)
Portanto, até onde podemos dizer, Terá era idólatra, tal como as outras pessoas da sua geração. Não é de admirar que Deus tenha mandado Abrão deixar a casa de seu pai (Gênesis 12:1)!
A idade de Abrão também não era um fator favorável para deixar Ur e ir para um lugar desconhecido. Moisés nos diz que ele tinha 75 anos quando entrou em Canaã. Pense nisso. Abrão já devia estar no seguro social há mais de dez anos. Para ele, a “crise da meia idade” era coisa do passado. Em vez de pensar numa nova terra e numa nova vida, a maioria de nós estaria pensando em termos de uma cadeira de balanço e uma casa de repouso.
Não somos propensos a nos impressionar com a idade de Abrão devido à longa vida dos homens dos tempos antigos, mas Gênesis capítulo onze nos informa que a longevidade do homem tinha sido muito maior no passado do que era na época de Abrão. Ele morreu com 175 anos (25:7-8), pouco mais do que Sem (11:10-11) ou Arfaxede (11:12-13). Um dos propósitos da genealogia do capítulo onze é informar que os homens estavam vivendo menos e tendo filhos mais jovens. Abrão não era, em linguagem coloquial, algum “franguinho” quando deixou Harã e foi para Canaã.
Tudo isto nos leva a pensar nas objeções e empecilhos que deviam estar em sua cabeça quando ele recebeu o chamado de Deus. Ele partiu de Harã não porque fosse a coisa mais fácil a fazer, mas porque esse era o intento de Deus. Com isso, não desejo glorificar a fé de Abrão, pois, como veremos, no começo ela era muito fraca. Nos estágios iniciais da sua vida, a maioria dos obstáculos foram superados pela iniciativa de Deus. E é isso o que veremos.
O chamado de Abrão está registrado em Gênesis 12:1: “Ora, disse o Senhor a Abrão: Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai e vai para a terra que te mostrarei”.
Uma interpretação melhor da primeira sentença deste chamado se encontra nas versões King James e Nova Versão Internacional6, onde se lê: “O Senhor dissera a Abrão...”
A diferença é importante. Sem ela somos levados a pensar que o chamado de Abrão veio em Harã, não em Ur. Mas nós sabemos, pelas palavras de Estêvão, que seu chamado ocorreu em Ur (Atos 7:2). O passado mais que perfeito (dissera ou tinha dito) é tanto gramaticalmente correto quanto exegeticamente necessário. Ele nos diz que os versículos 27 a 32 do capítulo 11 são parentéticos7, e não estão estritamente em ordem cronológica.
O chamado de Abrão ocorreu juntamente com uma aparição de Deus8. Embora Moisés só mencione essa aparição quando Abrão já estava em Canaã (12:7), Estêvão nos diz que Deus apareceu a ele ainda em Ur (Atos 7:2). Mesmo com todas as objeções que poderiam ser levantadas por Abrão, essa aparição não devia ser incomum. Deus também apareceu a Moisés na época do seu chamado (Êxodo 3:2, etc).
Em certo sentido, a ordem de Deus a Abrão foi muito específica. Ele recebeu instruções detalhadas do que precisava deixar pra trás. Ele precisava deixar sua terra, seus parentes e a casa de seu pai. Deus ia formar uma nova nação, não só dar um jeito em alguma já existente. Quase nada da cultura, religião ou filosofia do povo de Ur faria parte daquilo que Deus planejava fazer com Seu povo, Israel.
Por outro lado, a ordem de Deus também foi deliberadamente vaga. Enquanto o que precisava ser deixado pra trás ficou muito claro, o que estava por vir era dolorosamente desprovido de detalhes: “... para a terra que eu te mostrarei”.
Abrão não sabia nem mesmo onde se estabeleceria. Como o escritor de Hebreus coloca: “...e partiu sem saber para onde ia” (Hebreus 11:8).
A fé à qual somos chamados não é em algum plano, mas em uma pessoa. Mais importante do que onde ele estava, Deus estava interessado em quem ele era, e em Quem confiava. Deus não Se preocupa tanto com geografia quanto com santidade.
A relação entre a ordem de Deus a Abrão no versículo um e o incidente em Babel no capítulo onze não deve passar em branco. Em Babel, os homens preferiram desprezar a ordem de Deus para se dispersar e povoar a terra. Eles se esforçaram para encontrar segurança e renome juntando-se e tentando construir uma grande cidade (11:3-4). Eles buscaram bênção no fruto do seu próprio labor em vez de buscarem na promessa de Deus.
A ordem de Deus a Abrão, na verdade, é uma reversão daquilo que o homem tentou fazer em Babel. Abrão estava seguro e confortável em Ur, uma grande cidade. Deus o chamou para deixar aquela cidade e trocar sua casa por uma tenda. Deus lhe prometeu um grande nome (aquilo que as pessoas de Babel procuravam, 11:4) em consequência de sair de lá, deixar a segurança da sua parentela e confiar somente nEle. Como são diferentes os caminhos do homem dos caminhos de Deus!
Tecnicamente, a aliança com Abrão não se encontra no capítulo 12, mas nos capítulos 15 (versículo 18) e 17 (versículos 2, 4, 7, 9, 10, 11, 13, 14, 19, 21), onde a palavra aliança aparece. É lá que os detalhes específicos são enunciados. Aqui, no capítulo doze, são apresentadas apenas suas características gerais.
Há três promessas principais contidas nos versículos 2 e 3: uma terra, uma descendência e uma bênção. A terra, como já dissemos, está implícita no versículo 1. Na época do chamado de Abrão, ele não sabia onde ficava essa terra. Em Siquém, Deus prometeu-lhe dar “esta terra” (12:7). Até o capítulo 15 não havia uma descrição detalhada da terra que ele recebeu:
Naquele mesmo dia, fez o Senhor aliança com Abrão, dizendo: À tua descendência dei esta terra, desde o rio do Egito até ao grande rio Eufrates... (Gênesis 15:18)
A terra não pertenceu a Abrão em vida, conforme Deus tinha dito (15:13-16). Quando Sara morreu, ele teve de comprar um pedaço de terra para sua sepultura (23:3 e ss). Agora, aqueles que primeiramente leram o livro de Gênesis estavam prestes a tomar posse do lugar prometido a Abrão. Como deve ter sido emocionante para as pessoas dos dias de Moisés ler a promessa e perceber que o tempo de possuir a terra tinha chegado.
A segunda promessa da aliança Abraâmica era que uma grande nação viria de Abrão. Já mencionamos a importância do Salmo 127 com relação aos esforços do homem em Babel. Bênçãos verdadeiras não vêm do trabalho árduo e das horas penosas de labor, mas do fruto da intimidade, ou seja, dos filhos. A bênção de Abraão seria vista mais amplamente em seus descendentes. Eis o fundamento para o “grande nome” que Deus lhe daria.
Essa promessa exigia fé da parte de Abrão, pois era óbvio que ele já era idoso e Sarai, sua esposa, não podia de ter filhos (11:30). Ainda se passariam muitos anos até Abrão entender totalmente que o herdeiro prometido por Deus viria de sua união com Sarai.
A última promessa era a da bênção — bênção para ele e bênção por meio dele. Muitas das bênçãos de Abrão viriam na forma da sua descendência, mas havia também a bênção que viria na forma do Messias, O qual traria salvação para o povo de Deus. A respeito dessa esperança, nosso Senhor, o Messias, disse: “Abraão, vosso pai, alegrou-se por ver o meu dia, viu-o e regozijou-se” (João 8:56).
Além disso, Abrão estava destinado a se tornar bênção para pessoas de todas as nações. A bênção viria por meio dele de várias formas. Quem reconhecesse a mão de Deus sobre ele e seus descendentes seria abençoado pelo contato com eles. Faraó, por exemplo, foi abençoado por exaltar José. Pessoas de todas as nações seriam abençoadas pelas Escrituras que, em grande parte, vieram pela instrumentalidade do povo judeu. Finalmente, o mundo todo seria abençoado pela vinda do Messias, O qual veio salvar pessoas de todas as nações, não só os judeus:
Sabei, pois, que os da fé é que são filhos de Abraão. Ora, tendo a Escritura previsto que Deus justificaria pela fé os gentios, preanunciou o evangelho a Abraão: Em ti, serão abençoados todos os povos. De modo que os da fé são abençoados com o crente Abraão (Gálatas 3:7-9).
Fico muito preocupado com a exaltação de heróis, principalmente de heróis cristãos. Os gigantes da fé parecem ser personagens excelentes, sem nenhuma falha evidente, como máquinas de disciplina e fé infalível. Não encontro esse tipo de gente na Bíblia. Os heróis da Bíblia são homens “sujeitos a paixões” (Tiago 5:17) e com pés de barro. Este é o meu tipo de herói. Posso me identificar com homens e mulheres assim. E, o mais importante, posso encontrar esperança para uma pessoa como eu. Não é de admirar que homens como Pedro, e não Paulo, sejam nossos heróis, pois podemos nos ver neles.
Abrão era um homem como você e eu. O relato de Moisés de seus primeiros passos na fé deixa claro que ele deixou muito a desejar e que muita coisa poderia ser desenvolvida nele. Deus o chamou em Ur, mas ele não deixou a casa de seu pai ou sua parentela. Depois, ele saiu de Ur e foi para Harã, mas, ao que me parece, foi só porque seu pai pagão decidiu sair de lá. Talvez fatores políticos ou econômicos tenham influenciado na mudança, sem qualquer conotação espiritual.
Os primeiros passos de Abrão não foram decididos ou piedosos, foram mais uma reação passiva a forças externas. Deus providencialmente levou Terá a arrancar suas raízes de Ur e se mudar para Canaã (11:31). Por algum motivo, ele e sua família fizeram uma parada perto de lá e acabaram ficando em Harã. E, já que Abrão não queria, ou não podia, deixar a casa de seu pai, Deus levou seu pai à morte (11:32). Assim, Abrão obedeceu a Deus pela fé e entrou em Canaã, mas só depois de algumas medidas consideráveis terem sido tomadas por Deus.
Não estou dizendo que Abrão não obedeceu a Deus pela fé, mas foi uma fé muito fraca, e muito tardia. Contudo, será que essa afirmação contradiz as palavras da Escritura? Seria inconsistente com as palavras do escritor aos Hebreus?
Pela fé, Abraão, quando chamado, obedeceu, a fim de ir para um lugar que devia receber por herança; e partiu sem saber aonde ia. (Hebreus 11:8)
Pelo menos duas coisas precisam ser ditas em resposta a essa questão. Primeiro, a ênfase de Hebreus 11 está na fé. O escritor queria ressaltar os aspectos positivos da jornada cristã, não suas falhas. Portanto, as falhas não são mencionadas. Segundo, coerente com esta abordagem, o autor não diz quando Abrão obedeceu. Ele simplesmente escreveu: “...Abraão, quando chamado, obedeceu, a fim de ir”. É preciso lembrar que Abrão realmente foi para Canaã, assim como Moisés foi para o Egito, mas não sem uma considerável pressão da parte de Deus.
Não devemos achar que isso seja desanimador, e sim compatível com a nossa própria relutância em arriscar o nosso futuro com uma fé ativa, agressiva e inquestionável. Abraão foi um homem de grande fé — após anos de provações dadas por Deus. Contudo, na época do seu chamado, ele era um homem cuja fé era muito pequena; verdadeira, mas pequena. E, se formos honestos conosco mesmos, é exatamente assim com a maioria de nós. Em nossos melhores momentos, nossa fé é vibrante e cheia de fervor, mas nos momentos de provação, é fraca e cheia de falhas.
Uma vez em Canaã, a rota tomada por Abrão é digna de nota. Em primeiro lugar, é preciso dizer que era uma rota esperada se ele fosse naquela direção. Uma olhada no mapa do mundo antigo do tempo dos patriarcas indica que ele viajou por estradas bem movimentadas da sua época9. A rota tomada por ele era muito utilizada pelos comerciantes daqueles dias.
Creio ser esta uma observação importante, pois muitos cristãos parecem sentir que o jeito de Deus é meio bizarro ou incomum. As pessoas não esperam que Deus as guie de forma normal e previsível. A lição a ser aprendida é esta: muitas vezes a maneira como Deus quer que façamos as coisas é a mesma que, de qualquer forma, teríamos escolhido usando o bom senso. Só quando Ele quer nos afastar do esperado é que devemos buscar orientação espetacular ou incomum10.
Cassuto sugere que os lugares mencionados (Siquém, Betel e o Neguebe) são muito importantes. Ele acredita que a terra foi, então, dividida em três regiões: a primeira estendendo-se da extremidade norte até Siquém, a segunda, de Siquém a Betel, e a terceira, de Betel ao limite sul.
Jacó, depois de retornar de Padã-Harã, primeiro foi a Siquém (33:18). Depois, foi instruído a subir a Betel (35:1, cf. versículo 6). Tanto em Siquém quanto em Betel ele edificou altares, como Abrão, seu avô (33:20, 25:7).
Quando Israel entrou em Canaã, para tomar posse da terra sob a liderança de Josué, essas mesmas cidades-chave foram capturadas.
Assim Josué os enviou, e eles se foram à emboscada, colocando-se entre Betel e Ai, ao ocidente de Ai; porém Josué passou aquela noite no meio do povo. (Josué 8:9)
Então, Josué edificou um altar ao Senhor, Deus de Israel, no monte Ebal. (Josué 8:30)
Cassuto conclui que a jornada errante de Abrão delineou o território que iria pertencer a Israel, e os lugares onde ele parou prognosticaram a conquista da terra11. Em um comentário adicional, ele acrescenta que esses lugares também foram centros religiosos da adoração dos cananeus12. Na verdade, ao erigir os altares e proclamar o nome do Senhor, Abrão profetizou o tempo em que a verdadeira adoração iria sobrepujar a religião pagã dos cananeus. Muito embora o exato significado da expressão “invocou o nome do Senhor” não seja conhecido, com certeza é uma descrição de adoração. É difícil acreditar que o ato público de adoração feito por Abrão não tenha sido visto ou observado com especial interesse pelos cananeus. Pessoalmente, creio que Abrão desempenhou um certo tipo de papel missionário. Como tal, esse teria sido um ato decorrente da fé.
Desses primeiros estágios do crescimento de Abrão na graça de Deus, podemos encontrar muitos princípios que representam a jornada da fé em todas as gerações, e com certeza na nossa também.
(1) A fé de Abrão começou pela iniciativa de Deus. A soberania de Deus na salvação é belamente ilustrada no chamado de Abrão. Abrão veio de um lar pagão. Pelo nosso conhecimento, ele não tinha nenhuma qualidade espiritual que levasse Deus a ele. Deus, em Sua graça eletiva, escolheu Abrão para segui-lO enquanto ele ainda andava em seus próprios caminhos. Abrão, como Paulo, e os verdadeiros crentes de todas as épocas, reconheceu que foi Deus Quem o buscou e o salvou, com base na Sua graça.
(2) A obra soberana de Deus continuou ao longo da vida espiritual de Abrão. Deus não é soberano somente na salvação, mas também no processo de santificação. Se a vida espiritual de Abrão dependesse somente da sua própria fidelidade, sua história logo teria chegado ao fim. Após chamar Abrão, foi Deus quem, pela Sua providência, o levou a deixar sua casa e sua terra natal e entrar em Canaã. Graças a Deus porque nossa vida espiritual, no final das contas, depende da Sua fidelidade e não da nossa!
(3) A jornada cristã é uma peregrinação. Abraão viveu como peregrino, esperando a cidade de Deus:
Pela fé, peregrinou na terra da promessa como em terra alheia, habitando em tendas com Isaque e Jacó, herdeiros com ele da mesma promessa; porque aguardava a cidade que tem fundamentos, da qual Deus é o arquiteto e edificador. (Hebreus 11:9-10)
Nosso lar permanente não se encontra neste mundo, mas naquele por vir, na presença de nosso Senhor (cf. João 14:1-3). Esta é a mensagem do Novo Testamento (cf. Efésios 2:19, I Pedro 1:17, 2:11).
A tenda, portanto, é o símbolo do peregrino. Ele não investe naquilo que não vai durar. Não ousa ficar muito ligado ao que não pode levar consigo. Nesta vida não podemos esperar ter plenamente aquilo que se encontra no futuro, só um pequeno vislumbre. A vida cristã não é conhecer exatamente o que o futuro reserva, mas conhecer Aquele que é dono do futuro.
(4) A jornada cristã tem suas raízes na confiabilidade da Palavra de Deus. Quando paramos para pensar, vemos que Abrão não tinha qualquer prova concreta, tangível, de uma vida de bênçãos à sua frente, fora de Ur e longe da sua família. Tudo o que ele precisava era confiar em Deus, O qual Se revelara a ele.
No final das contas, isso é tudo que qualquer um precisa. Existem, é claro, evidências para uma fé racional, mas no fundo, no fundo, precisamos simplesmente acreditar no que Deus nos diz em Sua Palavra. Se Sua “Palavra não é verdadeira e confiável, então, nós, somos os mais infelizes de todos os homens”.
Mas seria isso suficiente? Que mais poderíamos querer além da Palavra de Deus? Outro dia ouvi um pregador colocar isso de forma muito clara. Ele citou o tão batido: “Deus disse. Eu acredito. É assim”. Ele disse que poderia até ser mais conciso: “Deus disse, é assim, acredite ou não”. Gosto disso. A Palavra de Deus é suficiente para a fé do homem.
Deus disse que todos os homens são pecadores, merecem o castigo eterno e estão destinados a ele. Deus enviou Seu filho Jesus Cristo, Aquele esperado por Abrão no futuro, para morrer na cruz e sofrer o castigo pelo pecado humano. Somente Ele pode dar ao homem a justificação necessária para a vida eterna. Deus disse. Você crê?
(5) A jornada cristã é simplesmente fazer aquilo que Deus nos diz para fazer e crer que Ele nos guia enquanto fazemos. Deus disse a Abrão para partir sem saber para onde o caminho da obediência o levaria, mas crendo que Ele iria guiá-lo por onde ele fosse. Não espere que Deus indique cada curva da estrada com uma sinalização clara. Faça aquilo que Ele lhe diz para fazer da forma mais sensata possível. A fé não é desenvolvida quando se vive utilizando algum tipo de mapa, mas quando se utiliza a Palavra de Deus como bússola, a qual nos aponta a direção certa, mas nos desafia a andar pela fé e não pela vista.
Enquanto Abrão ia de um lugar para o outro, a vontade de Deus deve ter parecido como um enigma. No entanto, quando nos recordamos disso, podemos ver que Deus o esteve guiando o tempo todo. Nenhuma parada ao longo da jornada foi irrelevante ou sem propósito. E conosco será da mesma forma quando olharmos para o nosso passado.
(6) A jornada cristã é um processo de crescimento na graça de Deus. Muitas vezes, quando lemos a história de Abraão, um homem de fé, achamos que ele sempre foi assim. Espero que nosso estudo do período inicial de sua vida nos mostre o contrário. Há quanto tempo, meu amigo, você é cristão? Um ano? Cinco? Vinte anos? Percebe que provavelmente se passaram muitos anos desde o chamado de Abrão até ele terminar em Canaã? Sabia que só depois de vinte e cinco anos em Canaã ele teve seu filho, Isaque? Consegue imaginar que, após deixar Harã e seguir para Canaã, Deus trabalhou na vida de Abrão durante cem anos? A fé cristã cresce. Cresce com o tempo e com as provações. Foi assim na vida de Abrão13. E é assim com todos os crentes.
Que Deus nos ajude a crescer na graça enquanto andamos no caminho que Ele ordenou, e continuamos a estudar o crescimento da fé de Abrão ao longo de muitos anos.
Tradução e revisão: Mariza Regina de Souza
1 S. Schultz, “Abraão”, The Zondervan Pictorial Encyclopedia of the Bible (Grand Rapids: Zondervan, 1975, 1976), I, p. 26.
2 Cyrus Gordon sugere que a verdadeira Ur de Gênesis 11:31 deve ser encontrada ao norte da Mesopotâmia, provavelmente a nordeste de Harã. Seu ponto de vista é discutido, mas rejeitado por Howard F. Vos, Genesis and Archaeology (Chicago: Moody Press, 1963), pp. 63-64. E é sustentado por Harold G. Stiflers, A Commentary on Genesis (Grand Rapids: Zondervan, 1976), pp. 133-134.
3 Cf. Vos, Genesis and Archaeology, pp. 58-64.
4 “A cidade de Ur, no baixo Eufrates, foi um grande centro populacional, e gerou enorme quantidade de informações das tumbas reais que foram escavadas sob a direção de Sir Leonard Wooley, e patrocinadas pelo Museu Britânico e pelo Museu da Universidade da Pensilvânia. Embora não haja evidência direta disponível sobre a moradia de Abraão, é significativo que a cidade de Ur indique uma longa história anterior à sua época, com um elaborado sistema de escrita, instalações educacionais, cálculos matemáticos, registros religiosos, de negócios e de arte. Isso aponta para o fato de que Ur possa ter sido uma das maiores e mais abastadas cidades na região do Tigre-Eufrates quando Abraão emigrou para o norte em direção a Harã”. Schultz, “Abraão”, ZPEB, I, p. 22.
5 Vos, p. 63.
6 NT: em inglês, pois em português, tanto a NVI como a ARA, ARC e a Fiel não traduzem dessa forma.
7 Embora possa parecer, por uma leitura superficial de Gênesis (11:31-12:1), que Deus tenha chamado Abrão enquanto ele estava em Harã, contrariando, dessa forma o relato de Estêvão de que Deus o chamou na Mesopotâmia, antes dele viver em Harã, os dois relatos podem ser harmonizados observando-se que Gênesis 11:27-32 é uma narrativa parentética da geração de Terá, introduzida por um waw disjuntivo, e que Gênesis 12:1, introduzido por um waw consecutivo, continua a narrativa principal interrompida em Gênesis 11:26”. Bruce Waltke, Unpublished Class Notes, Dallas Theological Seminary, pp. 14-15.
8 Cassuto, o grande erudito judeu, discorda. Ele diz em seu comentário de Gênesis 12:7:
“Fora da Terra, Abraão só pôde ouvir a voz divina (v. 1); mas aqui, na terra destinada a ser dedicada especialmente ao serviço do Senhor, a ele foi concedido também o privilégio de uma visão divina". U. Cassuto, A Commentary on the Book of Genesis (Jerusalem: The Magnes Press, 1964), II, p. 328. Precisamos lembrar que Cassuto, um judeu, não considerava o Novo Testamento como autoritativo. Portanto, ele parece rejeitar, sem maiores rodeios, as palavras de Estêvão.
9 Harã, por exemplo, em assírio (harranu) significava “estrada principal”. Waltke, anotações de aula, p. 14.
10 Cassuto, Gênesis, II, p. 304.
11 “Agora podemos entender porque a Torá destacou, nos mínimos detalhes, as jornadas de Abrão para entrar na terra de Canaã, primeiramente a Siquém, e depois a Ai-Betel. Aqui a Escritura tinha o propósito de nos apresentar, por meio da conquista simbólica de Abrão, uma espécie de previsão daquilo que mais tarde aconteceria a seus descendentes”. Cassuto, Genesis, II, pp. 305-306.
12 Ibid, p. 306.
13 “… O início da história de Abrão é, em parte, a respeito de seu gradual desligamento da sua terra, da sua parentela e da sua casa, um processo que só foi concluído no fim do capítulo 13”. Derek Kidner, Gênesis (Chicago: InterVarsity Press, 1967), p. 113.
“A vida de Abrão é um crescimento na fé desenvolvido sob o demorado cumprimento das promessas divinas. Foi-lhe prometido um descendente e, quando esse descendente demorou a chegar, ele precisou, de alguma forma, ver o significado daquela demora e aprender a ter fé em Deus. Quando lhe foi prometida uma terra, e esta não lhe foi dada, ele precisou olhar para além da promessa, para Aquele que a fez, a fim de poder compreender. Quando lhe foi ordenado sacrificar Isaque, ele precisou obedecer com um coração cheio de amor, para de alguma forma ver a relação entre a ordem e a promessa da descendência de uma nação, deixando o resultado por conta de Deus e encontrando nEle toda suficiência. Por meio de todas as suas experiências ele precisou ver em Deus a origem de tudo o que iria enfrentar”. Stagers, Genesis, p. 135.
Dei a esta mensagem o título de “Quando Falta a Fé...”, mas fico me perguntando se a maioria dos cristãos realmente crê que sua fé possa faltar. Um pouco de imaginação deve remover quaisquer dúvidas. O que é a preocupação, senão falta de fé? A preocupação avalia as circunstâncias pela ótica de alguém que encara o futuro como quem não acredita em um Deus soberano, O qual é também um Pai amoroso.
O medo, companheiro da preocupação, é igualmente falta de fé. A preocupação se aflige com um futuro distante, muitas vezes, improvável. O medo tem de enfrentar o problema cara a cara. Os discípulos não ficaram preocupados com as ondas tempestuosas do mar da Galileia; eles ficaram apavorados. E quando nosso Senhor os repreendeu, revelou sua falta de fé:
Então, lhes disse: Por que sois assim tímidos? Como é que não tendes fé? (Marcos 4:40)
A fé realmente pode falhar; pelo menos a minha, falha. Então, o que acontece quando ela falha? Perco minha salvação? O trabalho de Deus na minha vida emperra, esperando ela voltar? O incidente na vida de Abrão, descrito em Gênesis 12:10 a 13:4, nos dá uma palavra de alento, algo tremendamente necessário àqueles cuja fé irá falhar.
A verdadeira fé em Deus é uma fé que cresce. Tanto em Gênesis quanto no roteiro de Deus para os homens de hoje, a fé cresce na medida em que é testada. Para Abrão, o primeiro teste foi o da fome.
Havia fome naquela terra; desceu, pois, Abrão ao Egito, para aí ficar, porquanto era grande a fome na terra. (Gênesis 12:10)
Desconfio que ele, como um santo imaturo, ainda não tivesse ideia de que sofrimento e provações fizessem parte do currículo de Deus na escola da fé. Embora cresse em Deus, Abrão sabia muito pouco sobre Ele. Em sua cabeça, o Deus que o tinha chamado podia não ser capaz de controlar a natureza. No panteão pagão, os “deuses” tinham vários poderes limitados. Talvez o seu “deus” fosse alguém que não se incomodasse com coisas triviais como chuva ou colheita. Parece não lhe ter ocorrido que Deus não só é superior à fome, mas também é Aquele que a dá, como um teste de fé.
O Egito parecia a solução lógica. Afinal, Deus o mandara partir “sem saber aonde ia” (Hebreus 11:8). Talvez Deus quisesse que ele continuasse rumo ao sul até o Egito. Outro fator é que o Egito era menos suscetível à fome. Lá era muito parecido com Ur. Os dois lugares tinham sido abençoados com um grande sistema fluvial que viabilizava a irrigação. Ambas as terras dependiam bem menos de chuva que Canaã.
Porque a terra que passais a possuir não é como a terra do Egito, donde saístes, em que semeáveis a vossa semente e, com o pé, a regáveis como a uma horta; mas a terra que passais a possuir é terra de montes e de vales; da chuva dos céus beberá as águas; terra de que cuida o Senhor, vosso Deus; os olhos do Senhor, vosso Deus, estão sobre ela continuamente, desde o princípio até o fim do ano. (Deuteronômio 11: 10-12)
Em Canaã, a agricultura era muito mais uma questão de fé do que em Ur ou no Egito.
Em lugar algum Abrão é condenado diretamente por sua decisão de ir para o Egito, mas o desenrolar posterior da história deixa claro que suas ações não decorreram de fé1. Ele não consultou a Deus, mas agiu de forma independente. Pelo que sabemos, nenhum altar foi construído no Egito, nem está escrito que ele tenha invocado o nome do Senhor naquele lugar. Seu pedido a Sarai também é um reflexo da sua condição espiritual. Portanto, seria seguro dizer que faltou fé diante da fome.
Parece que Abrão tomou a decisão de ir para o Egito sem pensar nas consequências. Mal ultrapassou a fronteira, ele começou a contemplar os perigos que estavam à sua frente.
Sarai era uma mulher muito bonita2, e havia uma boa razão para temer o destino de um estrangeiro cuja esposa fosse tão atraente3. O marido era facilmente descartado em tais circunstâncias. Por isso, Abrão suplicou a ela que aceitasse sua solução para o problema de segurança. Ele lhe pediu para se passar por sua irmã, a fim de que ele não fosse morto.
Muitas coisas já foram escritas acerca do pedido de Abrão. Alguns pensam que ele estava disposto a ver sua esposa casada com algum egípcio só para salvar a própria pele, e também pelo dote que receberia. Para mim, isso é ir longe demais. A explicação mais provável é a de Cassuto4, o qual sugere que Abrão pediu à esposa para se passar por sua (disponível) irmã, para que, quando os homens da terra viessem pedir a mão dela, ele pudesse ficar lá o tempo suficiente para eles irem embora.
O plano era realmente engenhoso. Um dos homens locais viria a Abrão para pedir a mão de sua irmã em casamento. Ele consentiria, mas exigiria um longo noivado (longo o suficiente para o tempo da fome chegar ao fim). Durante esse período, Sarai ficaria na casa de Abrão, onde seu casamento continuaria secretamente e a segurança dele estaria garantida. Os benefícios desse arranjo pareciam bem grandes e os riscos, bem pequenos.
No entanto, por várias razões, o plano era horrível. Primeiro, tinha a tendência de ignorar a presença e o poder de Deus na vida de Abrão. Deus prometera os fins, mas parecia ser incapaz de prover os meios. Ele prometeu dar a Abrão terra, descendência e bênção. Mas, aparentemente, Abrão teria de conseguir tudo sozinho.
Ficamos nos perguntando se não havia traços da religião pagã dos mesopotâmios por detrás das atitudes de Abrão. Será que ele, como os pagãos, pensava que cada nação tinha seu próprio deus? Fora da terra prometida, será que seu Deus era incapaz de cuidar dele e de protegê-lo? Esse tipo de pensamento passaria por uma mente pagã.
O plano de Abrão foi um erro porque colocou em perigo a pureza de sua esposa e a promessa de Deus. Deus tinha prometido fazer dele uma grande nação. Dele viria uma grande bênção para todas as nações, o Messias. Agora ele estava disposto a correr o risco de outro homem tomar Sarai como esposa. Como, então, ela poderia ser a mãe do descendente de Abrão?
Abrão errou também porque procurou encontrar bênção em sua esposa, quando Deus lhe tinha prometido abençoar outras pessoas por meio dele: “de ti farei uma grande nação, e te abençoarei e te engrandecerei o nome. Sê tu uma bênção! Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; em ti serão benditas todas as famílias da terra” (Gênesis 12:12-13).
Abrão estava se agarrando às saias de sua esposa para conseguir bênção e proteção, em vez de se agarrar às promessas de Deus5.
Finalmente, o plano de Abrão foi um erro porque seus temores eram hipotéticos e seus princípios éticos eram circunstanciais. Dê uma olhada cuidadosa nos temores de Abrão — eram todos relacionados ao futuro. Ele ainda não tinha entrado no Egito (12:11) e tudo o que ele temia ainda não tinha acontecido (Gênesis 12:12-13).
Eis um caso típico de ética circunstancial. A ética circunstancial, antes de qualquer outra coisa, apresenta um problema hipotético onde não há alternativas, exceto as que são moralmente inaceitáveis. O menor dos males é, portanto, justificado em face das circunstâncias.
Abrão não errou ao considerar a possibilidade de alguém se encantar com sua linda esposa como uma mulher desejável para se desposar. Nem mesmo errou ao supor que alguém pudesse matá-lo para se casar com ela. Seu erro foi presumir que isso iria acontecer e a única forma de evitá-lo era mentindo. Em lugar algum, a promessa e a proteção de Deus são levadas em consideração. A trama pecaminosa, portanto, foi iniciada antes mesmo de haver qualquer perigo real.
Com certeza, algumas pessoas diriam: “Mas os temores de Abrão não eram hipotéticos. Aconteceu justamente o que ele temia”. Não mesmo! Ele não foi a vítima; ele foi a causa do que aconteceu. Seu medo do futuro, e seu plano de ação desprovido de fé, foram as causas reais do que se seguiu. Muitos dos nossos temores são autoinfligidos.
É bem verdade que a beleza de Sarai foi notada e relatada a Faraó. No entanto, o mais importante no que se seguiu foi a alegação de ambos, Abrão e Sarai, de que ela era sua irmã, e, assim, disponível para o casamento. Embora só possamos imaginar qual seria a atitude de Faraó se ele soubesse a verdade, ele sentiu-se plenamente justificado em tomar a irmã de Abrão para o seu harém.
Mas Deus operou na vida de Abrão de um jeito notável. Abrão pensava que só poderia escapar dos perigos do Egito da forma como imaginou. Ele tomou sua decisão com base na suposição de que pudesse prever o resultado de suas ações. Deus lhe ensinou a dolorosa lição de que as possibilidades para o futuro são mais numerosas do que podemos prever. Por isso, Abrão ia ter de enfrentar um dilema jamais considerado.
Tudo foi muito bem pensado e planejado. Sarai iria se apresentar como sua irmã e Abrão protelaria o casamento até o tempo de fome passar e eles poderem ir embora. No entanto, seu plano só levava em consideração os homens do Egito: “Os egípcios, quando te virem, vão dizer: É a mulher dele e me matarão, deixando-te com vida” (Gênesis 12:12).
Nunca passou pela cabeça de Abrão que o Faraó pudesse se interessar por Sarai. Ainda que Abrão pudesse protelar o plano de outras pessoas, Faraó não aceitaria um não como resposta. Ele levou Sarai para o palácio, esperando o tempo para a consumação da união.
Não há qualquer evidência de relacionamento físico entre Faraó e Sarai. Embora o período de preparação normalmente devesse ser na casa de Abrão, neste caso, seria no palácio. Sarai provavelmente passaria um período relativamente longo preparando-se para se apresentar a Faraó. Esse era o costume naquela época:
Em chegando o prazo de cada moça vir ao rei Assuero, depois de tratada segundo as prescrições para as mulheres, por doze meses (porque assim se cumpriam os dias de seu embelezamento, seis meses com óleo de mirra e seis meses com especiarias e com os perfumes e ungüentos em uso entre as mulheres), então, é que vinha a jovem ao rei; a ela se dava o que desejasse para levar consigo da casa das mulheres para a casa do rei. À tarde, entrava e, pela manhã, tornava à segunda casa das mulheres, sob as vistas de Saasgaz, eunuco do rei, guarda das concubinas; não tornava mais ao rei, salvo se o rei a desejasse, e ela fosse chamada pelo nome. (Ester 2:12-14)
Dá para imaginar as noites agonizantes e solitárias que Abrão deve ter passado, pensando no que acontecia dentro do palácio? Ele tinha pedido a Sarai para mentir a fim de tudo correr bem para ele (verso 13). E tudo correu bem. Faraó mandou-lhe muitos presentes e o tratou como a um rei. A única coisa que impedia Abrão de desfrutar daquele tratamento era a compreensão do seu significado. Faraó estava lhe dando tudo aquilo como dote. Tudo corria bem para Abrão, mas sem Sarai, sua esposa. Prosperidade nunca é bênção sem a paz que vem por se andar direito diante de Deus.
De forma bastante significativa, Deus não é mencionado nesse acontecimento até o versículo 17. Abrão pôde falhar e escorregar até a situação ficar aparentemente sem esperança. Não sabemos se ele suplicou o auxílio de Deus.
De repente, sem aviso, Deus intervém na história. Faraó e sua corte são feridos com alguma espécie de praga. Os sintomas talvez sejam de forma a sugerir que a natureza do pecado esteja relacionada a sexo. Não temos nenhum detalhe sobre a praga, nem sobre como eles entenderam seu significado6.
Abrão foi confrontado por Faraó e severamente repreendido. Ele não tinha qualquer desculpa ou explicação. Pelo que está escrito, ele não disse nem uma palavra em sua defesa. Sem dúvida, foi a coisa mais sábia a fazer diante das circunstâncias. Faraó não era alguém para ser desafiado ou enfurecido desnecessariamente.
A ironia da situação é óbvia. Eis um pagão corrigindo um profeta (cf. 20:7). Foi uma bronca real da qual Abrão dolorosamente iria se lembrar. Como foi triste, no entanto, ele não poder falar, pois isto sem dúvida impediu o testemunho de sua fé no Deus vivo que o havia chamado. A conduta do cristão realmente afeta sua credibilidade.
Quanta diferença entre a realidade e o raciocínio desprovido de fé de Abrão! Enquanto estavam no Egito, a pureza de Sarai foi protegida e a vida de Abrão foi preservada. Mais ainda, todos os seus bens continuaram intactos. Além disso, Abrão e todos os que estavam com ele foram escoltados de volta à terra de Canaã.
E Faraó deu ordens aos seus homens a respeito dele; e acompanharam-no, a ele, a sua mulher e a tudo que possuía. Saiu, pois, Abrão do Egito para o Neguebe, ele e sua mulher e tudo o que tinha, e Ló com ele. Era Abrão muito rico; possuía gado, prata e ouro. (Gênesis 12:20 - 13:2)
Como os temores de Abrão devem ter parecido tolos à luz da história! Para escapar da fome, ele teve de enfrentar um Faraó. As forças do Egito não foram empregadas contra ele, mas receberam ordens para garantir sua segurança até a chegada a Canaã. Na verdade, Abrão deixou o Egito mais rico do que quando chegou. Contudo, nada disso foi resultado de sua atitude infiel e desonesta. Tudo foi fruto da graça e do cuidado providente de Deus.
Os versículos três e quatro reconstituem os passos de Abrão em ordem inversa. Primeiro ele foi ao Neguebe, depois a Betel e Ai. E, quando retornou ao altar que tinha construído, novamente ele ofereceu sacrifícios e invocou o nome do Senhor.
Cassuto ressalta que a permanência de Abrão no Egito faz um paralelo surpreendente com a futura permanência de Israel naquele lugar7. Embora a presença de Israel no Egito possa não ter sido muito nobre, eles foram protegidos por Deus e depois tirados de lá com grandes despojos.
A fome iria continuar fazendo parte da vida do povo de Deus na terra para onde iam. No entanto, eles precisavam aprender que a fome vem de Deus como um teste da fé. Se não quisessem enfrentar a fome, teriam de enfrentar Faraó. Não importam as circunstâncias nas quais estejamos, Deus é maior que a fome ou Faraó. A pureza do povo de Deus não podia ser colocada em risco, pois naquela época o Messias ainda viria para a salvação do Seu povo.
Nesta passagem há muitos princípios que devem fortalecer muito a vida do crente de qualquer época. Vamos sugerir alguns.
(1) Quando Deus promete os “fins”, Ele também providencia os meios. Abrão acreditava que Deus lhe daria terra, descendência e bênção. Mas quando sua fé faltou, ele supôs que Deus não fosse providenciar os meios. Deus sempre providencia o necessário para aquilo que Ele promete. Há uma canção secular intitulada “Trabalhando como o diabo, servindo ao Senhor”. Muitos cristãos parecem acreditar nisso. Mas esse não é o jeito de Deus.
(2) A fé nos falta porque nosso Deus é pequeno demais. Sabemos que faltou fé a Abrão. Também vimos que isso não frustrou os planos de Deus para sua vida. No entanto, seria de grande ajuda entendermos a razão pela qual Abrão não teve fé. Acho que a resposta é óbvia: ele não teve fé porque seu “deus” era pequeno demais.
Como sabem, anos atrás J. B. Phillips escreveu um livro intitulado Seu Deus é Pequeno Demais. Pessoalmente, creio que Phillips aponte a razão pela qual nossa fé é tão falível. Hoje em dia, damos mais ênfase à nossa fé do que ao seu objeto. Como alguém disse, posso ter um pouquinho de fé num Boeing 747 e voar daqui para a Europa. Por outro lado, posso ter muita fé em alguma geringonça construída lá na minha garagem, mas que não me fará cruzar o Atlântico, não importa quão grande seja minha fé nela.
Abrão ainda não conhecia muito bem o seu Deus. E isso era normal e natural. Ele não parecia pensar que seu Deus fosse maior que a fome, maior que Faraó. Ele não precisava de lições para aumentar sua fé, ele precisava crescer na fé aprendendo sobre a grandiosidade do seu Deus. Creio que muitos dos nossos problemas de falta de fé seriam resolvidos conhecendo mais intimamente o Deus a quem servimos. Abrão não tinha uma Bíblia para ajudá-lo, mas nós temos.
(3) A ética circunstancial é errada porque se recusa a crer na soberania de Deus. A ética circunstancial sempre pressupõe algum tipo de situação hipotética para a qual não há solução que seja moralmente correta. No entanto, a Palavra de Deus nos diz claramente que Ele nunca nos coloca numa situação onde seja necessário pecar:
Não vos sobreveio tentação que não fosse humana; mas Deus é fiel e não permitirá que sejais tentados além das vossas forças; pelo contrário, juntamente com a tentação, vos proverá livramento, de sorte que a possais suportar. (1 Coríntios 10:13)
O principal erro do circunstancialismo é que ele se recusa a aceitar um Deus soberano que é capaz de livrar Seu povo, apesar das circunstâncias. A libertação da escravidão do Egito de sob a mão cruel de Faraó era impossível, humanamente falando. Quando Israel ficou num beco sem saída entre o exército egípcio e o Mar Vermelho, aparentemente não havia esperança. Contudo, o Deus a Quem servimos é um Deus soberano. Ele é capaz de livrar Seu povo de situações que parecem exigir uma reação pecaminosa.
4) Não existem atalhos para a santidade. Abrão foi pego de surpresa pela fome, supondo que o caminho de Deus não incluísse a adversidade. Por isso, ele teve de aprender que Deus designa os testes da vida para desenvolver a nossa fé, não para destruí-la.
Deixar Canaã e ir para o Egito, em minha opinião, foi uma tentativa de encurtar o teste da fome. Como já dissemos, em lugar da fome, Deus forçou Abrão a enfrentar Faraó. No entanto, além disso, precisamos entender que, no fim, Abrão teve de voltar ao lugar de onde ele se afastou da palavra revelada de Deus. Seu último ato de fé e obediência tinha sido no altar que ele construiu entre Betel e Ai. O final da sua permanência no “Prado do Caminho Errado” foi nesse mesmo altar entre Betel e Ai.
Você já pensou em se desviar do caminho para o qual Deus o chamou? É claro que você pode se desviar, mas o caminho nunca será fácil. O caminho do transgressor nunca é fácil (Provérbios 13:15). E, no fim das contas, teremos de recomeçar de onde paramos. Você não pode frustrar os propósitos e planos de Deus para sua vida, meu amigo. Na melhor das hipóteses, só pode atrasá-los. E até isso é um engano, pois muitas lições de fé são aprendidas com os nossos erros.
(5) Quando a nossa fé falta... Deus não falta. Nossa fé, como a de Abrão, vai faltar. Mas a verdade abençoada da Palavra de Deus é que quando ela falta, Deus não falta
Em face da fome, Abrão preferiu duvidar da presença e do poder de Deus. Suas atitudes demonstraram que ele estava disposto a sacrificar seus princípios pela autopreservação. Apesar da sua falta de fé, Deus o preservou e até o fez prosperar. Finalmente, Deus o levou ao lugar onde ele deveria ter ficado.
O princípio da fidelidade de Deus em face dos nossos fracassos também se aplica a nós: “se somos infiéis, ele permanece fiel, pois de maneira nenhuma pode negar-se a si mesmo” (2 Timóteo 2:13).
Eis a beleza da eleição divina. Deus nos escolheu para sermos Seus filhos (naturalmente, isto se aplica somente aos que creem em Cristo como seu Salvador eterno). Assim como Ele nos salvou apesar de nós mesmos, Ele também nos santifica apesar de nós mesmos. Nossa segurança eterna, nossa salvação e nossa santificação repousam na Sua fidelidade, não na nossa. Eis um grande conforto para aqueles cuja fé irá faltar.
No entanto, também podemos citar o versículo anterior de 2 Timóteo 2:13: “se perseveramos, também com ele reinaremos; se o negamos, ele, por sua vez, nos negará” (2 Timóteo 2:12).
Há uma grande diferença entre dúvida (falta de fé) e negação (rejeição). Abrão não rejeitou a Deus; em simplesmente não acreditou que Deus fosse capaz de ou estivesse disposto a agir em seu favor. Sem dúvida ele pensou que Deus só “ajuda aqueles que se ajudam”.
Entendo que os verdadeiros cristãos não podem, e nunca poderão, renunciar a Jesus Cristo como seu Salvador. No entanto, teremos épocas em que a nossa fé sucumbirá à dúvida. Provações, sofrimentos e adversidades podem momentaneamente suplantar a nossa fé e nos fazer duvidar, e dessa forma, nos fazer agir contra a vontade revelada de Deus. Esse, creio, foi o caso de Abrão.
Isso não quer dizer que devemos ser irresponsáveis quanto a essa questão. Quando as pessoas não agem propositadamente de acordo com a vontade revelada de Deus, Seus propósitos não são frustrados. Na Sua providência, Ele opera para assegurar a realização destes propósitos. Embora possamos nos encontrar exatamente onde Deus queria que estivéssemos (pela Sua providência) desde o princípio, nunca iremos olhar para trás, para os nossos pecados e para a nossa falta de fé, com um sorriso nos lábios. A desobediência jamais é deleite para o cristão. O dote de Faraó não valeu as longas noites solitárias de Abrão. O fracasso é sempre difícil, mas nunca frustra os propósitos de Deus para Seus filhos.
Que Deus use esta verdade para nos afastar de um cristianismo negligente, e também para nos consolar quando sofrermos algum revés na nossa fé.
Tradução e Revisão: Mariza Regina de Souza
1 “A Bíblia não condena suas ações, mas as consequências condenam; por isso, devemos aprender pela relação de causa e efeito”. Harold Stigers, A Commentary on Genesis” (Grand Rapids: Zondervan, 1976), p. 143.
“Ao que tudo indica, Abrão não parou para perguntar, mas foi em frente por sua própria iniciativa, levando tudo em conta menos a Deus. Suas suposições covardes e distorcidas revelam-se tanto do caráter natural deste gigante espiritual (cf. Tg. 5:17a) quanto na repentina transição feita do plano da fé para o do medo”. Derek Kidner, Genesis (Chicago: Inter-Varsity Press, 1967), p.116.
2 Está escrito que Abrão tinha 75 anos quando saiu de Harã e foi para Canaã (12:4). De acordo com 17:17, sabemos que Sarai era 10 anos mais nova que ele, tendo por volta de 65 anos na época desses acontecimentos. Como sua beleza poderia ser tão grande nessa idade? Ela morreu aos 127 anos (23:1). Em seus dias, ela simplesmente ela estava no começo da meia-idade. Sua beleza era tão impressionante que ela parecia ser bem mais jovem do que era. Pelo menos para mim, isso resolve a questão. Cf. Kidner, p. 117.
3 Neste ponto Stigers tem uma interessante nota de rodapé: “PABH, p. 55 afirma que um certo papiro declara que o Faraó matou um marido para ficar com sua bela esposa. Os tempos modernos não são os únicos que têm esse “tipo” de coisa!” Stigers, Genesis, p. 141, nota de rodapé 10.
4 U. Cassuto, A commentary on the Book of Genesis (Jerusalém: The Magnes Press, 1964), II, pp. 348-352.
5 É preciso também fazer um comentário sobre a participação de Sarai nessa trama. Concordo com Leupold quando ele escreve: “A aquiescência de Sarai, no entanto, parece ter origem na ideia de que realmente não havia outra coisa a fazer. Nessa ocasião, ela foi tão lamentavelmente desprovida de fé quanto ele”. H. C. Leupold, Exposition of Genesis (Grand Rapids: Baker Book House, 1942), I, p. 425
É bem verdade que Pedro elogiou Sara e a usou como exemplo para as mulheres cristãs, especialmente na questão da submissão. No entanto, ele não estava se referindo à sua atitude do capítulo 12, e sim à do capítulo 18, e sua respeitosa referência a Abraão como seu “senhor” quando soube que eles teriam um filho deles mesmo. Um cristão nunca deve pecar porque alguém com mais autoridade o mandou agir assim (cf. Daniel, 3, 6; Atos 5:29).
6 O relato de uma repetição parecida deste pecado pode ser encontrado no capítulo 20, e talvez derrame alguma luz sobre o texto do capítulo 12. Especialmente cf. 20:17-18.
7 Cassuto, Genesis, II, cf. 334 e seguintes.
Esta semana, quando estava me preparando para esta mensagem, lembrei-me de um recente best seller intitulado Looking Out For Number One (“Cuidando da Própria Vida” ou “Procurando ser o Melhor”1). Pensando que este livro pudesse me fornecer algum material ilustrativo, fui à biblioteca para checar. Todos os volumes da estante tinham sumido. Pelo jeito, tem muita gente pensando assim hoje em dia.
Ló nunca leu um livro sobre este assunto, mas ele o conhecia muito bem, como podemos ver pelo relato de Moisés no capítulo 13 de Gênesis. Ali, tinha chegado o tempo de Abrão e Ló se separarem. Em sua separação, podemos ver um contraste entre aqueles dois santos quanto ao que os levou a fazer o que fizeram; um contraste que serve de alerta a quem acha que Deus abençoa aos que só pensam em si mesmos sem considerar as outras pessoas.
Ao saírem de Ur com Terá, Abrão e Ló pareciam inseparáveis, mesmo quando Deus ordenou a Abrão que deixasse seus parentes para trás.
Ora, disse o Senhor a Abrão: Sai da tua terra, da tua parentela, e da casa de teu pai, e vai para a terra que te mostrarei. (Gênesis 12:1)
Contudo, finalmente, os laços entre eles acabam se enfraquecendo. Basicamente, sua separação foi causada por três fatores, os quais estão registrados nos versículos 5 a 7:
Ló, que ia com Abrão, também tinha rebanhos, gado e tendas. E a terra não podia sustentá-los, para que habitassem juntos, porque eram muitos os seus bens; de sorte que não podiam habitar um na companhia do outro. Houve contenda entre os pastores do gado de Abrão e os pastores do gado de Ló. Nesse tempo os cananeus e os ferezeus habitavam essa terra. (Gênesis 13:5-7).
O primeiro problema foi o sucesso de ambos como pecuaristas. Os dois, Abrão (13:2) e Ló (13:5), tinham prosperado. Suas manadas e rebanhos se tornaram tão grandes que eles não podiam mais viver juntos (13:6). Esta era uma realidade entre as tribos nômades que precisavam estar sempre se deslocando à procura de pasto para as ovelhas e para o gado.
O segundo problema foi a disputa crescente entre seus pastores (13:7). Tanto os pastores de um quanto os do outro procuravam água e o melhor pasto para os animais de seu senhor. Essa competição inevitavelmente levou a um conflito entre eles.
Não seria ir longe demais sugerir que alguma irritação já se tornara evidente até mesmo entre Abrão e Ló. Talvez isto esteja implícito nas palavras de Abrão no versículo 8. O que também seria verdade. Sempre que há desentendimento entre os seguidores, com muito mais frequência há também entre os líderes.
Se o primeiro problema foi o sucesso de ambos, e o segundo, consequência dele, o terceiro foi o fato de a terra onde eles habitavam ser dividida com outros povos, ou seja, com cananeus e ferezeus (13:7).
É muito fácil nos esquecermos de que Canaã ainda não pertencia a nenhum dos dois, Abrão ou Ló. Quando eles se separam neste capítulo, cada um segue seu caminho; eles não dividem uma propriedade. Eles estavam vivendo numa terra ocupada por cananeus e ferezeus.
Esse comentário aparentemente casual da pena de Moisés não só nos faz lembrar que Abrão era um peregrino, habitando numa terra que algum dia seria da sua descendência, como também pode sugerir que o desentendimento existente entre ele e Ló foi um triste testemunho para quem os observava. Por isso, os dois, além de ter de dividir as pastagens entre si, também estavam à mercê daqueles que reclamavam a posse da terra.
Não posso deixar de sorrir quando leio estes versículos, pois Deus trabalha de um jeito estranho, e às vezes até bem humorado, para realizar Sua vontade. Tempos antes, Deus tinha dito a Abrão para deixar sua pátria e sua parentela. Naquela época, deixar Ló era principalmente uma questão de princípio. Abrão precisava deixá-lo porque Deus disse para deixar. Agora, anos mais tarde, com relutância, ele reconhece que a separação é necessária, não por uma questão de princípio, mas por uma questão prática.
Meu amigo, de uma forma ou de outra, a vontade de Deus será feita. Podia ter sido em Ur, mas não foi. Em Sua providência, Deus trouxe desentendimento e competição entre Abrão e Ló, o que forçou a separação. Mais cedo ou mais tarde, os propósitos de Deus serão realizados. Se não vemos necessidade de obediência, Deus criará uma. Você pode contar com isso.
Sem dúvida, o problema que causou a separação entre Abrão e Ló há muito era evidente. Imagino que Abrão tenha discutido diversas vezes o assunto com Sarai, sua esposa. O texto não diz nada, mas desconfio que ela deva ter dito a ele as mesmas palavras que incontáveis esposas guardam para uma ocasião como esta: “Eu não falei?”.
Geralmente, o curso inevitável dos acontecimentos é óbvio para o nosso companheiro muito antes de estarmos dispostos a aceitar a realidade dos fatos. É bem possível que Sarai tenha apresentado uma solução totalmente diferente da encontrada por Abrão. Talvez ela tenha dito: “Diga pra Ló cair fora”. “Abrão, Deus não chamou Ló para ir a Canaã, só você”. “Deixe ele ir”. Tudo isto, é claro, é mera conjectura da minha parte, mas qualquer estudante da natureza humana teria de concordar que, pelo menos, é uma possibilidade viável.
A solução encontrada por Abrão não poderia ser mais graciosa ou piedosa. Sua motivação parece ter sido baseada na ética, não na economia.
Disse Abrão a Ló: Não haja contenda entre mim e ti e entre os meus pastores e os teus pastores, porque somos parentes chegados. Acaso não está diante de ti toda a terra? Peço-te que te apartes de mim; se fores para a esquerda, irei para a direita; se fores para a direita, irei para a esquerda. (Gênesis 13:8-9)
Acima de tudo, Abrão queria manter a paz e resolver o conflito que havia se estabelecido entre eles. A coisa mais importante era preservar a união fraterna. Por mais estranho que pareça, embora a separação fosse mais prática, a união devia ser preservada por meio dela. Um deles precisava partir, ou Abrão ou Ló.
Aparentemente, era óbvio que eles precisavam se separar. O único problema era: quem devia ir embora, e para onde? Abrão deixou a decisão por conta de Ló. Qualquer que fosse sua escolha, Abrão iria agir em conformidade com ela. A oferta dava vantagem a Ló e deixava Abrão vulnerável.
Quando Abrão fez a oferta a Ló, parece que os dois estavam em um lugar alto, de onde podiam avistar toda a terra ao seu redor. A decisão de Ló foi friamente calculada. Com olhos de um avaliador, ele examinou a terra, pesando as vantagens e desvantagens das opções:
Levantou Ló os olhos e viu toda a campina do Jordão, que era toda bem regada (antes de haver o Senhor destruído Sodoma e Gomorra), como o jardim do Senhor, como a terra do Egito, como quem vai para Zoar. Então, Ló escolheu para si toda a campina do Jordão e partiu para o Oriente. Separaram-se um do outro”. (Gênesis 13:10-11)
Como pai de cinco filhos, posso entender o que o olhar de Ló procurava enquanto ele inspecionava a terra ao seu redor. Qualquer um dos meus filhos poderia trabalhar para o Bureau of Standards (No Brasil, algo equivalente à ABNT — Associação Brasileira de Normas Técnicas). Com uma simples olhadela, cada um deles pode facilmente calcular a quantidade de bebida num copo. Sem qualquer esforço aparente, eles estendem a mão e o primeiro a alcançar o copo sempre pega o mais cheio, mesmo que a diferença seja mínima. Esse mesmo tipo de olhar era evidente nos olhos de Ló.
Ele fixou os olhos na bela campina do Jordão. Sua beleza verdejante era sinal da presença de muita água para irrigação. Mais adiante, as colinas áridas e o solo empoeirado eram de pouco interesse. Lá quase não havia água.
A campina do Jordão era literalmente um paraíso. Era exatamente como “o jardim do Senhor” (13:10). E também parecia ser abastecida por irrigação, não por chuva (Gênesis 2:6, 10 e ss). Era, ainda, como a terra do Egito. Não era preciso viver pela fé num lugar como esse, pois a água era abundante, não era preciso esperar em Deus pela chuva.
E foi assim que Ló escolheu sua parte, claramente uma decisão astuta e, aparentemente, uma opção que lhe dava uma vantagem decisiva na competição com Abrão. Para mim, foi uma decisão egoísta — a qual pegava o que havia de melhor e deixava para Abrão o que parecia sem valor.
Uma separação mais simples e mais justa teria sido usar o Jordão como fronteira entre eles. Não teria sido mais justo Ló viver de um lado do Jordão, deixando o outro para Abrão? No entanto, Ló escolheu “toda a campina do Jordão” (versículo 11). Ele fez um trabalho de mestre pensando só em si mesmo. Ele poderia ter escrito um livro sobre o assunto.
E assim eles se separaram. Abrão ficou em Canaã, enquanto Ló foi avançando cada vez mais em direção a Sodoma.
Habitou Abrão na terra de Canaã; e Ló, nas cidades da campina e ia armando as suas tendas até Sodoma. (Gênesis 13:12)
Ló tinha considerado com muito cuidado os fatores econômicos da sua decisão, mas tinha deixado de lado completamente as dimensões espirituais. Deus tinha prometido abençoar Abrão, e outras pessoas por meio dele quando elas o abençoassem (Gênesis 12:3). Ao seguir seu caminho, creio que Ló cumprimentou a si mesmo por ter dado o recado ao velho Abe. Abrão devia ser fraco da cabeça por dar essa vantagem a Ló, e Ló era astuto o suficiente para se aproveitar disso. Contudo, fazendo isso, ele não abençoou Abrão, mas fez pouco dele. Isso pedia maldição, não bênção (Gênesis 12:3).
Além do mais, Ló não pensou nas consequências de viver nas cidades da campina. Embora o solo fosse fértil e a água abundante, os homens daquelas cidades eram perversos. O custo espiritual da decisão de Ló foi enorme. E, no final, todos os benefícios materiais também se transformaram em perda.
Creio que Ló não pretendia realmente viver nas cidades da campina. No começo, ele simplesmente tomou uma direção comum (cf. versículo 11). No entanto, uma vez que nosso rumo é estabelecido, nosso destino também é determinado por ele, pois isso é apenas uma questão de tempo. Embora no início Ló vivesse em tendas (13:12), logo ele as trocou por uma casa em Sodoma (19:2, 4, 6). Talvez no princípio ele tenha morado nos subúrbios, mas no fim ele estava morando na cidade (19:1 e ss).
Algumas resoluções talvez não pareçam muito sérias, mas elas estabelecem um curso determinado para a nossa vida. A decisão pode não ser muito importante, mas o resultado final pode ser trágico e assustador. E, muitas vezes, a aparência é de que a escolha foi feita só para o nosso benefício. Prosperidade material nunca deve ser buscada às custas de risco espiritual.
Como o tempo pode mudar nossa perspectiva de prosperidade! Quando a decisão de se estabelecer na campina do Jordão foi tomada, o lugar era praticamente um paraíso (13:10). Moisés, no entanto, inclui uma observação parentética que coloca essa beleza sob uma luz muito diferente: “antes de haver o Senhor destruído Sodoma e Gomorra” (Gênesis 13:10).
As coisas se mostram bem diferentes diante do julgamento divino. Aquele lugar era um belo paraíso — até Deus lançar fogo e enxofre sobre ele (19:24). Daquele dia em diante tudo se tornou uma grande devastação.
Muito maior que a perda de suas posses e de sua prosperidade foi o terrível preço pago por Ló pelo seu prazer passageiro. De acordo com Pedro, sua alma foi continuamente afligida pelo que ele via na cidade (2 Pedro 2:7). Mesmo quando o santo está rodeado de prazer sensual, ele não pode desfrutar do pecado por muito tempo. E mais trágico ainda, foi ele ter pago por sua decisão com a própria família. Sua esposa virou uma estátua de sal, por causa da sua atração por Sodoma (19:26). Suas filhas o seduziram e o levaram a cometer incesto, sem dúvida um reflexo dos valores morais aprendidos em Sodoma (19:30 e ss).
É interessante que Deus só fala com Abrão (pelo menos, no que se refere à Escritura) após ele tomar a decisão de se separar. Isso não foi casual, mas fundamental, pois lemos: “Disse o Senhor a Abrão, depois que Ló se separou dele...” (Gênesis 13:14).
Até onde podemos ver, o chamado de Deus a Abrão (12:1-3) foi só para ele. Assim como a confirmação no capítulo 13. Deus lhe disse para deixar sua parentela (12:1). A bênção não poderia vir sem a obediência à Sua vontade revelada; nem a restauração. Em termos humanos, a única coisa que ficou no caminho da bênção divina foi a desobediência humana. Providencialmente, Deus remove essa barreira ao separar Ló de Abrão, e então, Ele reafirma Sua promessa.
... Ergue os olhos e olha desde onde estás para o norte, para o sul, para o oriente e para o ocidente; porque toda essa terra que vês, eu ta darei, a ti e à tua descendência, para sempre. Farei a tua descendência como o pó da terra, então se contará também a tua descendência. Levanta-te, percorre essa terra no seu comprimento e na sua largura, porque eu ta darei. (Gênesis 13:14b-17)
Ló tinha “erguido seus olhos” (versículo 10) e contemplado a terra antes de Abrão, com os olhos de alguém que avalia uma promessa financeira; Abrão recebe ordem de olhar para a promessa de Deus com os olhos da fé.
Talvez Abrão estivesse em um lugar elevado, examinando a terra que era sua, e também, quem sabe, a terra escolhida por Ló. Se eu estivesse no lugar dele, muitos pensamentos teriam passado pela minha cabeça. Será que eu tinha desistido da minha oportunidade de ouro? Sarai não achava que eu tinha feito papel de tolo? Teria eu falhado com ela? Teria falhado com Deus quando tomei minha decisão? Uma olhada no verde exuberante da campina do Jordão, em contraste com o marrom estéril das colinas áridas, poderia ter inspirado esse tipo de pensamento.
Contudo, Deus garantiu a Abrão que toda a terra que ele estava contemplando lhe seria dada. Ló podia ter escolhido viver em Sodoma, mas Deus não lhe dera a posse da terra, e nem a daria. Ló seria um peregrino em Sodoma (cf. 19:9), e por muito pouco tempo. Dar a vantagem a Ló não foi desistir das esperanças para o futuro, pois, em última análise, é Deus quem dá bênçãos aos homens por Sua escolha soberana.
Enquanto Abrão olhava a terra, talvez ele tenha visto a rica lama negra do vale do Jordão para onde Ló se dirigiu. Talvez ele tenha visto também a poeira que se levantava ao seu redor, tipificando a terra onde viveria. No entanto, Deus usou esse pó como testemunho das bênçãos por vir. Sua descendência seria tão abundante quanto o pó que dominava aquela terra. Abrão não devia mais olhar para ele com dúvida, mas com esperança, pois ele ia ser o símbolo das bênçãos futuras.
A palavra final de Deus a Abrão nesta visitação foi que ele devia avaliar a terra que um dia seria sua. Por enquanto ele não devia possuí-la, só examiná-la com os olhos da fé. A promessa “porque eu ta darei” (versículo 17) é futura. Ela só foi cumprida quando os Israelitas, sob a liderança de Josué, ocuparam a terra. Leva tempo tomar posse das promessas de Deus, pois é assim que Ele tem planejado.
Como Deus é gracioso ao falar palavras de conforto e segurança quando todas as bênçãos parecem fora de alcance! Como é bom ser relembrado de que a Sua Palavra é fiel e Suas promessas são tão certas quanto Ele é soberano!
A resposta de Abrão revela uma fé crescente no Deus que o chamou. Ele muda suas tendas em direção a Hebrom, estabelecendo-se próximo aos carvalhais de Manre. Este era um pedaço de terra que pertencia a outra pessoa, não a Abrão (cf. 14:3), mas era onde Deus queria que ele ficasse. Ali Abrão constrói um altar e adora a Deus.
Como foram diferentes os caminhos daqueles dois homens depois que eles se separaram! Um, pouco a pouco, foi avançando quase sem perceber em direção à cidade de Sodoma, para viver entre homens ímpios e perigosos; e tudo por causa de vantagens financeiras. O outro foi viver como peregrino, habitando nas colinas áridas, esperando pelas promessas de Deus. Um viveu em tendas e construiu um altar para adorar a Deus; o outro trocou sua tenda por um apartamento na cidade de homens perversos. Eis uma decisão que pesou muito no destino dos dois homens, mas, muito mais que isso, no destino dos seus descendentes.
As decisões tomadas por Abrão e por Ló são as mesmas que todos os cristãos precisam tomar. Precisamos decidir se confiamos na soberania de Deus ou na nossa própria astúcia e engenhosidade. Precisamos resolver se confiamos na “instabilidade da riqueza” ou no Deus que “tudo nos proporciona ricamente” (1 Timóteo 6:17). Precisamos escolher se investimos nos “prazeres passageiros do pecado” ou no futuro “galardão” prometido por Deus (Hebreus 11:25-26).
Na separação de Ló e Abrão, podemos ver o grande contraste entre suas decisões. Ló preferiu agir com base no que lhe era útil; Abrão com base na união. Em prol da união, Abrão estava disposto a ser passado pra trás (cf. 1 Coríntios 6:1-11, esp. o versículo 7). Ele agiu com base na fé no Deus que lhe prometera suprir todas as coisas. Ló preferiu dirigir sua vida sobre a base incerta da segurança financeira. Abrão foi ricamente abençoado, Ló perdeu tudo o que tinha.
Ló preferiu habitar numa cidade que parecia um paraíso (13:10), mas que estava cheia de pecadores. Abrão decidiu viver num lugar deserto, mas onde poderia livremente adorar a Deus.
Abrão é uma bela ilustração da verdade de dois fatos do Novo Testamento. Primeiro, ele fornece uma explicação para estas palavras, ditas por nosso Senhor:
Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra.
Bem-aventurados os pacificadores, pois serão chamados filhos de Deus. (Mateus 5:5, 9 NVI).
Abrão era um homem de mansidão. Ele não era um fraco, como iremos ver no capítulo 14. Ele não teve de agarrar a bênção à força, só teve de esperá-la confiantemente das mãos de Deus. Ele era um homem que costumava manter a paz, não sacrificá-la por prosperidade.
Portanto, vemos que este incidente na vida de Abrão também é educativo quando o comparamos com as palavras do apóstolo Paulo:
Se há, pois, alguma exortação em Cristo, alguma consolação de amor, alguma comunhão do Espírito, se há entranhados afetos e misericórdias, completai a minha alegria, de modo que penseis a mesma cousa, tenhais o mesmo amor, sejais unidos de alma, tendo o mesmo sentimento. Nada façais por partidarismo ou vanglória, mas por humildade, considerando cada um os outros superiores a si mesmo. Não tenha cada um em vista o que é propriamente seu, senão também cada qual o que é dos outros. Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus. (Filipenses 2:1-5)
Abrão foi bem sucedido porque foi servo. Ele não foi bem sucedido porque passou por cima daqueles que cruzaram seu caminho. Ele foi exaltado por Deus porque colocou os interesses dos outros acima dos seus.
Abrão não considerava Ló superior a si mesmo, como algumas traduções erroneamente sugerem. Certamente nosso Senhor, que é o supremo exemplo de humildade, não considerava os homens caídos e pecaminosos superiores a Si mesmo, o Deus infinito e sem pecado. Pelo contrário, Ele Se dispôs a garantir o favor do Pai aos homens às custas de Si mesmo. Ele esperou por bênção e justiça em Deus (cf. I Pedro 2:23).
A forma do mundo para o sucesso é pensar só em si mesmo, procurando ser o número um. Foi assim com Ló. A forma de Deus para ser abençoado é erguer os olhos para o Número Um, preocupando-se com os outros (cf. Mateus 22:36-40). Esse tipo de vida só se pode ter pela fé. Esse tipo de vida só pode fazer a nossa fé em Deus crescer.
O ponto de partida para todo homem, mulher ou criança é receber de Deus a salvação. Não podemos, não ousamos, confiar em nossa própria astúcia para garantir a nossa entrada no reino de Deus. Muitas vezes, aquilo que pensamos ser o “paraíso” logo será destruído pela ira de Deus. A fé reconhece a nossa pecaminosidade e confia na obra de Jesus na cruz do Calvário para receber as bênçãos e a segurança eterna. Os nossos maiores esforços estão fadados à destruição. Só aquilo que Deus promete, e nos dá, é que irá permanecer.
Que Deus ajude a cada um de nós a confiar nEle, não em nós mesmos.
Tradução e Revisão: Mariza Regina de Souza
1 NT: O título é uma expressão idiomática que se refere às pessoas que só pensam em si mesmas e só cuidam de seus próprios interesses
Sofro de uma incurável fascinação por títulos de sermões. Lamento já ter escrito a mensagem de Gênesis capítulo 13, pois agora tenho um novo título para ela. Deveria ter sido “Abrão tinha muito a perder”1. O capítulo 14 então poderia ser “Abrão tinha muito a ganhar”. E quem sabe o capítulo 15 seria “Abrão tinha muito a aprender”. Mas chega de títulos.
Em nossa rádio cristã local há um programa que tenta dar “uma outra visão das notícias”. Aprecio esse esforço, pois os cristãos, com certeza, deveriam ver muito mais que os analistas seculares veem nas notícias da nossa época. Por exemplo, grandes catástrofes, tais como a erupção do monte Santa Helena e os terremotos da Califórnia, podem ser sinais do fim dos tempos (cf. Mateus 24:7). O rápido crescimento da criminalidade e da ilegalidade pode ser visto como consequência das condições morais dos últimos dias (cf. 2 Timóteo 3:1-7). Estouros e ameaças de guerra, o alinhamento das nações, tudo é muito importante para o alerta cristão (cf. Ezequiel 38, Daniel 12, Mateus 24:6-8).
Existe, é claro, o lado secular das notícias. Ele trata, principalmente, dos fatos e números, dos detalhes e da descrição daquilo que acontece. As explicações para esses eventos quase sempre são de natureza humanista e econômica.
Para os cristãos, no entanto, deve haver uma outra dimensão — o lado espiritual dos fatos. Se Deus é soberano na história, como a Bíblia afirma que Ele é (cf. Salmo 2, Provérbios 21:1, Daniel 2:21, Atos 4:23-31), então Sua mão deve ser vista como um guia para a realização dos Seus propósitos.
Esse é o caso em Gênesis 14. Ali, pela primeira vez nas Escrituras, a história patriarcal e a história secular se cruzam2. Aparentemente, o incidente é apenas um confronto internacional para garantir a supremacia econômica pelo controle de uma rota comercial importantíssima. O “outro lado da notícia” é que este acontecimento serve como comentário de Gênesis 13, assim como uma oportunidade de ensino tanto para Ló quanto para Abrão. Enquanto Ló parece ter aprendido muito pouco, Abrão está amadurecendo na fé.
Os primeiros onze versículos do capítulo 14 podem confundir o leitor do século 20, pois são estranhamente seculares. Pior ainda, parecem longínquos, sem sentido e enfadonhos. Eles contêm o relato de um confronto entre duas coalizões de reinos opostos.
O primeiro bloco de nações era aquele formado pelos quatro reis mesopotâmios do oriente (14:1). Quedorlaomer, rei de Elão (atual Irã), parece ter sido o líder3. Sinar era a região da antiga Babilônia (cf. Gênesis 10:10). A segunda coligação era composta por cinco reis, incluindo os reis de Sodoma e Gomorra (14:2).
Depois de 12 anos como vassalos dos reis orientais, os cinco reis do sul tentaram se livrar de suas algemas. Os reis orientais não podiam permitir que tal rebelião ficasse impune. A revolta não tinha passado despercebida dos outros povos que se encontravam na mesma situação (cf. 14:5-7). O desastre econômico resultante de se ignorar a insurreição seria devastador demais para ser considerado. Os cinco reis do sul controlavam o território onde ficava “a estrada real”. Esta era a ligação terrestre por onde o comércio entre o Egito e os quatro reis orientais precisava passar. Quem tivesse o controle desse pedaço de terra teria o monopólio do comércio internacional.
A rota tomada pelos reis mesopotâmios tem sido objeto de muita crítica.
Ela revela um amplo movimento para o leste e sul, depois para sudoeste; e então do nordeste para o lado ocidental do Mar Morto; finalmente as tropas se juntam, deixando claro seu objetivo final, as cidades do Vale de Sidim4.
Duas explicações parecem satisfazer as objeções que são levantadas. Creio que as duas juntas mostram a sabedoria da estratégia de Quedorlaomer. Primeiro, a rota da conquista parece ser “a estrada real”, a rota comercial que os reis mesopotâmios procuravam garantir5. A rebelião dos cinco reis do sul pode muito bem ter suscitado atos semelhantes de outros reinos. Os quatro reis mesopotâmios, portanto, buscavam restaurar sua soberania sobre toda a extensão da rota comercial.
Segundo, os quatro reis procuraram lidar com os reinos rebeldes um de cada vez. Ao assegurar sua posição primeiramente com os outros reinos, o perigo de um ataque pela retaguarda foi removido. À medida que a narrativa avança, o laço sobre os rebeldes parece se estreitar6. Talvez se esperasse que, conforme as vitórias fossem se acumulando para os quatro reis, a rendição dos cinco reis do sul fosse preferível à derrota.
Contudo, os reis de Sodoma e Gomorra, com seus aliados, devem ter decidido que era mais nobre sofrer uma derrota a desistir e se render. As tropas se entrincheiraram no campo de batalha no vale de Sidim (14:8). Os reinos rebeldes devem ter oferecido pouca resistência à invasão. Ao fugir de seus inimigos, algumas pessoas caíram em poços de betume do vale, outras escaparam para os montes (14:10).
Sodoma e Gomorra foram saqueadas. Tudo e todos que podiam ser levados foram carregados. Este é o lado secular da notícia. No entanto, por que há tanta ênfase na descrição e nos detalhes deste episódio?
A resposta só pode ser encontrada no “outro lado da notícia”, a dimensão espiritual. Além dos fatos e números, estratégias e especulações do raciocínio humano, havia um propósito espiritual. Este incidente internacional não deve ser entendido apenas em termos de luta pelo poder e domínio econômico. Ele foi parte do programa do Deus soberano para a vida de duas pessoas do Seu povo, Ló e Abrão.
Uma observação, aparentemente casual e incidental a olhos não esclarecidos, é fundamental:
Tomaram também a Ló, filho do irmão de Abrão, que habitava em Sodoma, e os bens dele, e partiram. (Gênesis 14:12)
Que comentário sobre a decisão de Ló no capítulo 13! Ló preferiu agir com base em seus interesses econômicos, desprezando, desta forma, a aliança de Deus com Abrão (12:1-3). O que ele deveria ter aprendido é que “aquele que vive pela espada, pela espada morrerá”. Interesse econômico também era a motivação dos reis das duas coligações, a do sul e a dos mesopotâmios.
Tudo o que Ló parecia ter ganho ao tirar vantagem de Abrão foi perdido num instante, e aparentemente por acaso. Ele foi capturado em meio a um incidente internacional. Será possível imaginar os pensamentos que se passavam pela sua cabeça, quando ele e sua família, e todos os seus bens, estavam sendo levados para um lugar distante? Ele, que tinha sido tão esperto, agora era escravo, e tudo por causa da sua escolha interesseira.
Você reparou também que é dito que ele estava vivendo em Sodoma (versículo 12)? Quando o deixamos no capítulo 13, ele estava morando no vale do Jordão, dirigindo-se para o leste (13:11). Depois ele foi mudando suas tendas até Sodoma (13:12). E, finalmente, ele era um deles, pelo menos aos olhos dos vencedores.
Alguém que escapou de Quedorlaomer encontrou Abrão e lhe contou o destino de Ló.
Porém veio um, que escapara, e o contou a Abrão, o hebreu. Ora, este habitava junto dos carvalhais de Manre, o amorreu, irmão de Escol e de Aner; os quais eram aliados de Abrão. (Gênesis 14:13)
Digna de nota é a designação de Abrão como “o hebreu”7. Parece que ele estava começando a ser tornar conhecido dos moradores daquela região. Ele habitava junto aos carvalhais de Manre. Manre e seus dois irmãos, Escol e Aner, tinham se aliado a Abrão (versículo 13).
Juntando seus homens e os de seus aliados8, Abrão saiu rapidamente em perseguição aos captores de Ló.
Ouvindo Abrão que seu sobrinho estava preso, fez sair trezentos e dezoito homens dos mais capazes, nascidos em sua casa, e os perseguiu até Dã. (Gênesis 14:14)
Não se pode dizer com certeza se foi pela fé que Abrão se meteu nessa aventura tão arriscada, aparentemente, em grande desvantagem numérica. No mínimo, precisamos ser cautelosos em taxar sua atitude neste texto como decorrente da fé. Em lugar algum a motivação de Abrão é claramente afirmada.
Havia boas razões para ignorar completamente a informação do fugitivo. Como Sarai deve ter sugerido, as chances não estavam a favor de Abrão. Essa campanha podia ser suicida. Além do mais, Ló conseguiu exatamente o que queria. Ele escolheu viver em Sodoma — que aprendesse a lição em Elão ou na Babilônia. Deliberadamente, ele preferiu tirar vantagem de seu tio; que pagasse o preço, então.
Se a atitude de Abrão foi uma questão de fé ou de honra, não posso dizer com certeza (Pessoalmente acho que foi pela honra da família. Eu o vejo como uma espécie de Ben Cartwright, do seriado de TV “Bonanza”). Agora vemos que a mansidão demonstrada por ele ao lidar com Ló não foi fraqueza. Seja como for, ele foi atrás do sobrinho. Devido à promessa feita a Abrão (12:1-3), Deus o protegeu e o fez ter êxito.
E, repartidos contra eles de noite, ele e os seus homens, feriu-os e os perseguiu até Hobá, que fica à esquerda de Damasco. Trouxe de novo todos os bens, e também a Ló, seu sobrinho, os bens dele, e ainda as mulheres e o povo. (Gênesis 14:15-16)
Abrão, ao que parece, tinha uma poderosa mente militar. Ele empregou uma marcha forçada e realizou um ataque surpresa de várias posições. Ao que tudo indica, ele foi o comandante de seus próprios homens e também dos homens de seus aliados. A perseguição foi feroz e abrangente, até a vitória estar completa e os despojos inteiramente recuperados. Tudo foi retomado: os bens, as pessoas, e o pródigo — Ló.
Talvez o maior teste enfrentado por uma pessoa seja o do sucesso:
Como o crisol prova a prata, e o forno o ouro, assim o homem é provado pelos louvores que recebe. (Provérbios 27:21)
É difícil compreender o quanto o retorno triunfal foi tentador para Abrão. Sua recepção deve ter sido uma versão antiga do desfile de honra de Nova York. Se até o rei de Sodoma foi ao seu encontro, imagine o resto da cidade, que ansiava pela volta de seus entes queridos.
Após voltar Abrão de ferir a Quedorlaomer e aos reis que estavam com ele, saiu-lhe ao encontro o rei de Sodoma no vale de Savé, que é o vale do Rei. (Gênesis 14:17)
Se o rei de Sodoma preparou algumas palavras para a ocasião, ele teve de esperar, pois, de algum lugar surgiu o rei de Salém com as palavras que Abrão mais precisava ouvir:
Melquisedeque, rei de Salém, trouxe pão e vinho; era sacerdote do Deus Altíssimo; abençoou ele a Abrão, e disse: Bendito seja Abrão pelo Deus Altíssimo, que possui os céus e a terra, e bendito seja o Deus Altíssimo, que entregou os teus adversários nas tuas mãos! E de tudo Abrão deu-lhe o dízimo. (Gênesis 14:18-20)
Creio que foi providencial a aparição de Melquisedeque interromper o encontro de Abrão com o rei de Sodoma. Quando ele terminou sua tarefa, aparentemente foi embora; e só então o rei de Sodoma falou.
Melquisedeque é uma figura crucial nesta narrativa, pois ele coloca a vitória de Abrão na perspectiva teológica correta9. Não houve tapinha nas costas ou politicagem. Melquisedeque era rei e sacerdote, não rei e político. Suas palavras tinham a intenção de relembrar a Abrão que a vitória era de Deus, e o sucesso, resultado da Sua bênção. Na verdade, as palavras de Melquisedeque foram um lembrete da aliança de Deus com Abrão ao chamá-lo em Ur para ir para Canaã:
Ora, disse o Senhor a Abrão: Sai da tua terra, da tua parentela, da casa de teu pai e vai para a terra que te mostrarei. De ti farei uma grande nação; e te abençoarei, e te engrandecerei o nome. Sê tu uma bênção. Abençoarei os que te abençoarem, e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; e em ti serão benditas todas as famílias da terra. (Gênesis 12:1-3)
A resposta de Abrão foi um testemunho da sua fé no Deus único, adorado por ele e Melquisedeque. Seu dízimo foi uma evidência tangível de que era Deus quem merecia a glória.
Muita gente recorre ao versículo 20 como texto de prova para a entrega do dízimo: “... E Abrão deu-lhe o dízimo de tudo”. Dizem que este foi o primeiro dízimo, e que ocorreu antes da lei ser outorgada. Por isso, sua prática está além da lei, sendo, portanto, obrigatória aos cristãos de nossos dias. Creio que este seja um pensamento falacioso.
Somos levados a crer que Abrão deu a Melquisedeque o dízimo de todas as suas posses. Mas quando Moisés escreve: “... deu-lhe o dízimo de tudo”, o que será que ele quis dizer com tudo — tudo o quê?
Talvez isso seja um choque para você, mas Abrão não deu o dízimo das suas posses. Em primeiro lugar, ele não estava em casa, com seus bens, mas no caminho de volta, com os bens do rei de Sodoma e de seus aliados. O escritor aos Hebreus nos informa o conteúdo do dízimo de Abrão:
Considerai, pois, como era grande esse a quem Abraão, o patriarca, pagou o dízimo tirado dos melhores despojos. (Hebreus 7:4)
Imagine a cena: Abrão é encontrado pelo rei de Sodoma, o qual, sem dúvida, o enche de elogios. O rei de Salém chega e insta Abrão a dar glória a Deus. O rei de Sodoma, então, observa, pasmo e de olhos arregalados, Abrão dar o dízimo do melhor dos despojos de Sodoma a Melquisedeque. Que testemunho da glória de Deus e da pecaminosidade de Sodoma! Amigo, este não é um exemplo bíblico de entrega do dízimo.
O rei de Sodoma sabia muito bem que “ao vencedor pertencem os despojos”. Além disso, ele testemunhou a entrega de um décimo de seus bens ao rei de Salém (Jerusalém). O melhor acordo a que este rei pagão podia chegar era reaver as pessoas e entregar os bens para Abrão:
Então, disse rei de Sodoma a Abrão: Dá-me as pessoas; e os bens ficarão contigo. (Gênesis 14:21)
Esta oferta deve ter sido muito tentadora para Abrão. Por direito, e até mesmo pelo pedido do rei de Sodoma, os despojos eram seus. De certa forma, foi uma justiça poética. Ló tinha escolhido Sodoma por suas promessas de bênçãos materiais. Aparentemente, ele tinha conseguido o melhor de seu tio; mas agora Deus estava dando de volta a Abrão tudo que devia ser dele desde o princípio.
As palavras de Abrão devem ter sido um choque bem maior para o rei de Sodoma do que o ato de dividir os despojos com Melquisedeque:
Mas Abrão lhe respondeu: Levanto a mão ao Senhor, o Deus Altíssimo, o que possui os céus e a terra, e juro que nada tomarei de tudo o que te pertence, nem um fio, nem uma correia de sandália, para que não digas: Eu enriqueci a Abrão. (Gênesis 14:22-23)
De onde será que Abrão tirou as palavras ditas ao rei de Sodoma? Do rei de Salém, é claro — de onde mais? Melquisedeque se referiu ao seu Deus e de Abrão como o “Deus Altíssimo, o que possui os céus e a terra”. Esta era uma designação incomum para Deus (El Elyon – cf. nota à margem dos versículos 19 e 20 da New American Standard Version), e mesmo assim Abrão a usou — as mesmas palavras ditas por Melquisedeque.
Creio que a chegada do rei de Salém foi um momento decisivo para Abrão, pois colocou sua vitória na perspectiva correta. Embora os homens possam dar glória a homens, os santos devem dar glória a Deus, pois qualquer vitória, no final das contas, é Sua, não nossa.
Por esta razão, Abrão não podia aceitar a oferta de ficar com os bens de Sodoma. Ele, como Melquisedeque, tinha zelo para que a glória de Deus fosse Dele somente. Aceitar qualquer coisa de um rei pagão seria dar a ele oportunidade de supor que sua oferta fosse responsável pelo sucesso de Abrão. O valor dos bens era muito alto, por isso, Abrão recusou o que, por direito, era seu.
Abrão chegou a essa maravilhosa conclusão, mas observe que ele não empurra suas convicções goela abaixo de seus aliados:
Nada quero para mim, senão o que os rapazes comeram, e a parte que toca aos homens Aner, Escol e Manre, que foram comigo; estes que tomem o seu quinhão. (Gênesis 14:24)
O que os homens comeram das mercadorias de Sodoma não ia ser reembolsado. No entanto, o que era devido aos outros, que não estavam ligados a Deus pela fé, não deveria ser sonegado.
Acima de qualquer outra coisa, o acontecimento de Gênesis 14 pode nos dar um comentário divino sobre as decisões tomadas no capítulo 13. Ló preferiu Sodoma e seu egoísmo, e quase perdeu tudo por causa disso. Abrão preferiu seguir a paz e por isso lhe foi concedida uma vitória militar. Ló confiou em si mesmo e se tornou escravo. Abrão confiou em Deus e se tornou uma figura proeminente entre seus irmãos. Como as nossas decisões se mostram diferentes à luz da história! A história sopesa as decisões dos homens.
Esta passagem também é um lembrete da soberania de Deus nas questões humanas. Deus está no controle da história. Os acontecimentos que parecem apenas seculares muitas vezes têm um propósito e significado espiritual bem mais profundo. O que parecia ser uma situação trágica, onde Ló foi apanhado na disputa entre duas facções políticas opostas, na verdade era o propósito de Deus sendo realizado para o benefício dos dois homens (principalmente), Ló e Abrão. Eis aí, amigo cristão, o outro lado das notícias.
A aparição de Melquisedeque também me faz lembrar de que não existem “Patrulheiros Solitários” na fé cristã. Há épocas em que temos a impressão de que ninguém mais parece ter fé; no entanto, isso é apenas ilusão (cf. 1 Reis 19:14, 18). Lá estava um rei/sacerdote temente a Deus, Melquisedeque, o qual ainda não tínhamos visto, e nem veremos depois, mas que era um verdadeiro crente.
Deus trabalha por intermédio de homens, meu amigo. Embora nos agrade ser autossuficientes, isso não agrada a Deus. Num momento crítico da vida de Abrão, Deus mandou um homem para esclarecer as coisas e impedi-lo de levar o sucesso demasiadamente a sério. Graças a Deus pelos homens e mulheres que Ele usa em nossa vida, e por Ele nos usar para ministrar aos outros em momentos cruciais da vida.
Há também um lembrete de que, no tocante a dar e receber, o mais importante é a glória de Deus. Se damos algo para receber glória, o que damos não tem proveito (cf. Mateus 6:2-4). Se temos êxito nas mãos de quem rejeita a Deus e toma a glória para si mesmo, a glória de Deus fica encoberta aos homens. Sejamos mais cautelosos com relação ao dinheiro e às coisas materiais. Algumas pessoas podem receber dinheiro, até mesmo do diabo, mas não Abrão.
Finalmente, este acontecimento nos dá uma bela ilustração da salvação de Deus. Ló preferiu seguir seu próprio caminho, pensando mais nos próprios interesses do que na promessa de Deus de abençoar os homens por meio de Abrão. Como resultado do seu egocentrismo, ele teve de enfrentar as consequências de seu pecado. Em vez de paz e prosperidade, ele encontrou vergonha e escravidão.
Como ele não foi capaz de fazer alguma coisa para corrigir seus erros ou se livrar de seu cativeiro, Abrão, com grande risco pessoal, obteve a vitória e sua libertação. Salvar Ló foi a única razão da ousada missão de resgate empreendida por Abrão. Apesar do desrespeito de Ló para com ele, Abrão o livrou das consequências de seu próprio pecado.
Todos nós, diz a Bíblia, pecamos:
... pois todos pecaram e carecem da glória de Deus. (Romanos 3:23)
Todos seguimos nossos próprios caminhos:
Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas, cada um se desviava pelo seu caminho. (Isaías 53:6a)
As boas novas do evangelho é que Deus mandou Seu filho, Jesus Cristo, para nos livrar de nossos pecados. As consequências dos nossos pecados, e seu castigo, foram suportados por Jesus Cristo na cruz do Calvário.
Verdadeiramente ele tomou sobre si as nossas enfermidades, e carregou com as nossas dores; e nós o reputávamos por aflito, ferido de Deus, e oprimido. Mas ele foi ferido por causa das nossas transgressões, e esmagado por causa das nossas iniqüidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados. Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas, cada um se desviava pelo seu caminho; mas o Senhor fez cair sobre ele a iniquidade de todos nós. (Isaías 53:4-6)
Você tem fé em Jesus? Reconhece sua teimosia e obstinação, e sua necessidade de ser liberto do cativeiro do pecado? A missão de resgate de Deus foi bem sucedida, e seus benefícios são gratuitos a todo aquele que crê na salvação somente em Cristo.
Porque Deus amou ao mundo de tal maneira, que deu Seu filho unigênito para que, todo aquele que Nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. (João 3:16)
E não há salvação em nenhum outro; porque debaixo do céu não existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos. (Atos 4:12)
Porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor. (Romanos 6:23)
Aquele que crê no filho de Deus tem, em si, o testemunho; Aquele que não dá crédito a Deus o faz mentiroso, porque não crê no testemunho que Deus dá acerca do seu Filho. E o testemunho é este: que Deus nos deu a vida eterna; e esta vida está no seu Filho. Aquele que tem o Filho tem a vida; Aquele que não tem o Filho não tem a vida.” (I João 5:10-12)
Tradução e Revisão: Mariza Regina de Souza
1 NT: É impossível a tradução desse trocadilho para o português, pois o Autor usa o próprio nome de Ló, em inglês “Lot”, que juntamente com o artigo indefinido “a” significa “muito, bastante”.
2 “Pela primeira vez, os acontecimentos bíblicos estão expressamente coordenados com a história externa”. Derek Kidner, Genesis (Chicago: InterVarsity Press, 1967), p. 118.
3 “O domínio elamita e babilônico da Palestina durou 12 anos. Quedorlaomer, o elamita, na época em questão, foi soberano sobre a Babilônia, um fato com o qual os registros históricos concordam”. H. C. Leupold, Exposition in Genesis (Grand Rapids: Baker Book House, 1942), I, p. 450.
4 Ibid, p. 451.
5 A rota da conquista tem uma história contínua desde 2.500 a.C. até o presente. Nela, de ponta a ponta, são encontradas pilhas de ruínas, algumas bem grandes, indicando que a rota é de fato real e histórica, dando grande estímulo à cobiça dos invasores. Tempos depois, ela veio a ser chamada de “a estrada real” (Nm. 29:17, 21:22)”. Harold Stigers, A commentary on Genesis (Grand Rapids: Zondervan, 1976), D, 148.
6 “A explicação mais simples é que o exército vindo do leste queria eliminar a possibilidade de um ataque pela retaguarda de grupos hostis. Estes grupos ou eram adversários que não haviam sido subjugados ou adversários subjugados conhecidos por serem difíceis de controlar e inclinados a apoiar outros revoltosos... Isso mostra o cerco se fechando cada vez mais sobre Sodoma e Gomorra. Dá para sentir a apreensão das cidades revoltosas; e elas se viram de um lado para outro à medida que chove por todos os lados relatórios das derrotas dos grupos que estão sendo atacados”. Leupold, Genesis, I, p. 401, p. 149.
7 “Pela primeira vez Abrão é chamado de ‘o hebreu’. Alguns consideram que “hebreu” não seja equivalente para Habiru, embora outros, inclusive Kenyon, achem que sim. Uma das características típicas de Habiru era a de um soldado mercenário, e Abrão se encaixa nesse perfil no resgate de Ló. Portanto, o cognome “hebreu” é uma alcunha em memória deste resgate, não de desaprovação, mas no melhor sentido. Como indicado pelo conteúdo de documentos cuneiformes, pensa-se mais uma vez que Abrão se enquadre em sua época”. Stigers, Genesis, p. 149
8 O versículo 24 nos informa que os homens de Manre, Escol e Aner acompanharam Abrão nesta campanha militar, pois eles iriam repartir os despojos.
9 Algumas pessoas talvez fiquem confusas com o fato de não ter me aprofundado sobre a importância tipológica de Melquisedeque. O escritor aos Hebreus faz isto (Hebreus 5, 7) refletindo sobre os acontecimentos de Gênesis, combinado com a profecia do Salmo 110:4. A razão de eu não ter tratado do assunto é porque, para Moisés, este era um tema secundário, não principal. Era uma questão suplementar, e não fundamental, para o sentido literal, histórico e gramatical do texto. O significado tipológico de qualquer texto é um benefício adicional, mas não deve suplantar a interpretação literal. O significado típico talvez nem tenha passado pela mente do escritor (só na mente de Deus), mas o significado literal era a mensagem pretendida pelo escritor.
No capítulo 15 de Gênesis, chegamos a uma das revelações mais importantes do Antigo Testamento, resumida no versículo seis: “Ele creu no SENHOR, e isso lhe foi imputado para justiça”.
Até este ponto, a fé demonstrada por Abrão tinha sido de caráter mais geral. Ela residia principalmente no chamado de Deus registrado no capítulo 12:
Ora, disse o SENHOR a Abrão: Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai e vai para a terra que te mostrarei; de ti farei uma grande nação, e te abençoarei, e te engrandecerei o nome. Sê tu uma bênção! Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; em ti serão benditas todas as famílias da terra. (Genesis 12:1-3)
Deus, no entanto, raramente permite que a nossa fé continue assim, por isso, enfrentamos tempos de crise, os quais levam nossa fé do abstrato ao concreto, do geral ao particular. E foi assim com Abrão neste capítulo.
As palavras de Deus a Abrão1 estão longe de ser as esperadas naquelas circunstâncias: “Não temas, Abrão, eu sou o teu escudo, e teu galardão será sobremodo grande” (Gênesis 12:1).
Por que Abrão temeria? Ele tinha acabado de conquistar uma grande vitória sobre Quedorlaomer e os outros três reis orientais (Gênesis 14:14-15). Devido a isso, sem dúvida, ele tinha recebido considerável reconhecimento, até mesmo do rei pagão de Sodoma (14:17, 21-24). Que tipo de temor poderia assaltar sua fé numa ocasião como essa?
Talvez ele temesse futuras represálias militares por parte de Quedorlaomer e seus aliados. Ele tinha ganho a batalha, mas teria vencido a guerra? A Palavra de Deus, “eu sou o teu escudo”, pode muito bem ter sido intencionada para aquietar o temor de um possível confronto militar.
Mas esta não podia ser sua maior preocupação, especialmente em virtude dos versículos seguintes. Sua vitória não parecia tão doce à luz de uma pergunta que parecia obscurecer tudo o mais: “Que sucesso é bom, sem um sucessor?”.
A confirmação está na resposta de Abrão a Deus: “Respondeu Abrão: SENHOR Deus, que me haverás de dar, se continuo sem filhos e o herdeiro da minha casa é o damasceno Eliézer? Disse mais Abrão: A mim não me concedeste descendência, e um servo nascido na minha casa será o meu herdeiro” (Gênesis 15:23).
No antigo Oriente Próximo havia uma prática reconhecida para garantir um herdeiro, mesmo que um homem não tivesse filhos2. O casal sem filhos adotava um dos servos nascidos em sua casa. Esse “filho” cuidava deles na sua velhice e herdava todos os seus bens e propriedades quando eles morressem. Nessa época de crise na fé, Abrão achou que isso era o melhor que poderia esperar.
Deus havia lhe prometido muito mais do que ele poderia conseguir por si mesmo. E Eliezer não era o herdeiro prometido. Os descendentes de Abrão deveriam vir das suas próprias células reprodutivas. Seu filho viria dele mesmo.
A isto respondeu logo o SENHOR, dizendo: Não será esse o teu herdeiro; mas aquele que será gerado de ti será o teu herdeiro. (Gênesis 15:4)
A fim de tranquilizar Abrão, Deus o levou para fora e lhe mostrou as estrelas do céu. Sua posteridade, que viria por meio de seu filho, seria tão numerosa quanto elas.
O versículo seis descreve a reação de Abrão à revelação divina: “Ele creu no SENHOR, e isso lhe foi imputado para justiça” (Gênesis 15:6).
A tradução da New American Standard Version (Nova Versão Padrão Americana) não é muito apropriada. A primeira palavra, “então”3, tenta transmitir a ideia de que Abrão reagiu com fé à promessa de um filho. Neste sentido, é uma boa tradução. A dificuldade, no entanto, está em que “então” talvez transmita mais do que deveria. O versículo seis é a primeira vez onde a palavra “crer” é utilizada. É também a primeira vez onde Abrão é reconhecido como justo. Seria fácil concluir que Moisés estivesse dizendo ter sido aqui que Abrão veio a crer em Deus, e quando ele foi “salvo” (para usar um termo do Novo Testamento).
No livro de Hebreus, lemos: “Pela fé, Abraão, quando chamado, obedeceu, a fim de ir para um lugar que devia receber por herança; e partiu sem saber aonde ia” (Hebreus 11:8).
Nesta passagem, o escritor aos Hebreus pretende nos fazer entender que Abrão já “acreditava” em Deus antes do capítulo 15 de Gênesis, antes de deixar Ur e ir para Canaã.
A solução não é tão difícil quanto parece. A gramática do versículo seis de Gênesis 15 mostra que Abrão não começou a ter fé naquele momento4. Ele não só já acreditava, como continuou acreditando. O “então” da tradução da NASV, portanto, talvez seja um pouco forte demais.
No entanto, por que Moisés esperou até este ponto para dizer que Abrão creu e foi justificado pela fé? A resposta de Lutero, a meu ver, parece a mais satisfatória. Sua fé ainda não tinha sido mencionada a fim de salientar que a fé salvadora é aquela focada na pessoa e na obra de Jesus Cristo5. Aqui, a fé professada por Abrão estava na promessa de um filho, por meio de quem viria bênção para o mundo todo. Embora não possamos determinar com clareza o quanto Abrão apreendeu de tudo isso, não podemos deixar passar as palavras do Salvador a esse respeito: “Abraão, vosso pai, alegrou-se por ver o meu dia, viu-o e regozijou-se” (João 8:56).
Mesmo que Abrão já acreditasse em Deus, neste ponto sua fé é realçada e definida com maior clareza. Sua fé está na promessa de Deus de abençoá-lo com um filho, e abençoá-lo por meio Dele. Foi aqui que Deus escolheu anunciar que sua fé era uma fé salvadora.
Observe três coisas a respeito da fé professada por Abrão:
(1) Primeiro, sua fé era pessoal. Com isso quero dizer que Abrão realmente acreditava no Senhor. Ele não se limitava a crer em coisas sobre Deus, Abrão cria nEle. Eis a diferença entre muitos que se dizem cristãos e aqueles que têm a Cristo — aqueles genuinamente nascidos de novo pela fé na pessoa de Cristo.
(2) Segundo, sua fé era fé proposicional. Embora Abrão cresse na pessoa de Deus, sua fé tinha como base Suas promessas. Muitas pessoas creem num deus definido por elas mesmas. Abrão cria no Deus da revelação. A aliança feita por Deus com ele (versículo 12 em diante) deu-lhe proposições específicas nas quais basear sua fé e vida prática.
(3) Sua fé também era uma fé prática. Com isso quero dizer que as convicções de Abrão requeriam ação. Nitidamente, suas obras não deram início à sua fé, mas elas a demonstraram (cf. Tiago 2:14 e ss). Além disso, sua fé estava relacionada a uma necessidade muito prática e perceptível — a necessidade de um filho. Deus não nos pede para crer em coisas abstratas, mas em coisas normais da vida.
Quando Moisés diz que a fé professada por Abrão foi-lhe imputada para justiça, ele não quis dizer que, de alguma forma, ela foi trocada por justiça. Sua fé, como a nossa hoje em dia, não era uma coisa invocada pelo poder mental ou espiritual. A fé, em si mesma, é um dom (Efésios 2:8-9). A fé professada por Abrão estava no filho que viria e em seus descendentes, um dos quais seria o Messias. Foi por Abrão confiar no Único que poderia prover sua justificação que Deus o declarou justo. Tecnicamente falando, a salvação (e a fé) é um dom, a justiça, no entanto, vem por meio de um processo legal de imputação. Abrão foi declarado legalmente justo por Deus porque confiou nAquele que era justo. A justiça de Cristo, imputada a Abrão devido à fé dada por Deus, o salvou.
O jeito de Deus salvar os homens não é novo. Nada mudou dos tempos do Antigo Testamento para o Novo. Deus sempre salvou os homens pela graça, por meio da fé. Não há outra forma. Enquanto Abrão foi salvo pela fé nAquele que viria, nós somos salvos pela fé nAquele que já veio. Esta é a única diferença.
Após cuidar da maior preocupação de Abrão — ou seja, a de um herdeiro, Deus prossegue, fortalecendo sua fé quanto à terra que um dia seria sua: “Disse-lhe mais: Eu sou o SENHOR que te tirei de Ur dos caldeus, para dar-te por herança esta terra” (Gênesis 15:7).
A pergunta feita por Abrão não parece refletir algum tipo de incredulidade, só estranheza acerca de como isso se daria: “Perguntou-lhe Abrão: SENHOR Deus, como saberei que hei de possuí-la?” (Gênesis 15:8).
O tom é semelhante ao de Maria quando ela fica sabendo que iria ser a mãe do Messias: “Então, disse Maria ao anjo: Como será isto, pois não tenho relação com homem algum?” (Lucas 1:34).
Deus não repreende Abrão por sua pergunta, mas confirma Sua promessa com um pacto.
Respondeu-lhe: Toma-me uma novilha, uma cabra e um cordeiro, cada qual de três anos, uma rola e um pombinho. Ele, tomando todos estes animais, partiu-os pelo meio e lhes pôs em ordem as metades, umas defronte das outras; e não partiu as aves. Aves de rapina desciam sobre os cadáveres, porém Abrão as enxotava. (Gênesis 15:9-11)
No mundo antigo de Abrão, os contratos legais e vinculativos não eram documentos escritos por advogados e assinados pelas partes envolvidas. Em vez disso, as duas partes chegavam a um acordo mutuamente aceitável que depois era formalizado na forma de um pacto.
O pacto era selado dividindo-se um animal (ou animais) ao meio. Na verdade, o termo técnico literalmente significa “cortar um pacto”. O animal era cortado e as partes envolvidas passavam entre suas duas metades. Parece que nesse juramento os homens reconheciam que o destino do animal deveria ser o deles, caso quebrassem os termos do acordo.
Portanto, vemos que esses versículos não descrevem o processo de sacrifício de animais, mas o ato legal de concretizar um acordo vinculativo. Os versículos 9 a 11 preparam o terreno para a ratificação final do pacto.
Algum tempo parece ter se passado entre a preparação dos animais e a ratificação do pacto (cf. versículo 11). Em virtude dessa demora, Abrão cai num estado de transe profundo: “Ao pôr-do-sol, caiu profundo sono sobre Abrão, e grande pavor e cerradas trevas o acometeram” (Gênesis 15:12).
Em minha opinião, a causa do “grande terror e cerradas trevas” foi mais do que a consciência da presença de Deus. Creio ter sido uma reação normal ao horror gerado pela revelação do tratamento que seria dispensado aos filhos de Abrão nos quatrocentos anos seguintes. Seus descendentes iriam tomar posse da terra de Canaã, mas só depois de um tempo considerável e de muitas dificuldades:
Então, lhe foi dito: Sabe, com certeza, que a tua posteridade será peregrina em terra alheia, e será reduzida à escravidão, e será afligida por quatrocentos anos. Mas também eu julgarei a gente a que têm de sujeitar-se; e depois sairão com grandes riquezas. (Gênesis 15:13-14)
Com todo cuidado, o Egito não é mencionado como sendo a terra onde irá ocorrer a escravidão. Não só Abrão não precisava saber disso, como também um conhecimento prévio do cativeiro poderia ter sido prejudicial. Para quem leu as palavras de Moisés, no entanto, não foi problema saber que lugar era esse. Aliás, eles tinham acabado de sair do Egito. Que coisa mais estranha deve ter sido para aqueles israelitas lerem a profecia que descrevia com tanta precisão o seu sofrimento.
Parece haver duas razões para a espera de quatrocentos anos até a posse de Canaã. Primeira, os filhos de Abrão ainda não tinham condições (ou número suficiente) para tomar posse da terra. Segunda, o povo da terra ainda não era iníquo o bastante para ser expulso: “Na quarta geração, tornarão para aqui; porque não se encheu ainda a medida da iniquidade dos amorreus” (Gênesis 15:16).
Eis aqui um princípio importante, o que governa a posse do território de Canaã. Deus é o dono da terra (Levítico 25:23), e Ele a deixa para quem viver de acordo com a justiça. Quando Israel se esqueceu do seu Deus e praticou as abominações dos cananeus (cf. 2 Crônicas 28:3; 33:2), Deus também os lançou fora da terra.
À luz da atual discussão sobre quem tem direito legítimo sobre o território de Israel, devemos nos lembrar deste princípio. Deus é o dono da terra, não os judeus, nem os árabes. Deus não permitirá aos judeus tomar posse da terra e viver em iniquidade, assim como não permitirá aos gentios.
Durante os quatrocentos anos, ou mais, depois da época desta revelação, duas coisas ocorreram simultaneamente. Os cananeus se tornaram cada vez mais perversos, e o dia de seu julgamento, cada vez mais próximo, e a nação de Israel nasceu, cresceu rapidamente em número, e em maturidade espiritual, preparando-se para o dia da posse.
Este também não é um retrato dos nossos dias? Deus não disse que, nos últimos tempos, a iniquidade se tornaria cada vez maior (cf. 2 Tessalonicenses 2:1-12; 2 Timóteo 3:1-9; 2 Pedro 3:3 e ss)? Enquanto isso, Deus está nos purificando e preparando para a volta de Cristo (cf. Efésios 5:26-27; Colossenses 1:21-23; 1 Pedro 1:6-7). Os perversos irão receber o justo castigo pelo seu pecado, e os santos, o galardão de justiça.
Quando Deus falou com Abrão sobre sua morte em ditosa velhice, e sobre o destino da sua posteridade, Ele também ratificou Sua aliança quanto à terra que um dia seria de Israel:
E sucedeu que, posto o sol, houve densas trevas; e eis um fogareiro fumegante e uma tocha de fogo que passou entre aqueles pedaços. Naquele mesmo dia, fez o SENHOR aliança com Abrão, dizendo: À tua descendência dei esta terra, desde o rio do Egito até ao grande rio Eufrates: o queneu, o quenezeu, o cadmoneu, o heteu, o ferezeu, os refains, o amorreu, o cananeu, o girgaseu e o jebuseu. (Gênesis 15:17-21)
Este foi um pacto diferente, pois somente Deus, na forma de um fogareiro fumegante e uma tocha de fogo, passou por entre a carcaça dividida dos animais. Assim foi feito para significar que o pacto era unilateral e incondicional. Nenhuma condição foi exigida de Abrão para sua realização.
Os limites geográficos da terra foram claramente definidos, e até mesmo os povos que seriam despejados foram relacionados. Deus Se comprometeu com um curso muito específico de ação. Que mais poderia ser pedido?
O fator decisivo para Abrão foi que a promessa de Deus agora era muito mais específica. Ele teria um filho dele mesmo, por meio de quem as bênçãos seriam derramadas. Seus descendentes seriam muito numerosos e, no tempo certo, tomariam posse da terra. No entanto, antes disso, teriam de passar por um longo período de espera e muita dificuldade.
A essência da fé professada por Abrão foi sua satisfação com a presença de Deus enquanto esperava na promessa das bênçãos futuras. Ele não ficou com a pior parte. Seu grande galardão foi o próprio Deus: “Não temas, Abrão, eu sou o teu escudo, o teu grandíssimo galardão” (Gênesis 15:1, Almeida Corrigida e Revisada, Fiel).
Hoje em dia, nossa teologia tem sido muito distorcida. Somos convidados a aceitar a Cristo como Salvador por causa de tudo o que Ele pode e poderá fazer por nós. Nós O aceitamos pelas Suas dádivas, não pela Sua presença.
Abrão não foi tapeado ou ludibriado no tempo de Deus e nas dificuldades que ele e seus descendentes enfrentaram. Ele foi abençoado, pois Deus é a nossa porção, e isso foi suficiente.
Um dia antes de ministrar esta mensagem, realizei o funeral de uma jovem da nossa igreja. Era uma moça adorável, modelo de mãe e esposa. Ela tinha 28 anos e morreu enquanto dormia. Ainda não sabemos a causa da sua morte.
Para a mensagem do ofício fúnebre, escolhi o texto do Salmo 73. Nele, o salmista confessa sua perplexidade diante do fato tão frequente de que o justo parece sofrer (versículo 4) enquanto o ímpio prospera (versículos 3 a 12). No entanto, quando o escritor pondera sobre o destino eterno dos homens, ele percebe que no final Deus coloca as coisas em pratos limpos. As exigências da justiça nem sempre são plenamente satisfeitas até que chegue a eternidade. O céu e o inferno são, portanto, requisitos da justiça. Sem eles, a justiça não é satisfeita.
Isso leva o salmista a concluir que o melhor na vida não é ser livre da dor do sofrimento ou da pobreza, mas conhecer a Deus:
Todavia, estou sempre contigo, tu me seguras pela minha mão direita. Tu me guias com o teu conselho e depois me recebes na glória. Quem mais tenho eu no céu? Não há outro em quem eu me compraza na terra. Ainda que a minha carne e o meu coração desfaleçam, Deus é a fortaleza do meu coração e a minha herança para sempre… Quanto a mim, bom é estar junto a Deus; no SENHOR Deus ponho o meu refúgio, para proclamar todos os seus feitos. (Salmo 73:23-26, 28)
Eis, então, a chave para o entendimento da bênção que pode ser encontrada na espera e na dificuldade: enquanto a prosperidade muitas vezes nos leva para longe de Deus (cf. Salmo 73:7-12), a aflição nos aproxima Dele (Salmo 73:25-26).
Se a proximidade de Deus é o bem maior, então o sofrimento também é, se fortalece a nossa intimidade com Ele. E a prosperidade é ruim, se nos leva para longe do bem de conhecer a Deus.
Creio ser esta a chave do capítulo 15 de Gênesis. A fé professada por Abrão é fortalecida pela revelação específica a respeito de seu filho e da terra que será herdada pela sua posteridade. Mas, muito além disso, ele é levado a perceber que a fé não pode andar separada do sofrimento, pois Deus o usa para trazer os homens à íntima comunhão com Ele.
A fé raramente é fortalecida pelo sucesso (cf. o versículo 1), mas pela confiança em Deus enquanto esperamos e enfrentamos dificuldades.
Que diremos, pois, à vista destas coisas? Se Deus é por nós, quem será contra nós? Aquele que não poupou o seu próprio Filho, antes, por todos nós o entregou, porventura, não nos dará graciosamente com ele todas as coisas? Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus? É Deus quem os justifica. Quem os condenará? É Cristo Jesus quem morreu ou, antes, quem ressuscitou, o qual está à direita de Deus e também intercede por nós. Quem nos separará do amor de Cristo? Será tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada? Como está escrito: Por amor de ti, somos entregues à morte o dia todo, fomos considerados como ovelhas para o matadouro. Em todas estas coisas, porém, somos mais que vencedores, por meio daquele que nos amou. Porque eu estou bem certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as coisas do presente, nem do porvir, nem os poderes, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor. (Romanos 8:31-39)
Portanto, também nós, visto que temos a rodear-nos tão grande nuvem de testemunhas, desembaraçando-nos de todo peso e do pecado que tenazmente nos assedia, corramos, com perseverança, a carreira que nos está proposta, olhando firmemente para o Autor e Consumador da fé, Jesus, o qual, em troca da alegria que lhe estava proposta, suportou a cruz, não fazendo caso da ignomínia, e está assentado à destra do trono de Deus. Considerai, pois, atentamente, aquele que suportou tamanha oposição dos pecadores contra si mesmo, para que não vos fatigueis, desmaiando em vossa alma. Ora, na vossa luta contra o pecado, ainda não tendes resistido até ao sangue e estais esquecidos da exortação que, como a filhos, discorre convosco: Filho meu, não menosprezes a correção que vem do Senhor, nem desmaies quando por ele és reprovado; porque o Senhor corrige a quem ama e açoita a todo filho a quem recebe. É para disciplina que perseverais (Deus vos trata como filhos); pois que filho há que o pai não corrige? Mas, se estais sem correção, de que todos se têm tornado participantes, logo, sois bastardos e não filhos. Além disso, tínhamos os nossos pais segundo a carne, que nos corrigiam, e os respeitávamos; não havemos de estar em muito maior submissão ao Pai espiritual e, então, viveremos? Pois eles nos corrigiam por pouco tempo, segundo melhor lhes parecia; Deus, porém, nos disciplina para aproveitamento, a fim de sermos participantes da sua santidade. Toda disciplina, com efeito, no momento não parece ser motivo de alegria, mas de tristeza; ao depois, entretanto, produz fruto pacífico aos que têm sido por ela exercitados, fruto de justiça. Por isso, restabelecei as mãos descaídas e os joelhos trôpegos; e fazei caminhos retos para os pés, para que não se extravie o que é manco; antes, seja curado. (Hebreus 12:1-13)
Tradução: Mariza Regina de Souza
1 Esta é a primeira vez que expressão “veio a palavra do SENHOR…”, encontrada no versículo 1, é empregada no Antigo Testamento. Em geral ela é usada para introduzir uma revelação divina a um dos profetas de Deus (por exemplo, 1 Samuel 15:10). Não podemos nos esquecer de que, mais à frente, Abrão é chamado de profeta (Gênesis 20:7). Isso parece indicar que Moisés entendeu que essa revelação foi dada a Abrão para o seu benefício e para o nosso.
2 A descoberta de uma porção de tábuas de adoção em Nuzi tem sido de grande auxílio para a compreensão das palavras de Abrão: “Uma das tábuas diz: ‘A tábua de adoção pertencente a {Zike}, filho de Akkuya: ele deu seu filho Shennima em adoção para Shuriha-ilu, e Shuriha-ilu, com referência a Shennima, (de) todas as terras… (e) seus ganhos de toda sorte deu a Shennima uma (parte) de sua propriedade. Se Shuriha-ilu tiver um filho dele mesmo, como (filho) principal ele terá dupla porção; Shennima será, então, o seguinte (e) levar sua parte adequada . Enquanto Shuriha-ilu viver, Shannima o venerará. Quando Shuriha-ilu {morrer}, Shennima se tornará seu herdeiro’”. Mesopotomian Legal Documents, traduzido para o inglês por Theophile J. Meek, in Pritchard, ANET, p. 220, como citado por John J. Davis, Do Paraíso à Prisão: Estudos em Gênesis (Grand Rapids: Baker Book House, 1975), p. 185.
3 NT: A palavra não ocorre na maioria das versões em português.
4 “A forma é incomum, perfeito com waw, não como seria de esperar, imperfeito com waw conversivo. Aparentemente, com esta deixa o autor estaria indicando que a permanência dessa postura deve ser salientada: não apenas: Abrão creu esta única vez, mas: Abrão provou constantemente a sua fé…” H. C. Leupold, Exposição de Gênesis (Grand Rapids Baker Book House, 1942), I, p. 477.
5 “Sentimos que a nossa resposta deve ter a mesma forma que a de Lutero, o qual salienta que a justificação pela fé é primeiramente revelada nas Escrituras em uma conexão onde o Salvador é claramente envolvido, a fim de que ninguém se aventure a dissociá-la dEle”. Leupold, Gênesis, I, p. 479.
Há algum tempo, Bill Gothard veio a Dallas para falar a 2.600 pastores. Uma de suas afirmações foi um verdadeiro puxão de orelha em todos nós. Ele disse que, de longe, a maior queixa das esposas de pastor era que seus maridos não estavam assumindo a liderança espiritual de seus lares.
Inúmeras histórias comprovam essa queixa. A mais comum é aquela em que o pastor está no andar de baixo orando para o Senhor lhe dizer se deve ou não mudar de igreja, enquanto sua esposa está no andar de cima fazendo as malas.
Há não muito tempo, li a história de como um pastor foi chamado para pastorear uma das maiores igrejas dos Estados Unidos. Essa igreja havia pedido a ele para atuar como pregador substituto. Temendo que aceitar pudesse indicar a intenção de concorrer a um cargo tão cobiçado, ele recusou a oferta. Sua esposa, no entanto, não pensava da mesma forma e aceitou o convite por ele. Cumprindo o compromisso, mais tarde o homem veio a aceitar o chamado para ser o pastor daquela igreja.
Nem sempre a história acaba tão bem, como nos ensina o texto de Gênesis 16. Abrão, o homem de fé, revelou ter pés de barro até mesmo na sua casa. As consequências devastadoras da sua passividade diante da pressão devem servir de alerta para todos nós.
Embora este texto mostre que ele falhou ao dar ouvidos à sua esposa, deixe-me rapidamente dizer que muitos de nós falham justamente por não darmos ouvidos a elas quando devemos. Homens, não usem este texto como um trunfo sobre suas esposas, pois isso seria um grande erro. Que não venhamos a usar esta passagem para provar nossas ideias preconcebidas e preconceituosas, mas para iluminar o nosso coração e a nossa mente e, assim, crescer na fé.
Os primeiros seis versículos não são apenas uma condenação da postura e da conduta de Sarai. Na verdade, o que vemos é a combinação dos pecados de Abrão, Sarai e Agar, todos contribuindo para a discórdia que se seguiu. Apesar disso, foi Sarai quem deu início a essa sequência particular de eventos, por isso, vamos começar por ela.
Sarai, esposa de Abrão, era impedida de ter filhos. Um herdeiro talvez fosse a coisa mais desejada por um homem daqueles tempos. Este era o caso de Abrão, pois fora dito a ele que ele seria pai de uma grande nação:
De ti farei uma grande nação, e te abençoarei, e te engrandecerei o nome. Sê tu uma bênção! (Gênesis 12:2)
Sarai se sentia pessoalmente responsável pela ausência desse filho. Ela achava que, por nunca ter dado à luz uma criança e por sua idade avançada parecer um impedimento a isso, outra coisa precisava ser feita para que Abrão pudesse ter um filho com outra mulher. Ela pensava: “Eis que o SENHOR me tem impedido de dar à luz filhos” (Gênesis 16:2).
Abrão, portanto, poderia ser pai de uma criança, ainda que Sarai não fosse a mãe.
A cultura daquela época fornecia os meios para concretizar as intenções de Sarai. Documentos antigos revelam que, quando uma mulher não pudesse dar um filho a seu marido, ela podia dar a ele uma das suas escravas como esposa e reivindicar como seu o filho dessa união1.
No entanto, as consequências do plano de Sarai nos dizem que essa proposta foi um erro. Várias evidências desse pecado podem ser demonstradas. Primeiro, Sarai parece ter suposto que a responsabilidade de dar um filho a Abrão fosse sua. Não há base na Escritura para essa suposição:
Ora, disse o SENHOR a Abrão: Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai e vai para a terra que te mostrarei; de ti farei uma grande nação, e te abençoarei, e te engrandecerei o nome. Sê tu uma bênção! Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; em ti serão benditas todas as famílias da terra. (Gênesis 12:1-3)
Nesta aliança de Deus com Abrão, Abrão recebeu apenas uma ordem — sair de Ur. Deus, por outro lado, prometeu guiá-lo (versículo um), fazer dele uma grande nação (versículo dois), e abençoar a Terra por meio dele (versículo três). Em lugar algum, nem ele nem Sarai são encarregados de gerar um filho. Implícita, ao menos, está a garantia de que Deus irá providenciar um.
As palavras de Sarai traem sua relutância em aceitar o fato de que foi Deus quem a impediu de ter um filho: “Eis que o SENHOR me tem impedido de dar à luz filhos; toma, pois, a minha serva, e assim me edificarei com filhos por meio dela” (Gênesis 16:2).
Eis aqui o pecado da presunção. Não confiando em Deus para lhe dar um filho, Sarai forçou a situação, pressionando Abrão a tomar Agar como esposa.
Estranhamente, o grande comentarista Leupold tenta diminuir a culpa de Sarai, salientando sua fé na promessa de Deus2 e sua abnegação em entregar Agar ao marido3. Não concordo com nenhuma dessas explicações. Em lugar algum há qualquer expressão de fé na promessa de Gênesis 12:1-3. Para mim, parece que ela queria se livrar do estigma social da esterilidade, e fortalecer seu relacionamento com Abrão dando-lhe um filho, mesmo que isso implicasse no sacrifício de seus princípios.
Embora a monogamia não fosse claramente ordenada, ela estava presente no conceito original e ideal de casamento (Gênesis 2:18-25). A primeira menção de poligamia está longe de ser um elogio (cf. Gênesis 4:19 e ss). Mais adiante no livro de Gênesis, ter mais de uma esposa sempre virá acompanhado de conflito e competição (cf. Gênesis 29:30 e ss).
Em minha opinião, Sarai não agiu com fé, mas com presunção. Sua principal preocupação parece ter sido o estigma social em relação à sua esterilidade. Talvez ela tenha teimado com Abrão até ele aceitar sua proposta. A fé não tenta forçar Deus a agir, nem age no lugar dEle, muito menos faz o que é sobrenatural no poder da carne.
Bem, fomos duros com Sarai. Alguns talvez achem até que foi demais. No entanto, embora ela tenha sido o agente causador deste fiasco, Abrão também teve culpa. Na verdade, de certa forma esse pecado pode ser rastreado até sua falta de fé, quando ele deixou Canaã e foi para o Egito (Gênesis 12:10 - 13:4). Será mera coincidência Agar ser egípcia?
Ora, Sarai, mulher de Abrão, não lhe dava filhos; tendo, porém, uma serva egípcia, por nome Agar. (Gênesis 16:1)
Há grande probabilidade de Agar ter sido um presente de faraó a Abrão, como parte do dote de Sarai: “Este, por causa dela, tratou bem a Abrão, o qual veio a ter ovelhas, bois, jumentos, escravos e escravas, jumentas e camelos” (Gênesis 12:16).
Mas este mundo dá muitas voltas. Creio que ela foi uma das consequências da falta de fé de Abrão no capítulo 12. Embora Sarai tenha sido o estopim no capítulo 16, a proposta só foi possível graças à decisão de Abrão de ir para o Egito.
No capítulo 16, Abrão está mais para um palerma do que para um patriarca. Sua esposa nem sequer mencionou Deus ou Sua aliança com ele. A fé não parecia um fator importante, nem a vontade de Deus. Que oportunidade para Abrão se mostrar firme! Mas, em vez disso, ele fez um papelão. Aparentemente, com pouco ou nenhum protesto, ele seguiu passivamente as instruções da esposa. Ela queria um herdeiro. Ela planejou a lua de mel. E Abrão fez exatamente o que ela lhe disse para fazer.
“E ouviu Abrão a voz de Sarai” (16:2, Almeida Atualizada e Almeida Corrigida e Revisada, Fiel). Ouvir, no Antigo Testamento, quase sempre é sinônimo de obediência. O problema de Abrão não foi ouvir, foi fazer o que ela propôs, sem pensar nas implicações. Duvido que ele realmente tenha “ouvido”, no sentido de compreender o que Sarai estava tentando lhe dizer. Estaria ela pedindo para ele dizer que a amava mesmo se não pudesse lhe dar um filho? Estaria ela pedindo para ele para restaurar sua confiança no amor e no infinito poder de Deus? Estaria precisando ser relembrada da promessa de Deus? Estaria querendo que ele lhe dissesse não? Talvez Abrão tenha obedecido sem nem mesmo entender o que ela tentava lhe dizer.
Agar também teve sua parcela de culpa. Até onde posso dizer, ela não errou quando foi para a cama com Abrão. Ela era escrava, sujeita à vontade de sua senhora. Ela tinha pouco ou nenhum poder de decisão. Contudo, ela errou quando sentiu orgulho e desprezo por Sarai.
Ele a possuiu, e ela concebeu. Vendo ela que havia concebido, foi sua senhora por ela desprezada. (Gênesis 16:4)
Agar se esqueceu de que Deus havia fechado o ventre de Sarai. Ela fez pouco do fato de “os filhos serem galardão de Deus” (Salmo 127:3).Parece que ela caiu nas graças de Abrão, principalmente quando ele soube que ela carregava um filho dele. Ela se sentiu superior à sua senhora, mas ainda era sua escrava. Ela se gabou do que não era motivo de orgulho.
E, assim, vemos uma sequência de pecados, começando no Egito e terminando na cama de uma escrava egípcia. É irônico como as coisas se invertem! No capítulo 12, a falta de fé de Abrão o fez sofrer enquanto Sarai estava no palácio de faraó. Agora, Sarai, devido à sua própria proposta, fica imaginando o que está se passando no quarto de Agar.
Cada um deles: Sarai, Abrão e Agar, foi pego na teia do pecado. Sarai agiu com presunção; Abrão escorregou na passividade; e Agar foi vítima do orgulho. E, em mais uma rodada de pecado, cada um deles reagiu mal ao dilema causado por seus próprios erros.
Sarai descobriu que o tiro saiu pela culatra. Uma criança nasceu, mas mesmo sendo amada por Abrão (17:18, 20; 21:11), foi desprezada por ela (21:10). Ismael causou desavença entre eles, não união. Até Agar, que antes fora leal, agora desprezava sua senhora.
Abrão tinha dado a Sarai o que ela queria, mas agora ela dizia que não: “Disse Sarai a Abrão: Seja sobre ti a afronta que se me faz a mim. Eu te dei a minha serva para a possuíres; ela, porém, vendo que concebeu, desprezou-me. Julgue o SENHOR entre mim e ti (Gênesis 16:5).
Apesar de todas as palavras religiosas proferidas por Sarai, elas não escondem sua culpa pelo que aconteceu. Embora estivesse furiosa com Abrão, ela tinha de saber que foi ela mesma quem fez a cama para Agar. Não há palavras de confissão ou arrependimento saindo de seus lábios, só um amargo remorso.
Abrão também não mudou de rumo. Ele deveria ter aprendido que passividade não é sinônimo de piedade. Deixar Sarai fazer as coisas do jeito dela era renunciar à sua própria liderança. Ele foi cúmplice do pecado de Sarai por não lhe dizer não ou não repreendê-la. A tremenda bronca de Sarai só serviu para afastá-lo ainda mais. Ele não reconheceu seu pecado, nem confrontou Sarai com os dela. Em vez disso, ele continuou permitindo a ela fazer as coisas do seu jeito.
Respondeu Abrão a Sarai: A tua serva está nas tuas mãos, procede segundo melhor te parecer. Sarai humilhou-a, e ela fugiu de sua presença. (Gênesis 16:6)
Antes, ele havia concordado com seu plano de gerar um herdeiro. Agora, ele dá a ela liberdade para lidar com Agar do jeito que quiser. Sarai parece ter agido dentro dos limites da legalidade4, embora tenha exagerado nos padrões de moralidade. Agar, cansada de enfrentar a tirania de Sarai, acaba fugindo, seguindo rumo ao Egito5.
Já reparou que Deus está estranhamente ausente nos seis primeiros versículos deste capítulo? É bem verdade que Ele recebeu o crédito (ou a culpa) por Sarai não poder ter filhos. Mas, pelo jeito, ninguém O consultou ou buscou Sua vontade. Ninguém se lembrou da Sua promessa de providenciar um filho.
Mais triste ainda é o fato de Deus, até aqui, não ter falado. Parece que, quando o homem escolhe seguir seu próprio rumo, Deus sai do caminho, deixando-o sofrer as consequências de sua desobediência. Deus fala apenas com Agar. Ele a procura enquanto ela está fugindo. A razão dessa intervenção divina está nos versículos 7 a 16.
Já dissemos que Agar estava voltando para o Egito quando Deus a encontrou. As palavras do Senhor penetram profundamente nas suas ações e atitudes: “disse-lhe: Agar, serva de Sarai, donde vens e para onde vais?” (Gênesis 16:8).
Fugir não muda os relacionamentos, nem remove a responsabilidade. Jonas, mesmo dentro da barriga do peixe, ainda era o profeta de Deus com uma mensagem para os ninivitas. Agar continuava sendo a serva de Sarai, e ainda tinha o dever de servir sua senhora.
A pergunta “para onde vais?” parece ter sido intencionada para trazer Agar de volta à realidade. Talvez algum descontrole tivesse provocado sua decisão de fugir. Talvez ela só tivesse parado para pensar depois de haver alguma distância entre ela e sua cruel senhora. Só que agora era hora de pensar no futuro. Para onde ela iria? Voltar para o Egito? Depois de dez anos, e grávida? Isso seria sensato?
Levantando sérias questões sobre a decisão de Agar, Deus continua, fazendo-a se lembrar da sua obrigação. Ele ordena que ela volte para quem tem autoridade sobre ela: “Volta para a tua senhora e humilha-te sob suas mãos” (Gênesis 16:9).
Não podemos ler esta ordem sem nos lembrar das palavras de Pedro, em sua primeira epístola, aos servos cristãos:
Servos, sede submissos, com todo o temor ao vosso senhor, não somente se for bom e cordato, mas também ao perverso; porque isto é grato, que alguém suporte tristezas, sofrendo injustamente, por motivo de sua consciência para com Deus. Pois que glória há, se, pecando e sendo esbofeteados por isso, o suportais com paciência? Se, entretanto, quando praticais o bem, sois igualmente afligidos e o suportais com paciência, isto é grato a Deus. (1 Pedro 2:18-20)
Essas palavras não são fáceis, meu amigo, mas ignorá-las ou rejeitá-las será para o nosso próprio prejuízo. Hoje em dia, o compromisso do casamento parece ir só até onde a relação for a que esperamos. E isso também não é apenas da porta da igreja para fora: “De acordo com Lucille Lavender… ‘Dentre as profissões, as religiosas ocupam a terceira posição em número de divórcios concedidos a cada ano’”6.
Essa estatística é assustadora. Em nossos dias, queremos muito mais falar de prazeres e realizações do que de deveres e obrigações. Mas, o que Deus disse a Agar? Para cuidar do seu dever, mesmo que isso fosse extremamente difícil e desagradável.
Junto com a ordem, no entanto, veio uma promessa. Na verdade, a ordem era uma condição para o cumprimento da promessa:
Disse-lhe mais o Anjo do SENHOR: Multiplicarei sobremodo a tua descendência, de maneira que, por numerosa, não será contada. Disse-lhe ainda o Anjo do SENHOR: Concebeste e darás à luz um filho, a quem chamarás Ismael, porque o SENHOR te acudiu na tua aflição. Ele será, entre os homens, como um jumento selvagem; a sua mão será contra todos, e a mão de todos, contra ele; e habitará fronteiro a todos os seus irmãos. (Gênesis 16:10-12)
Acredito que Kidner esteja certo quando diz que, no cumprimento dessas promessas, Ismael seria uma paródia do seu pai7. Não é difícil notar traços da aliança abraâmica no que Deus fala para tranquilizar Agar.
Os descendentes de Ismael também seriam numerosos demais para serem contados (16:10, cf. 13:16; 15:5). Dele viriam príncipes e governantes (17:20). O que podia parecer uma maldição foi um grande consolo para Agar. Ismael viveria livre, sem restrições, sem algemas, e seria um espinho na carne de seus irmãos (16:12). Para Agar, a aflita serva de Sarai, isso foi fonte de grande esperança e consolo. Mesmo sob a mão cruel de sua senhora, dava quase para ouvi-la murmurando: “Você não perde por esperar, Sarai”.
O tema prevalente nos versículos 7 a 16 é expresso por Agar no versículo 13: “Tu és Deus que vê”.
O nome do seu filho serviu como recordação da compaixão de Deus pelos aflitos. Literalmente, Ismael significa “Deus ouve”. Mesmo quando é o escolhido de Deus a fonte da aflição, Ele ouve e cuida dos oprimidos. Esta verdade ajudou muito Agar nos anos difíceis que se seguiram.
Nosso texto mostra um dilema muitas vezes enfrentado pelas pessoas de fé, ou seja, “quando devo agir e quando devo esperar?” Saul estava errado quando foi em frente e ofereceu o sacrifício, embora as circunstâncias parecessem exigir uma atitude (1 Samuel 13), pois ele tinha recebido ordem para esperar (1 Samuel 10:8). Sacrificar foi um erro porque Deus o tinha proibido de fazer a tarefa de Samuel. Em Atos, capítulo 12, foi errado esperar, pois os cristãos reunidos deveriam ter agido. Pedro estava na prisão, condenado à morte (12:1-3). Os santos tinham se reunido para orar por ele (versículo 5). Talvez muitos tenham orado por uma morte rápida e indolor. Outros talvez tenham ousado orar por sua libertação. Mas quando Pedro estava à porta, batendo, continuar orando foi um ato de incredulidade. Naquele momento era hora de agir (abrir a porta), não de esperar (em oração).
Mas como podemos saber a diferença entre a hora de agir e a hora de esperar? Creio que Deus nos dá uma porção de princípios em Gênesis 16 para nos ajudar a perceber a diferença entre as duas coisas. Deixe-me sugerir alguns:
(1) Devemos agir quando Deus nos dá claramente a responsabilidade e a autoridade para isso. Deus nunca colocou a responsabilidade de gerar uma criança sobre Sarai ou Abrão. Ele tinha prometido lhes dar um filho (cf. Gênesis 12:1-3; 17:6, 16, 19). Assim como tinha impedido Sarai de conceber (16:2), Deus também iria providenciar o herdeiro. Na minha opinião, nós andamos em terreno perigoso quando “caminhamos pela fé” numa área onde não temos a promessa da presença ou da bênção de Deus, ou onde não temos um princípio ou mandamento no qual basear nossa conduta.
Além disso, não podemos esperar ser bem-sucedidos em qualquer atividade para a qual Deus não nos deu poder para produzir fruto espiritual. Como Paulo esclarece (Gálatas 4:21 e ss), Ismael foi resultado de obra da carne, não do espírito. Isaque foi resultado da atividade divina em Abrão e Sarai. Nenhuma obra de fé é obra da carne. A obra de Deus é aquela realizada por meio da capacitação do Espírito (cf. Gálatas 5:16-26).
(2) Devemos seguir em frente só quando formos motivados pela fé. Sarai parece que se sentiu compelida a agir porque Deus a tinha impedido de ter filhos (cf. 16:2). Apesar das tentativas de vários comentaristas em provar o contrário, o comportamento de Sarai (e Abrão) denuncia seu medo, não sua fé. Paulo é bem claro quando escreve: “tudo o que não provém de fé é pecado” (Romanos 14:23).
Diversas coisas devem nos fazer esperar ou, pelo menos, tomar algumas medidas de precaução. Deixe-me propor alguns fatores que podem sugerir que devemos esperar ao invés de agir.
(a) Devemos pensar antes de “agir”, quando parece que Deus está nos impedido de ter o que buscamos. Esta é uma questão difícil, pois às vezes Deus deseja fortalecer a nossa fé permitindo que tenhamos obstáculos a superar (cf. Êxodo 14:10 e ss; Neemias, por exemplo, 6:1-9). Outras vezes, as barreiras são colocadas para mudar a nossa direção (cf. Atos 16:6-7). Saber a diferença entre os problemas e as proibições requer a sabedoria que Deus nos dá livremente quando a pedimos com fé (Tiago 1:5-6).
(b) Devemos ter muita cautela ao fazer qualquer coisa que apele para os nossos apetites carnais. Pare e pense no que poderia ter feito Abrão seguir as instruções de Sarai. Lembre-se, basicamente ela o estava incentivando a ir para a cama com sua serva (cf. 16:2, 3, 4, 5). Sem dúvida, Agar era jovem e atraente. Você acha que faraó teria dado a Abrão uma serva como parte de um dote se ela não tivesse nenhum atrativo físico? Gestos aparentemente nobres podem esconder muitos motivos carnais. Sugiro que questionemos qualquer atitude que apele para os nossos apetites carnais.
(c) Devemos ficar em dúvida quando nossa principal razão para fazer alguma coisa é aliviar a pressão, em vez de colocar em prática algum princípio. Até onde posso dizer, a única razão para Abrão ter tomado Agar foi para acalmar, e talvez até silenciar, sua esposa. A pressão exercida pelos outros geralmente é uma razão muito fraca para se fazer alguma coisa.
(d) Nunca devemos agir quando nossos métodos não são compatíveis com os nossos objetivos ou com o nosso Deus. Embora o objetivo dos esforços de Abrão e Sarai fosse o nascimento de um filho, um herdeiro, os meios utilizados não foram para glorificar a Deus. É preciso admitir, no entanto, que aqueles meios eram legais e culturalmente aceitáveis. Contudo, parecem estar longe do ideal divino. A união com Agar foi uma tentativa de realizar o trabalho de Deus com metodologia do mundo.
Abrão, como resultado da sua falta de fé, descobriu as dolorosas consequências de tentar ajudar a Deus. Neste sentido, Deus não precisa, e não pode, usar a nossa ajuda. Ele quer trabalhar por meio de nós. Ele tinha o propósito de dar um filho a Abrão e Sarai. A tentativa deles de conseguir um filho sozinhos resultou no conflito entre judeus e árabes ao longo dos séculos.
Quanto a esperar, esta é uma coisa que muita gente acha muito difícil. Temos um pedacinho de plástico que fica nos cutucando para agir ao invés de esperar Deus agir. Ele se chama cartão de crédito. Pra que orar pelo alimento? É só sair para jantar e colocar no MasterCard. O cartão em si não é algo tão ruim, mas com certeza é uma tentação para agir com presunção em vez de esperar o tempo de Deus.
A fé, pelo que podemos ver, é confiar nas promessas de Deus apesar dos nossos problemas, sabendo que com Ele tudo é possível. A falta de fé se concentra nos problemas, supondo que, se Deus não agir dentro do nosso padrão de tempo e dentro das nossas expectativas, precisamos dar a Ele uma mãozinha. A fé crê não apenas que Deus nos dará o que Ele prometeu, mas também que Ele providenciará os meios para fazermos isso, ou Ele mesmo o fará.
Deixe-me fazer mais uma observação. Deus falou com Agar neste capítulo, mas não com Abrão ou Sarai. Aliás, Moisés nos diz que (pelo menos até onde vai o registro histórico) Deus não falou com Abrão durante 13 anos (cf. 17:1). Quando decidimos agir com base nas circunstâncias, Deus talvez só fale conosco por meio das circunstâncias — alta, clara e dolorosamente.
Parece que Abrão preferiu exercer a liderança recebida de Deus por meio da sua esposa, já que ele não questionou suas opiniões ou buscou orientação divina (pelo menos em nossa passagem). Não é interesse que Abrão só tenha sabido qual nome dar a seu filho por intermédio das palavras ditas por Deus a Agar (16:11, cf. versículo 15)? Quando decidimos ser guiados pelos outros ao invés de sermos guiados por Deus, Ele pode nos deixar fazer as coisas do nosso jeito, durante algum tempo. Só que, ai de nós, como esse tempo será solitário! Que falta iremos sentir da Sua companhia e da intimidade com Ele!
Enfeite este texto o quanto quiser, ele ainda mostra que o lar de Abrão era abalado pelas mesmas dificuldades com as quais nos deparamos hoje em dia. Que Deus nos guarde de sermos presunçosos. Que Ele ajude a quem for esposa a não pressionar seu marido para fazer o que ela acha certo. Que Ele ajude a quem for marido a não renunciar à sua responsabilidade, mas a liderar o seu lar.
Passividade não é piedade, nem presunção. Que Deus nos ajude a andar na linha tênue entre ambas.
Uma observação final. Muitas pessoas querem ajudar Deus a salvá-las. Elas querem um sistema de salvação que lhes permita participar do processo de salvação. Amigo, não há nada com que você possa contribuir para a sua salvação. Como ensinam as Escrituras,
… como está escrito: Não há justo, nem um sequer (Romanos 3:10)
Mas todos nós somos como o imundo, e todas as nossas justiças, como trapo da imundícia; todos nós murchamos como a folha, e as nossas iniqüidades, como um vento, nos arrebatam. (Isaías 64:6)
Assim como Abrão não pôde ajudar Deus a produzir um filho pelo esforço humano, você também não pode ajudar Deus a salvar sua alma. A salvação é um dom de Deus, por meio da fé naquilo que Jesus Cristo fez pelos pecadores perdidos.
Porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor. (Romanos 6:23)
Pelo reconhecimento de que você é impotente para agradar a Deus, que Jesus Cristo pagou por seus pecados e lhe provê a sua justiça, você pode ser salvo.
Tradução e Revisão: Mariza Regina de Souza
1 “O Código de Hamurabi permitia que uma sacerdotisa naditum, a qual fosse livre para se casar mas não pudesse ter filhos, dar ao marido uma de suas servas por meio de quem ele pudesse ter filhos: ‘Quando um homem de posição se casou com uma prostituta cultual e esta lhe deu uma de suas servas, com a qual, então, ele tem filhos; se, mais tarde, essa serva reivindicar igualdade com sua senhora por causa dos filhos, sua senhora não poderá vendê-la; ela poderá marcá-la e contá-la entre suas escravas’.a Embora esta cláusula ilustre uma prática comum, ela é menos pertinente do que o costume em Nusi. Um texto diz: ‘Se Gilimninu não puder ter filhos, Gilimninu tomará para Shenninma uma mulher da terra de Lullu (ou seja, uma escrava) como concubina. Neste caso, a própria Gilimninu terá autoridade sobre os descendentes…’b” John Davis, Do Paraíso à Prisão: Estudos em Gênesis (Grand Rapids: Baker Book House, 1975), p. 188. Aqui Davis está citando (a) Pritchard, ANET, p. 172 (parágrafo 149), e (b) Speiser, Gênesis, p. 120.
2 “O sumário feito por Calvino sobre o caso é muito bom: ‘Ambos eram fracos na fé; mas não realmente em relação ao conteúdo da promessa, só quanto ao método que usaram’”. H. C. Leupold, Exposição de Gênesis (Grand Rapids: Baker Book House, 1942), I, p. 493-4.
3 “Quando Abrão ‘dá ouvidos’ (shama’) à ‘voz’ de sua esposa (qol), ele ‘aprova a sugestão de Sarai’. Sem dúvida, o patriarca ficou impressionado pela completa abnegação de Sarai”. (Ibid, p. 496)
4 “A lei 146 do Código de Hamurabi proíbe a concubina de reivindicar igualdade com a esposa, sob pena de rebaixamento à sua antiga condição de escrava. A queixa de Sarai a Abrão reflete o conhecimento desses dois documentos sociais. Sarai exige que Abrão faça alguma coisa sobre o desprezo de Agar. Abrão atribui a Sarai a disciplina de Agar”. Harold G. Stigers, Comentário sobre Gênesis (Grand Rapids: Zondervan, 1976), p. 161.
5 “‘Muitos consideram que Sur’ signifique “muro”, um sentido bastante possível de acordo com o aramaico. Neste episódio, talvez seja o nome de uma série de fortalezas erguidas pelo rei egípcio, possivelmente no istmo de Suez, para manter longe os invasores asiáticos. Neste caso, Agar estava naturalmente no caminho de volta para sua pátria, o Egito”. Leupold, Gênesis, I, p. 500.
6 Mary LaGrand Bouma, Minister’s Wives: The Walking Wounded, Leadership, Winter, 1980, vol. 1., p. 63.
7 “Até certo ponto, este filho de Abrão seria uma sombra, quase uma paródia, de seu pai; seus doze príncipes notáveis em sua época (17:20; 25:13), mas não na história da salvação; sua existência inquieta não uma peregrinação, mas um fim em si mesmo; seu inconformismo um estado da mente, não uma luz para as nações”. Derek Kidner, Gênesis: Introdução e Comentário (Chigago, Inter-Varsity Press, 1967), p. 127.
Uma das maiores tentações que sinto ao pregar toda semana é a compulsão por encontrar coisas novas para dizer no púlpito. Quando isso acontece, preciso me esforçar para reconhecer que isso com frequência não vem de Deus. Eram os pagãos atenienses que gostavam de ouvir as últimas novidades (Atos 17:19). Os apóstolos, por outro lado, dispunham-se a relembrar os cristãos das verdades já ouvidas (cf. 1 Coríntios 4:7; 1 Timóteo 4:6; 2 Timóteo 2:14; 2 Pedro 1:12, 13; 3:1).
A novidade pode ser divertida, mas nem sempre é edificante. Ouçam as sábias palavras da pena de C. S. Lewis. Embora o contexto não seja exatamente o nosso, o princípio permanece o mesmo:
A julgar pela sua prática, bem poucos clérigos anglicanos pensam dessa forma. Eles parecem acreditar que as pessoas podem ser seduzidas a ir à igreja pelas ilustrações e brincadeiras, pela extensão, ou pela simplificação ou complexidade do culto. E talvez um vigário novo e entusiasta consiga criar dentro de sua paróquia um grupo minoritário favorável às suas inovações. Mas eu acho que a maioria não será. Os que ficam — em geral, muitos deixam de frequentar a igreja — simplesmente toleram…
Contudo, toda novidade traz uma coisa consigo. Ela fixa nossa atenção no trabalho em si, fazendo-nos pensar que o culto seja diferente de prestar culto. A questão importante sobre o Graal era: “para que ele serve”? ‘É a louca idolatria que torna o culto maior do que o deus’.
Mas uma coisa ainda pior pode acontecer. A novidade talvez não fixe nossa atenção nem mesmo no culto, mas no oficiante. Vocês sabem o que quero dizer. Por mais que se tente evitá-la, a pergunta “O que será que ele vai fazer agora?” acaba se insinuando. É onde se perde a devoção. Há realmente certa desculpa para o homem que disse: “Quem me dera eles se lembrassem de que a ordem dada a Pedro foi ‘apascenta as minhas ovelhas’, não ‘faça experimentos com meus ratos, ou ensine novos truques a meus cães’”1.
Apesar de haver bem pouco em Gênesis 17 que possa ser novo para nós, precisamos nos lembrar do que “lemos no capítulo anterior do livro”. O que vemos como história antiga, Abrão aprendeu ao longo dos anos, passo a passo. Para ele, muitas coisas ditas no capítulo 17 eram novas e empolgantes. Não poderemos entender sua empolgação e expectativa até “nos colocarmos em seu lugar” por intermédio do texto.
Ao examinar esta passagem, vamos pensar em nós mesmo no lugar de Abrão. Naquela época, ele estava com 99 anos de idade. Vinte e quatro anos antes, ele havia deixado Harã, em obediência ao chamado divino de Gênesis 12:1-3. Depois que ele se separou de Ló e derrotou a coligação dos reis orientais (capítulos 13 e 14), Deus formalizou Sua aliança com ele, informando que seu herdeiro viria do seu próprio corpo (15:4) e fornecendo uma descrição mais exata da terra que ele viria a possuir (15:18-21). Além disso, Abrão também tomou conhecimento do destino de seus descendentes nas várias gerações seguintes (15:12-16).
Treze anos antes da época em que estamos no capítulo 17, Abrão fez uma grande bobagem. Seguindo o conselho de sua esposa, ele tentou produzir o herdeiro prometido por Deus utilizando uma prática comum da sua época, tomando a serva de Sara, Agar, como esposa. Isso só levou à desunião e ao sofrimento de todos os envolvidos. Pelo que podemos dizer, Deus não Se pronunciou até encontrar Agar quando ela estava a caminho do Egito.
Esses treze anos não foram em vão. Eles serviram para ilustrar as consequências de servir a Deus no poder da carne, e de agir com presunção. Eles serviram também para intensificar a impossibilidade de Abrão e Sarai terem um filho deles mesmo. Dessa forma, se uma criança nascesse naquela época, com certeza seria obra de Deus, não de homem. Parece que, à luz desta dificuldade, Abrão veio a crer que Ismael seria sua única esperança como herdeiro.
As palavras de Deus no capítulo 17 quebram o silêncio de 13 anos:
Quando atingiu Abrão a idade de noventa e nove anos, apareceu-lhe o SENHOR e disse-lhe: Eu sou o Deus Todo-Poderoso; anda na minha presença e sê perfeito. Farei uma aliança entre mim e ti e te multiplicarei extraordinariamente. (Gênesis 17:1-2)
Após 13 anos de silêncio, Abrão deve ter ficado muito animado com este encontro com Deus. No passado, Deus tinha apenas falado com ele (12:1) ou aparecido em visão (15:12-17). Aqui, depois de 24 anos, Deus Se revela; Ele aparece a Abrão. Abrão vê Deus pela primeira vez.
Deus Se revela a Abrão de forma muito íntima. Ele também Se manifesta mais plenamente quanto ao Seu caráter e atributos. Ele Se refere a Si mesmo como o “Deus Todo-Poderoso”, El Shaddai. Esta é a primeira vez em que Deus é chamado por este nome. Esta é uma designação que acentua o Seu poder infinito2. Aquilo que Deus tinha determinado há muito tempo, e que agora é definido com mais precisão, dependeria do Seu infinito poder para ser realizado.
Antes, Deus tinha requerido muito pouco de Abrão, exceto que ele partisse (de Ur) e cresse (15:6) na Sua promessa. Agora que a aliança está prestes a ser implementada3, Abrão precisa se portar da forma prescrita por Deus. Ele precisa andar inculpável diante Dele, não no sentido de perfeição4, mas de pureza (15:1). Provavelmente não é sem importância o fato de Deus não ter dado a ele responsabilidades específicas até sua fé se tornar evidente, a fim de que as obras não fossem a base da aliança, mas provenientes dela.
Assim como Abrão ouve Deus referir-Se a Si mesmo por um novo nome, ele também recebe um novo nome, um símbolo do seu destino:
Quanto a mim, será contigo a minha aliança; serás pai de numerosas nações. Abrão já não será o teu nome, e sim Abraão; porque por pai de numerosas nações te constituí. (Gênesis 17:4-5)
O nome Abrão significava “pai elevado” ou “pai exaltado”. Só isso já devia ser um grande embaraço na vida de Abrão, que tinha apenas um filho e era nascido de uma escrava. Agora seu nome é mudado para “pai de uma multidão”. Como ele poderia conviver com um nome desses? Pela graça de Deus, logo ele estaria à altura do seu novo nome.
A maioria de nós já teve a triste experiência de firmar um acordo e depois descobrir que ele tinha bem menos vantagens do que esperávamos e que fomos levados a crer. Com as promessas de Deus, acontece exatamente o oposto. Quanto mais aprendemos sobre elas, mais ricas são as bênçãos encontradas. Deus tinha dito a Abrão que ele seria pai de uma grande nação (12:2); agora Ele diz que, de fato, ele se tornará “pai de numerosas nações” (17:4). Além disso, ele será pai de reis (17:6). El Shaddai promete ser o Deus de Abraão e de seus descendentes (17:7), entre os quais devemos incluir seu descendente espiritual (cf. Gálatas 3:16). A aliança não é apenas entre Abraão e Deus, mas entre Deus e os descendentes de Abraão, para sempre.
No capítulo 17, há um esboço claramente definido das obrigações desta aliança. No versículo quatro, Deus diz “quanto a mim”. No versículo nove, “quanto a você”. No versículo 15, lemos “quanto a Sarai”. Finalmente, no versículo 20, encontramos “quanto a Ismael”. A aliança de Deus é eterna e segura. A alegria das bênçãos da aliança é condicional. Só guardando essas condições o homem pode desfrutar das bênçãos de Deus prometidas na aliança.
A obrigação que pesa sobre Abraão e seus descendentes é que sejam circuncidados:
Esta é a minha aliança, que guardareis entre mim e vós e a tua descendência: todo macho entre vós será circuncidado. (Gênesis 17:10)
De certa forma, a circuncisão parece ser uma coisa bem simples. Como é que Deus pode requerer só isso de Abraão? É preciso lembrar o que Deus disse a ele: “anda na minha presença e sê perfeito” (versículo 1). A circuncisão não é tudo o que Deus requer de Abraão — ela é, antes de tudo, símbolo de seu relacionamento com Deus, e indica como deve ser sua conduta moral. A circuncisão, para Abraão, significa que ele está ligado a Deus nesta aliança. Ele anseia por suas bênçãos, mas também se submete às suas cláusulas.
A circuncisão é o único ato cirúrgico desse tipo benéfico à raça humana. Mais do que seus benefícios físicos, ela significa também requisitos espirituais. Simbolicamente, a carne é posta de lado. Abrão adquiriu um filho com o uso de seu órgão reprodutor. Agora esse órgão é oferecido a Deus. Nenhum israelita poderia praticar o ato sexual sem se lembrar de que pertencia a Deus. Os filhos que eram gerados deviam ser criados de acordo com a Palavra de Deus. A circuncisão dos filhos ainda bebês não os salvava, mas era evidência da fé de seus pais no Deus de Abraão. Quando o menino crescia, sua circuncisão se tornava um sinal de que ele era diferente dos outros garotos — ele pertencia a Deus. A circuncisão não o salvava, mas era o sinal que o lembraria para sempre dos requisitos de Deus para desfrutar dos benefícios da Sua aliança. É possível que a circuncisão dos machos indicasse apenas a responsabilidade especial designada por Deus ao pai (talvez tivesse algum significado especial para Abraão após o incidente com Agar). Alguns ressaltam as semelhanças entre o batismo e a circuncisão e, com certeza, existem algumas (cf. Colossenses 2:10-12). Ambos representam uma união com Deus já ocorrida. Ambos requerem deixar de lado as coisas passadas e viver uma vida agradável a Deus (cf. Romanos 6:1 e ss; Colossenses 3:1-11).
No entanto, há também diferenças óbvias que precisam ser consideradas. O batismo é para crentes adultos, como indicação da sua fé em Deus (Atos 16:33; 19:1-7)5. A circuncisão era realizada em bebês aos oito dias de vida e mostrava a fé dos pais. O batismo é um sinal público, a circuncisão um sinal particular. O batismo é para todos os crentes, homens e mulheres, a circuncisão era apenas para os homens. A circuncisão era um sinal da aliança com Abraão; o batismo não é o sinal da Nova Aliança, e sim a Ceia do Senhor (cf. Lucas 22:20).
Até aqui, Deus tinha prometido um filho a Abraão, mas não tinha indicado especificamente a mãe da criança. Abraão foi convencido por Sarai, e pelas circunstâncias, de que devia ser Agar. Parece que ele ainda considera essa possibilidade. Que choque devem ter sido para ele as palavras de Deus, e que comentário do capítulo 16!
Disse também Deus a Abraão: A Sarai, tua mulher, já não lhe chamarás Sarai, porém Sara. Abençoá-la-ei e dela te darei um filho; sim, eu a abençoarei, e ela se tornará nações; reis de povos procederão dela. (Gênesis 17:15-16).
Aquilo que Abraão devia ter inicialmente previsto, mas que a realidade parecia negar, era que Sara seria a mãe de seu filho e herdeiro. A promessa de um herdeiro agora é restrita a Abraão e Sarai.
A reação de Abraão é bem intrigante:
Então, se prostrou Abraão, rosto em terra, e se riu, e disse consigo: A um homem de cem anos há de nascer um filho? Dará à luz Sara com seus noventa anos?
Antes de tentarmos entender se a reação de Abraão é compatível com sua fé, deixe-me observar que aquilo que está registrado não é dito para Deus. Aquela foi uma reação íntima e imediata de Abraão ao anúncio divino. Pessoalmente, não vejo essa reação como um riso de prazer, mas de incredulidade. A impossibilidade de uma coisa como aquela acontecer foi a causa do acesso de Abraão. A fim de sermos bastante justos nesse assunto, acho que sua reação é exatamente igual a que teríamos. Ao mesmo tempo, não gostaria de sugerir total incredulidade da sua parte. A promessa era simplesmente inacreditável — muita coisa para ser digerida de uma só vez. Rir muitas vezes é a reação a coisas que nos pegam desprevenidos.
As palavras de Abraão a Deus também refletem sua incapacidade de entender totalmente o que acabara de ser prometido: “Tomara que viva Ismael diante de ti” (Gênesis 17:18).
Se Abraão não consegue acreditar que Sara lhe dará um filho, então seu pedido é facilmente explicável. Ele diz a Deus que não vê nenhum problema em Ismael ser seu herdeiro. Não é preciso nenhum milagre, como Sara ter um filho dele, pois já há um menino na família. Além disso, o amor de Abraão por aquele garoto é novamente demonstrado. Por que tem de haver outro filho, principalmente quando um conflito parece inevitável? Deus não pode abençoar Ismael em vez de providenciar outro descendente?
Mas os planos de Deus não seriam mudados. Deus Se propôs a dar um filho a Abraão e Sara e, por meio dele, realizar Suas promessas. Nenhum substituto será satisfatório, especialmente se for resultado de esforço próprio. Sara vai mesmo gerar um filho, e as bênçãos espirituais virão por meio dele:
De fato, Sara, tua mulher, te dará um filho, e lhe chamarás Isaque; estabelecerei com ele a minha aliança, aliança perpétua para a sua descendência. (Gênesis 17:19)
Embora as bênçãos espirituais devam vir por meio de Isaque, Deus não deixará passar despercebido o amor de Abraão por seu filho, nem Se esquecerá da Sua própria promessa a Agar (16:10 e ss). Ismael se tornará uma grande nação, e dele sairão 12 príncipes, mas as bênçãos espirituais só podem vir por meio de Isaque. A doutrina da divina eleição deve ser vista nesta promessa.
Os versículos 22 a 27 ressaltam o papel importante da obediência na vida cristã. A nossa obediência é preciosa para Deus. É por isso que Ele registra a circuncisão de Abraão, Ismael e de toda a casa de Abraão. Obediência é sempre a resposta de fé à ordem divina.
Embora tenha havido um lapso de tempo de 13 anos entre o nascimento de Ismael e esta aparição de Deus, passam-se apenas três meses entre a circuncisão de Abraão e a concepção de Isaque.
Há pouca coisa nova nesta passagem para quem costuma ler a Bíblia. No entanto, não podemos nos esquecer de que boa parte do que foi dito era nova para Abraão.
A nova revelação é simplesmente um esclarecimento da promessa de Gênesis 12:1-3. De repente me ocorreu, ao estudar esta passagem, que a vida inteira de Abraão foi focada na promessa de Gênesis 12:1-3. Ele levou toda a vida para começar a compreender uma promessa que, a princípio, foi registrada em apenas três versículos. O auge do seu crescimento na fé pode ser visto na sua prontidão em sacrificar o próprio filho (capítulo 22). Para Abraão, esse foi o teste conclusivo da fé na promessa de Deus de abençoá-lo por meio de seus descendentes.
Se Abraão levou toda uma vida para entender três versículos das Escrituras, quanto tempo será que levaremos para compreender a profundidade da riqueza da graça de Deus (cf. Romanos 11:33-36)?
Esta passagem me ajuda a lidar com o desejo de aprender “novas” verdades para a minha própria vida e para a minha pregação. Deus não está tão interessado em que conheçamos novas verdades quanto está em nos fazer compreender as poucas grandes verdades da Sua Palavra. Como é fácil achar que já aprendemos uma coisa, só para passarmos para outra. Na vida de Abraão, Deus revelou uma verdade, depois continuou voltando a ela, testando-o, e então revelando mais acerca daquilo que Abraão já conhecia. Quantos de nós pode dizer que já começou a compreender a doutrina da graça de Deus ou da expiação? Quem estaria disposto a afirmar que Abraão já conhecia todas as suas implicações? Creio que, como ele, nós podemos esperar que Deus esteja trabalhando na nossa vida, expandindo e esclarecendo as poucas verdades centrais do cristianismo.
Quanto mais estudo a vida de Abraão, mais vejo o crescimento de seu relacionamento com Deus. Ele passou a aprender cada vez mais sobre o Deus que o chamou. Ele passou a compreender cada vez mais profundamente o significado da Sua Palavra. E assim, invariavelmente, ele passou a se aproximar cada vez mais de Deus. Abraão não cresceu apenas no conhecimento, mas também na sua intimidade com Deus. No princípio, Deus apenas falou com ele (12:1). Vinte e quatro anos depois, Ele próprio Se revelou a Abraão e conversou com ele. Abraão, pela primeira vez, comunicou-se com Deus e interagiu com Ele. Tempos depois, ele seria chamado de amigo de Deus.
Você e eu não podemos ter um relacionamento estático com Deus. Não, se somos realmente nascidos de novo. Deus não permitirá que isso aconteça. Talvez Ele permita que venhamos a falhar, assim como Abrão muitas vezes falhou. Talvez Ele nos deixe por conta própria, como fez com Abrão, ficando em silêncio durante treze anos. No entanto, mais cedo ou mais tarde Ele entrará na nossa vida letárgica e nos aproximará Dele mesmo. Na vida cristã, tudo se resume a isso.
Tradução: Mariza Regina de Souza
1 C. S. Lewis, Letters to Malcom: Chiefly on Prayer. New York: Harcourt, Brace and World, 1964, p. 4-5 (C. S. Lewis, Oração: Cartas a Malcolm, São Paulo, Ed. Vida)
2 “Este era um novo título de Deus (em hebraico: El Shaddai). A ideia principal parece ser a de poder e capacidade, e a melhor interpretação é pela expressão ‘o Deus Poderoso’, não sendo necessário à palavra o adicional ‘Todo’. Esta ênfase especial no poder de Deus era extremamente apropriada para a nova mensagem que ia ser transmitida”. W. H. Grifith Thomas, Gênesis: Comentário Devocional (Grand Rapids: Wm Eerdmans, 1946), p. 154-154.
3 A aliança tinha sido formalizada no capítulo 15. Aqui, no capítulo 17, a implementação da aliança é mencionada no versículo dois. Por isso, os tradutores da NASV traduzem a palavra (literalmente ‘dar’) como estabelecer (em português, a NVI).
4 A palavra perfeito, ou inculpável, no versículo um não implica necessariamente em perfeição, mas em integridade, cf. nota à margem na NASV.
5 Alguns usam a passagem de Atos 16 como texto de prova para o batismo infantil, mas não pode ser assim. Todos os que eram da família do carcereiro ouviram o evangelho (16:32); todos creram (16:34); todos foram batizados (16:33); todos se regozijaram (16:34). Todos os que foram batizados eram eles mesmos crentes, assim como o carcereiro.
Cresci numa região onde havia muitos cervos e, quando jovem, eu gostava de caçar. Nós, pessoas do campo, sempre ficávamos incomodados com a gente da cidade que vinha para atirar em nossos cervos, aqueles que tinham se alimentado em nossos pomares e mordiscado as nossas hortas durante o ano. Certa vez ouvi falar de um malandro que não sabia quase nada de caça e parou em um armazém local para perguntar como um veado se parecia. Se você não acredita, eu ouvi isso de um fazendeiro que estava tão preocupado que seu gado pudesse ser atingido durante a temporada de caça, que pintou a palavra VACA em letras garrafais em suas reses.
Uma vaca ser morta por um cara da cidade pode ser meio patético, mas não é o fim do mundo. Muitos cristãos, no entanto, estão em busca de maturidade, mas não sabem quais são suas marcas. Alguns acreditam que a maturidade esteja no conhecimento, enquanto outros a equiparam com experiência pessoal ou com obedecer algum tipo de regra ou usar algum método. Embora conhecimento e experiência sejam importantes, essas coisas por si só não são características pelas quais devemos lutar.
Em nosso estudo da vida de Abraão, no capítulo 16 nós o encontramos numa maré bem baixa. Ali, Abrão, pressionado por sua esposa, teve um vacilo na fé e tentou obter por meio de esforço humano o que Deus havia prometido. Uma criança nasceu de Agar, mas não o filho da promessa. O pecado de Abrão só resultou em dor de cabeça para ele, Sarai e Agar. Até onde a Bíblia nos diz, passaram-se treze anos até Deus falar com ele novamente. E então, no capítulo 17, Deus quebra o silêncio e reitera Sua aliança com Abraão, bem como a promessa do nascimento de um filho por meio de Sara dentro de um ano.
Em contraste com o capítulo 16, o capítulo 18 é o ponto alto da vida de Abraão. Embora sua fé não fosse infalível, ela se tornou mais forte. Suas atitudes e ações servem como exemplo de fé madura. A descrição da sua fé no capítulo 18 estabelece o cenário para o fracasso de Ló no capítulo 19, cujas sementes foram plantadas no capítulo 13. Essa história vamos guardar para a próxima lição, mas o contraste entre os dois homens nestes dois capítulos é evidente.
Portanto, no capítulo 18 vamos dar uma olhada mais de perto em Abraão e nas características da sua maturidade.
Embora esta não fosse a primeira aparição de nosso Senhor a Abraão, com certeza foi única. Antes, Deus tinha falado com ele diretamente (12:1-3; 13:14-17), por meio de um porta-voz (14:19-20), por uma visão (15:1 e ss) e em uma aparição, a qual talvez tenha sido acompanhada de glória e esplendor (17:1 e ss). Aqui, Deus veio a Abraão na forma de um homem comum, acompanhado por dois outros homens, os quais depois são identificados como seres angélicos (compare 18:2, 22; 19:1). Não se sabe o que poderia distinguir esses três “viajantes” de quaisquer outros:
Apareceu o SENHOR a Abraão nos carvalhais de Manre, quando ele estava assentado à entrada da tenda, no maior calor do dia. Levantou ele os olhos, olhou, e eis três homens de pé em frente dele. (Gênesis 18:1-2a)
Abraão, à típica maneira oriental, estava assentado à porta da sua tenda no maior calor do dia. Quem, como eu, vive em Dallas (Texas, EUA), após quarenta dias de temperatura na casa dos 37º C, ou mais, conhece a moleza resultante do sol do meio-dia. Esse horário tornava a necessidade de ser hospitaleiro ainda maior, pois os visitantes deviam estar sedentos e exaustos por causa do calor. A hospitalidade de Abraão ia ser colocada à prova, pois sua “siesta” precisava ser interrompida para ele poder atender suas visitas.
Mesmo que tal hospitalidade seja parte da cultura oriental, o cuidado de Abraão no desempenho da sua tarefa foi evidente:
Vendo-os, correu da porta da tenda ao seu encontro, prostrou-se em terra e disse: Senhor meu, se acho mercê em tua presença, rogo-te que não passes do teu servo; traga-se um pouco de água, lavai os pés e repousai debaixo desta árvore; trarei um bocado de pão; refazei as vossas forças, visto que chegastes até vosso servo; depois, seguireis avante. Responderam: Faze como disseste. Apressou-se, pois, Abraão para a tenda de Sara e lhe disse: Amassa depressa três medidas de flor de farinha e faze pão assado ao borralho. Abraão, por sua vez, correu ao gado, tomou um novilho, tenro e bom, e deu-o ao criado, que se apressou em prepará-lo. Tomou também coalhada e leite e o novilho que mandara preparar e pôs tudo diante deles; e permaneceu de pé junto a eles debaixo da árvore; e eles comeram. (Gênesis 18:2b-8)
Ele não foi descuidado nem negligente no cumprimento do seu dever. Ele reduziu ao máximo as provisões necessárias e as dificuldades para prepará-las — um pouco de água, um bocado de pão, um pequeno descanso e um momento para lavar os pés. No entanto, a refeição servida foi simplesmente suntuosa. Grande quantidade de pão foi feita na hora1, um novilho escolhido a dedo foi abatido e preparado, além de coalhada e leite. Esta não era, de forma alguma, uma refeição simples! E Abraão recusou-se a se sentar com seus convidados, ficando em pé para servi-los2.
Qualquer um ficaria feliz em preparar um banquete como aquele se soubesse a identidade de seus convidados; mas, ao que tudo indica, Abraão, naquele momento, não sabia. Sem dúvida, era sobre isso que o escritor aos Hebreus falava quando escreveu:
Não negligencieis a hospitalidade, pois alguns, praticando-a, sem o saber acolheram anjos. (Hebreus 13:2)
Mas que cena deve ter sido! Abraão, em pé, servindo seus convidados celestiais sem sequer saber sua identidade. Ao mesmo tempo, um pouco além e mais abaixo, as cidades de Sodoma e Gomorra, com suas festas e orgias, gozava o último dia da temporada de pecado, e Ló, em algum lugar por lá, ainda não sabia o que lhe reservava aquele dia.
A Promessa de Deus Confirmada, Embora Questionada (18:9-15)
Em lugar algum é dito em que momento ocorreu a Abraão que seus visitantes não fossem deste mundo; no entanto, pelo versículo 27 sabemos que este era um fato conhecido.
Creio que a promessa reiterada nos versículos 9 a 15 determinou a identidade daqueles homens quando os ligou à revelação do capítulo 17.
Então, lhe perguntaram: Sara, tua mulher, onde está? Ele respondeu: Está aí na tenda. Disse um deles: Certamente voltarei a ti, daqui a um ano; e Sara, tua mulher, dará à luz um filho. Sara o estava escutando, à porta da tenda, atrás dele. Abraão e Sara eram já velhos, avançados em idade; e a Sara já lhe havia cessado o costume das mulheres. Riu-se, pois, Sara no seu íntimo, dizendo consigo mesma: Depois de velha, e velho também o meu senhor, terei ainda prazer? Disse o SENHOR a Abraão: Por que se riu Sara, dizendo: Será verdade que darei ainda à luz, sendo velha? Acaso, para o SENHOR há coisa demasiadamente difícil? Daqui a um ano, neste mesmo tempo, voltarei a ti, e Sara terá um filho. Então, Sara, receosa, o negou, dizendo: Não me ri. Ele, porém, disse: Não é assim, é certo que riste. (Gênesis 18:9-15)
Era costume da época, e ainda é em algumas culturas, as mulheres não serem vistas nem ouvidas enquanto convidados do sexo masculino eram recebidos. Por isso, Sara preparou o pão longe da vista dos homens (cf. versículo 6); depois permaneceu dentro da tenda enquanto eles comiam. Embora ela se mantivesse cuidadosamente fora de vista, sua curiosidade falou mais alto. Talvez ela tenha espiado por entre as dobras da tenda, embora isso não seja afirmado em parte alguma. No entanto, ela realmente estava com o ouvido à porta, ansiosa para escutar a conversa lá fora. Duvido que qualquer um de nós também consiga resistir a essa tentação.
Quando perguntaram a Abraão onde Sara estava, ele respondeu que ela estava dentro da tenda. O Senhor, então, assegurou-lhe que dali a um ano ela teria um filho. A essência desta promessa pouco difere da promessa anterior, conforme registrado no capítulo 17 (versículos 19, 21). Para Abraão, isso deve ter resolvido a questão da identidade de seus visitantes.
Ao que parece, ou ele deixou de contar a promessa anterior a Sara ou não conseguiu convencê-la da sua exatidão. Creio que as palavras de nosso Senhor foram ditas mais para o benefício de Sara do que para o de Abraão. Era vital que ela, também, tivesse fé na promessa de Deus.
A reação de Sara foi quase a mesma do marido:
Então, se prostrou Abraão, rosto em terra, e se riu, e disse consigo: A um homem de cem anos há de nascer um filho? Dará à luz Sara com seus noventa anos? (Gênesis 17:17)
Riu-se, pois, Sara no seu íntimo, dizendo consigo mesma: Depois de velha, e velho também o meu senhor, terei ainda prazer? (Gênesis 18:12)
Humanamente falando, um filho estava fora de questão, tanto para Abraão quanto para Sara. A risada de ambos, creio, foi uma combinação de surpresa, choque, exultação e incredulidade. Como isso poderia suceder? Todavia, mesmo num momento tão estranho, Sara pensou em seu marido com respeito3. Ficamos nos perguntando se a risada de Sara não foi ouvida fora da tenda. O Onisciente teria percebido, mas isso não seria necessário.
Observe que a suave repreensão foi dirigida, inicialmente, a Abraão não a Sara: “Disse o SENHOR a Abraão: Por que se riu Sara…” (Gênesis 18:13).
Será que Abraão, deliberadamente, tinha escondido dela a promessa de Deus? Será que sua fé era tão fraca que ele não podia nem convencer a esposa? De alguma forma ele teve de prestar contas pela reação de Sara. O mais interessante é que a reação dela espelhava a reação dele. Ele deu a ela o exemplo.
As palavras ditas pelo Senhor soam tão fortes para os cristãos da nossa época quanto soaram para Abraão: “Acaso, para o SENHOR há coisa demasiadamente difícil?” (Gênesis 18:14a).
Eis uma questão fundamental. A única razão para tal desconfiança é não conseguir entender a extensão da capacidade de Deus de operar em nós e por meio de nós.
O outro lado da moeda é: se a questão de ter um filho não fosse impossível, a glória de tal milagre não seria dada a Deus. A demora no nascimento de Isaque foi intencionada tanto para tornar necessária a fé de Abraão e Sara, quanto para nutri-la.
Além de tranquilizar Abraão e (talvez) informar Sara sobre o nascimento do filho prometido, as palavras do Senhor nos versículos 10 e 14 serviram para confirmar a identidade do terceiro visitante como o próprio Senhor. No capítulo 17, Deus tinha prometido um filho a Abraão, por meio de Sara, falando na primeira pessoa (17:15-16, 19, 21). No capítulo 18, a promessa também é confirmada na primeira pessoa (versículos 10 e 14). Além disso, aquele “visitante” foi capaz de saber os pensamentos íntimos de Sara quando ela se riu dentro da tenda (versículo 13). Naquele momento, não restaram mais dúvidas acerca da identidade daquela Pessoa e de Seus companheiros de viagem.
Sara parece ter saído da tenda quando Abraão foi questionado a respeito da sua desconfiança. Temendo, ela negou ter rido consigo mesma. Curiosamente, ela não negou os pensamentos denunciados pelo Senhor. Sua negação foi logo tachada como falsa.
A hospitalidade de Abraão foi um ato magnífico de generosidade cristã, mas não foi (em minha opinião) a mais elevada expressão de serviço cristão neste capítulo. O ponto alto da sua vida espiritual se encontra na intercessão junto ao Senhor pela vida dos justos de Sodoma.
Algumas pessoas podem concluir que a preservação dos justos foi resultado da oração fervorosa de Abraão. Não penso assim, por mais nobre que tenham sido seus esforços. Creio que Deus propositadamente revelou Sua intenção de julgar aquelas cidades a fim de Abraão poder interceder por elas. Creio que a narrativa irá sustentar minha posição.
O Senhor e os dois anjos seguiram para Sodoma, escoltados em parte do caminho por Abraão. Parece que o Senhor havia se voltado para os dois anjos quando perguntou, quase de forma retórica:
Ocultarei a Abraão o que estou para fazer, visto que Abraão certamente virá a ser uma grande e poderosa nação, e nele serão benditas todas as nações da terra? Porque eu o escolhi para que ordene a seus filhos e a sua casa depois dele, a fim de que guardem o caminho do SENHOR e pratiquem a justiça e o juízo; para que o SENHOR faça vir sobre Abraão o que tem falado a seu respeito. (Gênesis 17:17b-19)
A intimidade da relação entre Deus e Abraão serviu como motivação para a revelação de Deus sobre os propósitos relacionados à Sodoma. Além disso, a base desse relacionamento encontrava-se na aliança abraâmica. No versículo 19 é acentuada a necessidade da fé professada por Abraão ser mantida e transmitida por seus descendentes4. Embora os propósitos de Deus sejam realizados, Seu povo é responsável por guardar Seus mandamentos.
Em contraposição à fidelidade dos descendentes de Abraão está a perversidade de Sodoma e Gomorra.
Disse mais o SENHOR: Com efeito, o clamor de Sodoma e Gomorra tem-se multiplicado, e o seu pecado se tem agravado muito. Descerei e verei se, de fato, o que têm praticado corresponde a esse clamor que é vindo até mim; e, se assim não é, sabê-lo-ei. (Gênesis 18:20-21)
Os versículos 20 e 21 retratam de forma dramática o pecado de Sodoma e a justa reação de um Deus santo. O pecado da cidade é tão grande que praticamente clama aos céus por retribuição (versículo 20). O interesse pessoal e a atenção de Deus são descritos como “descer”5 para tratar do assunto. Isso não significa que o texto esteja diminuindo a onisciência de Deus, pois Ele sabe de todas as coisas. Deus não está “descendo” para saber dos fatos, mas para cuidar pessoalmente deles e corrigir o problema. Foi assim que Abraão compreendeu que Deus ia destruir a cidade, embora isso não seja afirmado de modo específico.
Os dois anjos foram para Sodoma e deixaram nosso Senhor e Abraão a sós observando a cidade do alto (cf. 19:27,28). Mesmo falando com reverência, Abraão manifestou diante de Deus uma ousadia sem precedentes.
E, aproximando-se a ele, disse: Destruirás o justo com o ímpio? Se houver, porventura, cinquenta justos na cidade, destruirás ainda assim e não pouparás o lugar por amor dos cinquenta justos que nela se encontram? Longe de ti o fazeres tal coisa, matares o justo com o ímpio, como se o justo fosse igual ao ímpio; longe de ti. Não fará justiça o Juiz de toda a terra? (Gênesis 18:23-25)
Sem dúvida, a principal preocupação de Abraão era com Ló e sua família. Embora isso não esteja expresso, está implícito (19:27-29). Seu apelo tinha como base a justiça de Deus. A justiça não iria permitir que o justo sofresse o castigo devido ao ímpio (versículo 25). Abraão apelou para Deus poupar Sodoma a fim de poupar Ló6, não tanto para salvar a cidade ou os ímpios. Todavia, é possível que ele tivesse a esperança de que Ló fosse poupado junto com os ímpios a fim de que estes pudessem chegar à fé em Deus no devido tempo.
É preciso reconhecer que Abraão forçou um pouco a barra, mas não creio que tenha sido por isso que Deus garantiu a ele a concessão do seu pedido.
O fundamento da abordagem de Abraão era que Deus certamente, em justiça, não poderia tratar o justo e o ímpio de igual forma. O justo não merecia perecer junto com o ímpio. Por isso, o pedido feito foi para poupar o ímpio e o justo, caso fosse encontrado um número suficiente de justos. Aceito o pedido, teve início a barganha sobre quantos justos seriam necessários para salvar a cidade.
Deus concordou em poupar a cidade caso 50 justos fossem encontrados (versículo 26). Abraão deve ter desconfiado que tal número não pudesse ser alcançado, por isso, começou a pleitear uma quantidade menor.
Disse mais Abraão: Eis que me atrevo a falar ao Senhor, eu que sou pó e cinza. Na hipótese de faltarem cinco para cinquenta justos, destruirás por isso toda a cidade? Ele respondeu: Não a destruirei se eu achar ali quarenta e cinco. (Gênesis 18:27-28)
Abraão foi muito eloquente nestes versículos. Ele tinha recebido uma promessa acerca de 50 justos. A questão agora era se esse número era fixo ou não. Ele fez o teste diminuindo cinco dos cinquenta. Repare que ele apresentou o caso de tal forma que a destruição da cidade com 45 justos condenaria todos eles pela ausência de cinco cidadãos justos. Pela falta de cinco, quarenta e cinco seriam destruídos. Deus atendeu seu pedido, mas não devido à habilidade oratória de Abraão.
A partir dali, Abraão sentiu-se encorajado a tentar reduzir ainda mais o número mínimo de justos necessários para poupar Sodoma. Primeiro foram 40, depois 30, depois 20 e, finalmente, 10. Nesse ponto, quase soltamos um suspiro de alívio, temendo que Deus perca a paciência com ele. Pessoalmente, creio que o coração de Deus ficou enternecido com a compaixão e o cuidado demonstrados por Abraão. Aquela não era uma petição egoísta, mas uma intercessão por outras pessoas.
Por que, então, Abraão parou em dez? Por que não continuou até cinco, ou até mesmo um? Alguns pensam que ele não ousou pressionar Deus ainda mais. Pode ser, mas não creio que ele teria parado se não tivesse certeza de que Ló e sua família estavam a salvo da ira de Deus.
O número dez devia proteger Ló com alguma margem de segurança. Afinal de contas, pelo visto, só a família dele já era grande o suficiente para atingir esse número. Ló e sua esposa, duas filhas solteiras, suas filhas casadas e seus maridos e, quem sabe, algum filho (cf. Gênesis 19:12); dez justos certamente podiam ser encontrados. Abraão parecia satisfeito, e talvez outras pessoas também tivessem chegado à fé pelo testemunho de Ló.
No entanto, como somos informados no capítulo 19, as esperanças de Abraão eram maiores que a realidade. Isso seria uma tragédia, não fosse uma grande verdade divina: a graça de Deus sempre excede as nossas expectativas. Numa análise final, só havia três justos em Sodoma: Ló e suas duas filhas. Alguns podem questionar a retidão das filhas de Ló, devido ao seu comportamento no capítulo seguinte. Ainda assim, Deus lembrou-se do pedido de Abraão. Embora não tenha poupado a cidade de Sodoma, Deus poupou os justos. Ele é capaz e Se dispõe a fazer muito mais do que pedimos ou pensamos, como ensinam as Escrituras (cf. Efésios 3:20).
Esta passagem nos dá uma visão melhor da questão da maturidade cristã. Examinando mais uma vez estes versículos, muitos sinais de maturidade parecem emergir do texto.
(1) O cristão maduro se torna menos dependente das manifestações espetaculares de Deus e mais envolvido em íntima comunhão diária com Ele. Anteriormente, Deus tinha Se revelado a Abraão com mais esplendor e glória. Desta vez Deus não teria sido reconhecido não fosse o prévio conhecimento sobre Ele e os olhos da fé. Deus foi reconhecido pelas Suas promessas, pela Sua palavra, não por uma presença espetacular ou cheia de esplendor.
Será que pode haver comunhão mais íntima do que partilhar uma refeição com Deus?
Chegada a hora, pôs-se Jesus à mesa, e com ele os apóstolos. E disse-lhes: Tenho desejado ansiosamente comer convosco esta Páscoa, antes do meu sofrimento. (Lucas 22:14-15).
E aconteceu que, quando estavam à mesa, tomando ele o pão, abençoou-o e, tendo-o partido, lhes deu; então, se lhes abriram os olhos, e o reconheceram; mas ele desapareceu da presença deles. (Lucas 24:30-31)
Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele, e ele, comigo. (Apocalipse 3:20)
Não é admirável que um dos pontos altos da semana do cristão seja a comunhão com o Senhor à Sua mesa? (1 Coríntios 11:23-26). Nem sempre devemos buscar a Deus de forma espetacular, mas sim nas coisas mais rotineiras da vida (1 Reis 19:11-14). Isso é sinal de maturidade.
Creio que um casamento ilustra bem este ponto. Quando encontramos “a mulher dos nossos sonhos”, queremos levá-la ao melhor restaurante ou fazer alguma coisa empolgante. Mais cedo ou mais tarde descobrimos que sentimos o mesmo prazer andando de mãos dadas no parque ou sentados na varanda. A emoção não está no lugar ou na atividade, mas na intimidade compartilhada por duas pessoas que se amam em tudo o que fazem. Com a maturidade cristã é a mesma coisa.
(2) A maturidade cristã desloca a nossa atenção de nós mesmos para os outros. Ló era alguém que estava sempre pensando em si mesmo. Os melhores momentos de Abraão neste capítulo são empregados em servir aos outros: primeiro na hospitalidade oferecida àqueles “estranhos”, depois na intercessão por Sodoma. O amor de Deus deve ser refletido na preocupação com os outros (cf. Mateus 23:37-39).
(3) A maturidade cristã equilibra atividade e passividade. Anteriormente neste estudo de Gênesis, havíamos falado sobre o problema de quando agir e quando esperar. Há tempo para ser ativo e há tempo para ser passivo. Abraão não deveria ter ido ao Egito quando a fome chegou a Canaã. Abraão não deveria ter armado um plano para proteger sua vida com uma mentira. Abraão foi passivo quando concordou com o plano de Sara para ter um filho.
Nos versículos 1 a 8, Abraão foi ativo, oferecendo hospitalidade a três estranhos, e agiu certo. Aquela era uma coisa que ele podia e devia fazer. Quanto a Sodoma, algumas pessoas teriam a tendência de serem passivas. Deus já tinha falado; a cidade ia ser destruída; o que Abraão podia fazer? Ele podia fazer o que eu e você podemos fazer quando não há mais nada a fazer — orar. Nada está além da capacidade de realização de Deus (18:14). Se Abraão fez sua súplica de acordo com a vontade e o caráter de Deus, nada poderia ser impossível. Quando alguma situação está fora do nosso controle, não está fora do controle de Deus. Cristãos maduros são aqueles que não deixam de suplicar a Deus mesmo quando as coisas parecem sombrias.
Isso, naturalmente, não quer dizer que devemos orar apenas em situações impossíveis. Devemos orar sempre. No entanto, cristãos maduros oram na confiança de que Deus irá agir de acordo com Seu caráter, e com poder infinito, e em resposta às nossas petições. Quando somos impotentes, não ficamos desesperados, pois muito pode, por sua eficácia, a súplica do justo (cf. Tiago 5:16).
(4) Cristãos maduros veem as profecias como incentivo para orar e servir com diligência, não como questão de mera curiosidade intelectual. Hoje em dia é muito comum cristãos ficarem fascinados por profecias como se isso fosse uma questão mais para agradar o intelecto do que para tocar o coração. Os propósitos proféticos de Deus são dados para fazer os homens agir. Esta é a resposta do cristão maduro (cf. Daniel 9; 2 Pedro 3:11-12).
(5) Cristãos maduros têm clara compreensão destas duas verdades eternas: a grandeza de Deus e a bondade de Deus. Estas verdades são o embasamento do capítulo 18 de Gênesis. A primeira se encontra na pergunta de nosso Senhor no versículo 14: “Acaso, para o SENHOR há coisa demasiadamente difícil”? A segunda é base da intercessão de Abraão no versículo 25: “Não fará justiça o Juiz de toda a terra”?
A primeira verdade reprova toda preocupação e falta de oração, pois “para Deus não haverá impossíveis” (Lucas 1:37). Toda vez que nos preocupamos com o futuro, deixamos de lado a verdade de que Deus é todo-poderoso.
A segunda verdade provê uma resposta para os problemas mais angustiantes e desconcertantes da vida. O Deus que é todo-poderoso também é amoroso, bondoso, justo, misericordioso, e assim por diante. Poder infinito age em conjunto com pureza infinita.
Nosso primeiro filho, e único menino, morreu com apenas três meses e meio de idade. Muitos anos depois, quando eu estava no seminário, durante uma aula surgiu a pergunta sobre o que acontece com quem morre ainda na infância. Diversas passagens da Bíblia foram sugeridas, mas alguns acharam que elas não eram suficientes. Finalmente, compartilhei a segurança que encontramos quando perdemos nosso garotinho. Embora fosse reconfortante termos as Escrituras para nos consolar, não precisávamos de textos específicos para responder às nossas perguntas. Deus é infinitamente maior do que é revelado sobre Ele nas Escrituras. O Juiz de toda a terra fará justiça. Essa era a nossa confiança. Você já perdeu alguém querido sobre cuja salvação não tinha certeza? Existem problemas e situações que você não consegue entender? Então, descanse nisto: nosso Deus é todo-poderoso; nada é impossível para Ele. Além disso, esse poder é sempre empregado com justiça, verdade, misericórdia e amor. Que consolo! Que incentivo para orar!
(6) Finalmente, a maturidade cristã é demonstrada quando nossos pensamentos são parecidos com os pensamentos de Deus. Abraão não mudou a opinião de Deus; ele a demonstrou. Deus não alterou repentinamente Seus propósitos; Ele os informou a Abraão para Abraão poder evidenciar a Sua misericórdia e justiça e compaixão. A revelação do que Deus ia fazer com Sodoma e Gomorra foi dada para que a fé de Abraão pudesse ser manifestada em um magnífico ato de intercessão. Devido ao grande conhecimento de Abraão sobre Deus, ele sabia que Deus não poderia destruir o ímpio com o justo. Maturidade é aquele ponto onde nossos pensamentos e ações se tornam mais parecidos com os de Deus.
… até que todos cheguemos à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, à perfeita varonilidade, à medida da estatura da plenitude de Cristo (Efésios 4:13)
A fim de não começarmos a nos sentir culpados diante da percepção de que não estamos no mesmo patamar de Abraão, e muito menos de nosso Senhor, devemos nos lembrar de que o processo de maturidade leva muitos anos. É preciso ter em mente que Abraão em breve cometeria outro erro muito grave (capítulo 20). No entanto, sigamos em frente, na força de Deus, rumo à maturidade.
Tradução: Mariza Regina de Souza
1 “O pão do oriente é sempre preparado imediatamente antes de ser comido. Por isso, Sara teve de ir prepará-lo para aqueles convidados. Embora os visitantes fossem apenas três, a comida simples oferecida seria servida em grande abundância. “Três medidas” foram calculadas para fazer nove galões (Skinner). O que sobrou podia ser facilmente consumido pelos servos de um estabelecimento tão grande quanto o de Abraão”. H. C. Leupold, Exposição de Gênesis (Gran Rapids: Baker Book house, 1942), I, p. 538.
2 “A expressão idiomática ‘stand by’ (‘madh’al) implica em ficar à disposição para servir e pode até ser traduzida como ‘e eles os serviu’. Cf. 1 Samuel 16:22; 1 Reis 1:2; 1 Reis 17:1, na expressão ‘estar perante’”. Ibid, p. 539.
3 Cf. 1 Pedro 3:6
4 Cf. Salmo 132:11, 12
5 A primeira coisa que devemos entender é que a tenda de Abraão estava armada num lugar alto com vista para o vale onde Sodoma e Gomorra estavam localizadas (cf. 19:27, 28). Foi nesse sentido que os dois anjos “desceram” para Sodoma e Gomorra. No entanto, não creio que aqui seja este o significado principal das palavras do Senhor: “Descerei e verei se, de fato, o que têm praticado corresponde a esse clamor que é vindo até mim; e, se assim não é, sabê-lo-ei” (Gênesis 18:21). Em primeiro lugar, só os dois anjos realmente entraram em Sodoma, não nosso Senhor (cf. 19:1 e ss). Além disso, não havia necessidade de Deus fazer uma inspeção pessoal na cidade a fim de conhecer os fatos. A onisciência de Deus não é limitada pela distância. A solução para esse problema se encontra (para minha satisfação) nos outros usos da expressão “descer”. Em Gênesis 11:5, 7 ela é usada no envolvimento de Deus com Babel e a confusão de linguas. Em Êxodo 3:8 fala da intervenção de Deus no Egito para libertar Seu povo. Em todos esses exemplos, “descer” transmite a ideia de “envolver-se pessoalmente” ou de “intervenção pessoal”. Foi isso o que Deus fez, sem entrar fisicamente em Sodoma, Babel ou no Egito.
6 Inicialmente, todas as cidades do vale iam ser destruídas (cf. 19:17, 20-21, 25). Deus falou a Abraão sobre o julgamento de Sodoma e Gomorra (18:20). No entanto, Abraão suplicou apenas por Sodoma, “a cidade” (18:24, 26, 28).
Semanas atrás, estive de visita ao estado de Washington junto com um amigo nosso que também é do Texas. Estávamos em pé, à beira do lago onde meus pais moram, observando a natureza maravilhosa e os magníficos pinheiros, e apreciando a temperatura amena. Pensativamente, meu amigo se virou para mim e perguntou: “Diga-me de novo, por que mesmo você quer voltar para Dallas”?
Suponho que a maioria de nós gasta um tempo considerável pensando em sair da cidade e fugir dos altos índices de criminalidade, da multidão, da poluição, das cenas impróprias, dos ruídos e do mau-cheiro, das aglomerações e dos congestionamentos. Ultimamente, a “volta ao campo” parece ser uma tendência geral. Alguns até acham que deixar a cidade seja bíblico.
Até este ponto de Gênesis, as cidades não eram muito bem-vistas. Caim construiu a primeira cidade, dando a ela o nome de seu filho Enoque, e isso depois de ficar sabendo que seria fugitivo e errante (Gênesis 4:12, 17). Embora o homem tenha recebido ordem de povoar a terra (9:7), a humanidade caída se uniu e começou a edificar a cidade de Babel com sua torre (11:4). Abraão foi chamado para deixar a vida urbana e viver como peregrino (12:1-3).
Agora, Ló, que tinha escolhido viver em Sodoma, está prestes a perder tudo: esposa, família, reputação e todas as coisas pelas quais lutou. Abraão, vivendo longe das cidades da planície, vê com tristeza a destruição de Sodoma e Gomorra (19:27-29). Tudo isso não seria uma indicação de que separação implica em fuga da cidade? Alguns pensam que sim. No entanto, a queda de Ló não se deu na sociedade doentia e mundana de Sodoma, e sim numa caverna isolada. Enfim, o problema não estava na cidade, mas na alma. Gênesis 19 nos ajuda a colocar na perspectiva correta a questão da separação.
Este capítulo talvez seja a parte mais trágica do livro de Gênesis, pois descreve a destruição de uma cidade. Pior ainda, retrata a queda de um santo. Não fosse pelas palavras do apóstolo Pedro, nunca saberíamos com certeza que o personagem patético conhecido como Ló foi um verdadeiro crente:
… e livrou o justo Ló, afligido pelo procedimento libertino daqueles insubordinados (porque este justo, pelo que via e ouvia quando habitava entre eles, atormentava a sua alma justa, cada dia, por causa das obras iníquas daqueles)... (2 Pedro 2:7-8)
Para sermos sinceros, precisamos admitir que na igreja de Cristo há muito mais “Lós” que “Abraãos”. Para sermos honestos, temos de dizer que na nossa vida há muito mais evidências de Ló do que do amigo de Deus, Abraão. Se isso é correto, então a destruição de Ló é uma advertência a todo cristão verdadeiro. Precisamos abordar esta passagem com muito cuidado, e em espírito de oração, se quisermos aprender as lições de Ló pela literatura ao invés de pela vida.
Ao anoitecer, vieram os dois anjos a Sodoma, a cuja entrada estava Ló assentado; este, quando os viu, levantou-se e, indo ao seu encontro, prostrou-se, rosto em terra. E disse-lhes: Eis agora, meus senhores, vinde para a casa do vosso servo, pernoitai nela e lavai os pés; levantar-vos-eis de madrugada e seguireis o vosso caminho. Responderam eles: Não; passaremos a noite na praça. Instou-lhes muito, e foram e entraram em casa dele; deu-lhes um banquete, fez assar uns pães asmos, e eles comeram. (Gênesis 19:1-3)
Os dois anjos chegaram a Sodoma ao anoitecer. Ló, que estava assentado à entrada da cidade, pensou que fossem homens mortais e estrangeiros, não mensageiros da destruição. Uma vez que os anciãos se assentavam às portas da cidade como juízes (cf. Jó 29:7-12), não é improvável que Ló, depois de certo tempo, tenha adquirido notoriedade e poder. Para mim, parece o mesmo tipo de notoriedade adquirida por Billy Carter1. Lembre-se de que logo após sua mudança para Sodoma, a cidade foi saqueada e o povo levado cativo, até tudo ser resgatado pela atitude heroica de Abrão (Gênesis 14:1-16). A popularidade e o poder de Ló podem muito bem ter sido consequência da sua relação com Abraão.
De forma alguma, isso deve diminuir sua hospitalidade genuína oferecida aos dois estranhos. O paralelo com a hospitalidade de Abraão no capítulo anterior não é acidental. Sua atitude, antes de tudo, demonstra o caráter justo de Ló, conforme indicado por Pedro em sua epístola. A aparente relutância dos anjos em aceitar sua oferta, até serem gentilmente pressionados por ele, é mais uma questão cultural e de costumes do que qualquer outra coisa (cf. Lucas 24:28-29).
Embora isto não seja dito em termos concretos, parece que a insistência de Ló foi motivada tanto por temor à segurança dos forasteiros quanto por sua generosidade. Ele devia conhecer muito bem o destino de quem não tinha um teto onde passar a noite. Em qualquer outra cidade, dormir na praça não seria incomum ou imprudente. No entanto, a depravação de Sodoma fez Ló insistir delicadamente com seus convidados para que ficassem com ele e partilhassem da sua mesa. Para mim, a refeição servida por Ló não foi nem tão calma nem tão suntuosa quanto a servida por Abraão2.
Se Ló achou que seus convidados iam entrar na sua casa sem serem notados, ele deve ter ficado muito desapontado. Doentios como pareciam ser, os homens da cidade tinham olhos de águia para qualquer estrangeiro além de Ló. Seus motivos eram depravados e suas intenções indescritíveis. Em pouco tempo, a cidade toda rodeou sua casa, tentando fazer sexo com os forasteiros. O que ocorreu não foi uma atitude “liberal” de uma cidade cujas leis permitiam esse tipo de conduta consensual e particular entre dois adultos. Não foi nem mesmo um pedido indecente para pecar. Na verdade, foi mesmo uma tentativa de estupro, da pior espécie. Imagine só, uma cidade inteira, desde o mais novo até o mais velho. Com certeza, isso exigia uma atitude drástica.
A reação de Ló foi típica do seu estado espiritual; foi uma mistura estranha de coragem e concessão, de força de caráter e circunstancialismo. A multidão exigiu que ele entregasse seus hóspedes, uma violação impensável da proteção garantida a quem estivesse sob o teto de outra pessoa. Ló saiu, fechando a porta atrás de si, na esperança de acalmar a situação. Ele lhes implorou para não serem perversos e, justamente quando estamos prestes a aplaudir sua coragem, ele oferece suas filhas para saciar o apetite depravado daqueles degenerados. É simplesmente inconcebível! A prontidão de Ló (preocupação com seus hóspedes) tornou-se devassidão (disposição de entregar as próprias filhas em lugar dos forasteiros). Quando a turba recusa sua oferta, dá até para soltar um suspiro de alívio; no entanto, é preciso dizer que as consequências dessa concessão ainda estavam por vir.
Ló viveu em Sodoma durante vinte anos, mas, para os homens da cidade, ele continuou sendo forasteiro. Suspeito que a razão pela qual ele foi deixado em paz durante todo esse tempo foi porque eles ainda se lembravam do poderio militar de Abraão. Se Ló fosse atacado, eles teriam de acertar as contas com seu tio.
Ao longo dos anos, aparentemente, Ló se contentou em manter distância do pecado da cidade, mas nada fez para combatê-lo. Agora, ele atuava como juiz, falando contra sua perversidade. Isso era demais para aquela turba. Quando finalmente foi forçado a protestar contra sua depravação, a multidão ficou enfurecida. Primeiro eles iam dar um jeito em Ló, depois nos outros dois.
Ló, que supunha ser seu dever salvar os estranhos, foi resgatado por eles. Pelas palavras que lhe disseram, eles revelaram a Ló sua identidade e o que iam fazer. Quanto aos homens da cidade, ou ficaram cegos ou com a visão distorcida e embaçada; o certo é que ficaram tateando à procura da porta até cansarem (cf. 2 Reis 6:18).
Nas últimas horas da madrugada, antes do nascer do sol, Sodoma viu mais atividade missionária por parte de Ló do que em todos os anos anteriores. No entanto, seus esforços não recaíram sobre o povo daquela cidade, e sim sobre uma tentativa vã e frenética de salvar a própria família, cuja salvação ele tinha negligenciado.
Então, disseram os homens a Ló: Tens aqui alguém mais dos teus? Genro, e teus filhos, e tuas filhas, todos quantos tens na cidade, faze-os sair deste lugar; pois vamos destruir este lugar, porque o seu clamor se tem aumentado, chegando até à presença do SENHOR; e o SENHOR nos enviou a destruí-lo. (Gênesis 19:12-13)
Seus genros3 foram despertados e avisados de uma forma meio surreal. Foi como tentar pregar o evangelho no último minuto a alguém à beira da morte. Sem dúvida, a atitude de Ló deve ter dado uma impressão muito bizarra. Eles acharam que fosse algum tipo de piada:
Então, saiu Ló e falou a seus genros, aos que estavam para casar com suas filhas e disse: Levantai-vos, saí deste lugar, porque o SENHOR há de destruir a cidade. Acharam, porém, que ele gracejava com eles. (Gênesis 19:14)
Por que será? Por que eles não levaram Ló a sério? Repare que não está escrito que eles não quiseram acreditar nele, mas que não o levaram a sério. Parece haver apenas uma explicação possível para isso: Ló nunca havia mencionado sua fé. Suas palavras não eram a repetição de uma longa vida de advertências sobre pecado e juízo — elas eram totalmente novas e inéditas. Mas que chacoalhada no seu testemunho! Uma coisa é alertar as pessoas e elas não darem ouvidos à nossa mensagem. Outra, muito pior, é nem sequer levarem a sério as nossas palavras4.
O dia amanheceu sem nenhum convertido, muito menos uma alma justa para fugir da ira de Deus. O tempo tinha acabado. Os anjos disseram a Ló para pegar sua esposa e suas duas filhas e dar o fora da cidade antes de vir o juízo.
A incredulidade dos cidadãos de Sodoma até certo ponto é previsível, mas a relutância de Ló é inacreditável. Nunca ninguém se esforçou tanto para não ser salvo. Existem muitas razões para ele ter sido relutante e ficar embromado durante o resgate. Primeira, em seu estado carnal, talvez ele não tivesse plena convicção da realidade e da gravidade do juízo de Deus. Segunda, talvez ele tivesse a esperança de que, demorando e protelando a partida, seus amigos e sua família pudessem ser preservados, pois sabia que o juízo não viria antes de ele partir (cf. versículo 22). Terceira, ele estava tão ligado a seus amigos, à sua família e às coisas “do presente século” que não podia suportar a ideia de ir embora. Enfim, ele foi literalmente arrastado pelo anjo para fora da cidade.
Ao amanhecer, os anjos instaram com Ló, dizendo: “Levanta-te, toma tua mulher e tuas duas filhas, que aqui se encontram, para que não pereças no castigo da cidade. Como, porém, se demorasse, pegaram-no os homens pela mão, a ele, a sua mulher e as duas filhas, sendo-lhe o SENHOR misericordioso, e o tiraram, e o puseram fora da cidade” (Gênesis 19:15-16).
Mesmo recebendo instruções específicas para fugir para as montanhas, para o mais distante possível de Sodoma (versículo 17), Ló resistiu novamente e pediu algo menos doloroso:
Respondeu-lhes Ló: Assim não, Senhor meu! Eis que o teu servo achou mercê diante de ti, e engrandeceste a tua misericórdia que me mostraste, salvando-me a vida; não posso escapar no monte, pois receio que o mal me apanhe, e eu morra. Eis aí uma cidade perto para a qual eu posso fugir, e é pequena. Permite que eu fuja para lá (porventura, não é pequena?), e nela viverá a minha alma. (Gênesis 19:18-20)
Quanta diferença entre a intercessão de Abraão e a oração (pedido) de Ló! Abraão orou pela preservação das cidades por causa dos justos, particularmente de Ló e sua família. Ele não tinha nenhum interesse em jogo. Pelo contrário, a remoção das pessoas das cidades teria dado a impressão de que a terra estava livre para ele tomar posse dela5. Ló pediu por Zoar (anteriormente denominada Bela, cf. Gênesis 14:2), não por causa de quem vivia lá, mas para sua própria conveniência. Já que o castigo vinha mesmo, Deus não podia dar um jeitinho para ele? Afinal, era só uma cidadezinha, não era? E, assim, a cidade foi poupada (versículo 21).
O sol nasceu assim que Ló, sua mulher e suas filhas chegaram a Zoar (versículo 23). Quando estavam seguros, fora do alcance da devastação, o Senhor fez chover fogo e enxofre do céu sobre as cidades do vale. Muitas sugestões já foram feitas quanto às causas dessa destruição6. Embora eu creia que provavelmente tenham sido empregados meios naturais, tais como raios, terremotos ou erupções vulcânicas, isso não significa que não tenha ocorrido um milagre. O juízo veio da parte do Senhor (19:13-14; 24-25) e foi Ele quem esteve no controle absoluto tanto da sua extensão quanto da sua duração (versículos 22, 24-25). A devastação destruiu quatro cidades, inclusive o terreno onde foram construídas. Foi uma devastação completa.
… e toda a sua terra abrasada com enxofre e sal, de sorte que não será semeada, e nada produzirá, nem crescerá nela erva alguma, assim como foi a destruição de Sodoma e de Gomorra, de Admá e de Zeboim, que o SENHOR destruiu na sua ira e no seu furor (Deuteronômio 29:23)
A morte da esposa de Ló foi realmente trágica. Pelo visto, ela morreu a poucos passos da segurança. Eles praticamente tinham chegado a Zoar. No entanto, enquanto seu Ló apertava o passo, dona Ló vacilava. Talvez seu coração de mãe estivesse abalado pela morte de seus filhos e filhas, ou talvez fosse o clube das mulheres ou a casa nova na cidade; até podiam ser os móveis luxuosos que tinham acabado de pagar. No entanto, uma coisa é certa, sua olhadela para trás diferiu da atitude de Ló apenas em grau, não em gênero. Seu coração, como o dele, estava em Sodoma. Ela diminuiu o passo e olhou para trás apenas por um instante, mas não teve mais volta7. A destruição que assolava Sodoma atingiu-a em cheio, a poucos passos da segurança e daqueles a quem ela amava. Sem levar em conta suas razões, ela desobedeceu diretamente uma ordem clara do anjo mensageiro (cf. 19:17).
Os versículos 27 a 29 servem para diversos propósitos. Primeiro, eles mostram o coração de Abraão em contraste com o egoísmo de Ló. Abraão, como Deus, não sentia prazer na perversidade, nem na destruição de pecadores. Ambos sentiam compaixão pelos justos. Abraão tinha feito uma súplica a Deus. Não creio que ele tenha ido ao mesmo local do dia anterior a fim de orar, mas para ver a resposta de Deus às suas orações. Não foi uma atitude do tipo “o que será, será”, e sim uma preocupação genuína com o que havia acontecido.
Segundo, estes versículos ressaltam a verdadeira razão pela qual Ló foi poupado. Embora um Deus justo não destrua o justo com o ímpio (18:25), a ênfase aqui é: “muito pode, por sua eficácia, a súplica do justo” (Tiago 5:16). Foi devido à fidelidade de Abraão, não à de Ló, que Ló foi liberto. Humanamente falando, havia pouca razão para Ló ser poupado, exceto pelo caráter de Deus e pela preocupação de Abraão com seu destino.
Embora Ló tenha pedido aos anjos para poupar Zoar, temeroso, logo ele saiu de lá. Mas, do que ele tinha medo? Alguns sugerem que ele temia o povo da cidade, devido à possibilidade de retaliação. Talvez ele receasse que, no futuro, o castigo recaísse sobre a cidade, provavelmente tão depravada quanto as outras.
Sou mais propenso a ver isso de forma um pouco diferente. Depois de um tempo para refletir, Ló talvez tenha percebido que se estabelecer em Sodoma foi a causa de todos os seus problemas. Isso lhe custou sua riqueza, sua esposa e grande parte da sua família. Ficar em Zoar, ou em outra cidade pervertida, poderia acarretar mais destruição e condenação. Deus não tinha dito a ele para fugir para as montanhas? Portanto, ele resolveu “ficar longe de tudo aquilo”. Longe da cidade e da sua depravação. Longe do mundo. Ló buscou segurança numa caverna, não numa cidade.
Mas uma pergunta irritante me persegue. Por que ele não quis ficar com Abraão? Com certeza, agora não havia mais o problema de excesso de prosperidade. E Abraão não vivia nas montanhas, longe da cidade? Ló tinha liberdade para escolher onde se estabelecer, desde que não fosse numa das cidades condenadas. Para mim, ele não quis encarar o tio, Abraão, e confessar sua idiotice. Com Abraão, poderia ter havido companheirismo, incentivo e talvez a possibilidade de algum marido temente a Deus para suas filhas entre os homens da sua comunidade.
Os versículos seguintes descrevem a condição final de Ló, o cristão carnal. Ele é passivo e patético. Em estado de embriaguez, ele acaba se tornando o pai de duas nações, as quais viriam a ser uma verdadeira praga para Israel. Ló, e aqueles que procederam dele, foram uma verdadeira pedra no sapato de Abraão e seus descendentes.
No lugar de Ló, talvez tivéssemos feito a mesma coisa, deixando a cidade e indo para uma caverna. Finalmente ele estava pronto para lidar com seu mundanismo. E ele o fez abandonando o mundo. O único problema foi que, embora ele estivesse fora de Sodoma, Sodoma não estava fora dele. Monasticismo nunca foi solução para o materialismo; a reclusão não é substituta da santificação. O tormento do mundo exterior não chega nem perto do tormento do mundo interior (cf. Romanos 7).
Para as filhas de Ló, a caverna não era uma habitação temporária, um abrigo durante a tempestade. Mas, para Ló, é claro que o lugar era permanente, um lar. Suas filhas também começaram a perceber que seu pai estava protegendo mais a elas do que a ele mesmo. Ele não ia perder mais nenhuma filha para homens depravados. Por isso, parecia que ele ia morrer sem um descendente, a menos que as garotas fizessem, elas mesmas, alguma coisa. Elas concluíram: “Nosso pai está velho, e não há homem na terra que venha unir-se conosco, segundo o costume de toda terra” (Gênesis 19:31).
Com certeza, esse quadro sombrio era um exagero. Elas não conseguiam ver meios normais pelos quais poderiam se casar e ter filhos. Embora seu pensamento, sem dúvida, estivesse errado, ele as levou ao erro ainda maior de deduzir que teriam de recorrer a meios extraordinários (talvez fosse mais correto dizer imorais, já que o incesto não devia ser tão extraordinário assim em Sodoma) para preservar a linhagem de seu pai. Esse raciocínio resultou numa trama pecaminosa.
Na idade de Ló, elas precisavam agir rápido. É evidente que elas resolveram que o pai nunca concordaria com um esquema daqueles em sã consciência, por isso, nada disseram a ele. Alguma coisa tinha de ser feita para enfraquecer sua resistência; vinho ia servir direitinho. Enquanto Ló estava no torpor da embriaguez, a primeira filha entrou na tenda; depois a segunda; e ambas ficaram grávidas. Na melhor das hipóteses, Ló estava apenas meio consciente do que acontecia, até ser tarde demais.
Duas nações nasceram daquelas relações incestuosas: Moabe e Amom. Embora Deus tenha tratado com bondade as duas nações por causa da sua relação com Abraão (cf. Deuteronômio 2:19), elas sempre foram uma empecilho à conduta piedosa dos israelitas. Kidner faz o seguinte comentário sobre elas:
Moabe e Amom (37f) estavam destinadas a proporcionar o pior tipo de sedução (a de Baal-Peor, Números 25) e a mais cruel perversão religiosa da história de Israel (a de Moloque, Levítico 18:21)8.
E, no final, elas iriam receber o juízo de Deus tal como Sodoma e Gomorra.
Portanto, tão certo como eu vivo, diz o SENHOR dos Exércitos, o Deus de Israel, Moabe será como Sodoma, e os filhos de Amom, como Gomorra, campo de urtigas, poços de sal e assolação perpétua; o restante do meu povo os saqueará, e os sobreviventes da minha nação os possuirão. (Sofonias 2:9)
Muitos aspectos da destruição de Sodoma e Gomorra tornam esta passagem extremamente perturbadora e desafiadora. Vamos examiná-los com muito cuidado.
(1) Semelhança. As semelhanças entre Sodoma e a sociedade de nossos dias são angustiantes. A imoralidade era desenfreada e a perversão tinha se tornado a regra, não a exceção. A homossexualidade sempre foi considerada um pecado na Bíblia (cf. Romanos 1:24 e ss), mas aqui é o sintoma de uma sociedade tão doentia por causa desse pecado que devia ser condenada. Como um câncer devastador, o pecado precisou ser extirpado para não se alastrar ainda mais.
Gostaria de dizer que Sodoma não era muito pior que a nossa sociedade. Hoje em dia, a homossexualidade, embora seja apenas um sintoma do pecado, não só é tolerada, como também é ostensivamente proclamada e abertamente defendida como estilo de vida alternativo. Filmes e outros meios de comunicação romanceiam o pecado e os aproveitadores fazem fortunas em cima dele. Agora, com a TV a cabo, a depravação de Sodoma tem se infiltrado na nossa própria sala de estar. Que mais resta para se ver em nossa sociedade que não estava em Sodoma? Creio que nada.
Sodoma se encontra na Escritura como símbolo do mal e da depravação. Ela também é uma advertência sobre o futuro juízo de Deus (Deuteronômio 29:23; 32:32; Isaías 1:9-10; 3:9; Jeremias 49:18). Por maior que tenha sido a destruição de Sodoma e Gomorra, ela nem se compara à destruição daqueles que recebem mais esclarecimento pela pregação do evangelho de Jesus Cristo:
Em verdade vos digo que menos rigor haverá para Sodoma e Gomorra, no Dia do Juízo, do que para aquela cidade. (Mateus 10:15)
A semelhança da nossa sociedade com a de Sodoma nos adverte de que o juízo está próximo. A ira eterna de Deus já foi derramada sobre a cruz de Cristo no Calvário. Jesus Cristo se fez pecado por nós; Ele suportou nosso castigo na cruz.
Certamente, ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas dores levou sobre si; e nós o reputávamos por aflito, ferido de Deus e oprimido. Mas ele foi traspassado pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniquidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados. Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas; cada um se desviava pelo caminho, mas o SENHOR fez cair sobre ele a iniquidade de nós todos. (Isaías 53:4-6)
Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós; para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus. (2 coríntios 5:21)
Pela fé na morte de Cristo em nosso lugar, não teremos de enfrentar a ira de Deus:
Porque Deus não nos destinou para a ira, mas para alcançar a salvação mediante nosso Senhor Jesus Cristo, que morreu por nós (2 Tessalonicenses 5:9-10a).
Mas aqueles que recusam o dom da salvação por meio do Senhor Jesus Cristo terão de suportar o castigo pelos seus pecados, a eterna separação de Deus:
… tomando vingança contra os que não conhecem a Deus e contra os que não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus. Estes sofrerão penalidade de eterna destruição, banidos da face do Senhor e da glória do seu poder (2 Tessalonicenses 1:8-9)
Há também uma semelhança entre Ló e muitos cristãos professos que não pode ser negligenciada. Ló era, na melhor das hipóteses, um cristão sem muito fervor. Na terminologia do Novo Testamento, talvez ele tenha sido um crente, mas não um discípulo (cf. Lucas 9:57-62). Ló tentou, sem êxito, manter um pé no mundo e outro na companhia dos fiéis. Ele era muito materialista, mais preocupado com seus próprios interesses do que com os de Abraão (cf. Gênesis 13 e Filipenses 2:1-9). Ele escolheu para si a melhor parte da terra, deixando o resto para Abraão. Ele escolheu a vida sedentária da cidade, enquanto Abraão preferiu a vida de peregrino. Ló colocou sua família em risco pela chance de lucro financeiro. Ló era mundano, indiferente e fraco nas suas convicções.
Será que existe mesmo alguma diferença entre ele e a maioria de nós? Devo confessar que parece haver mais de Ló na minha vida do que de Abraão.
Qual é a resposta para o nosso dilema? Como podemos lidar de forma eficaz com a nossa própria complacência? A solução, creio, está nas diferenças entre Ló e Abraão. Ló, na melhor das hipóteses, não tinha fervor no seu relacionamento com Deus. Abraão tinha uma intimidade crescente com o Senhor, demonstrada na sua intercessão por Ló. Ló se importava mais consigo mesmo, chegando ao ponto de se dispor a sacrificar suas filhas. Abraão se importava mais com os outros, como visto na sua generosidade em dar a Ló a oportunidade de escolha da terra e na sua intercessão por seu livramento. Ló foi um homem que não aprendeu com a disciplina divina. Quando se mudou para Sodoma e, em seguida foi sequestrado, ele voltou ao mesmo lugar, sem qualquer mudança aparente no modo de agir. Abraão cometeu muitos erros (pecados), mas aprendeu com eles. Ló foi um homem que viveu apenas para o momento presente, enquanto Abraão foi estrangeiro e peregrino sobre a terra. Ele preferiu não ter muitos prazeres terrenos para poder desfrutar das alegrias maiores e eternas das bênçãos de Deus.
(2) Segurança. Tendo salientado as falhas de Ló, não podemos perder de vista o fato de que ele era um salvo (2 Pedro 2:7-8). Não obstante todos os seus defeitos, Deus o poupou do juízo, embora Ló tenha gritado e esperneado durante todo o caminho. Mas que retrato da segurança dos santos, até dos mais carnais!
A segurança de Ló, assim como a nossa, não tem como base a sua fidelidade, pois ele não era fiel. Sua salvação ocorreu claramente a despeito dele mesmo, não devido às suas obras. Qual a base, então, da sua segurança? Em relação ao nosso texto, a resposta é simples. Ele foi salvo, não por causa dele mesmo, mas por causa de Abraão. Não foi a sua fidelidade, e sim a de Abraão, que o livrou da destruição:
Ao tempo que destruía as cidades da campina, lembrou-se Deus de Abraão e tirou a Ló do meio das ruínas, quando subverteu as cidades em que Ló habitara. (Gênesis 19:29)
O mesmo princípio se aplica aos cristãos de hoje. Nós somos salvos, não devido à nossa fidelidade, mas devido Àquele que intercede por nós, Jesus Cristo, nosso grande Sumo Sacerdote:
Quem os condenará? É Cristo Jesus quem morreu ou, antes, quem ressuscitou, o qual está à direita de Deus e também intercede por nós. (Romanos 8:34)
Por isso, também pode salvar totalmente os que por ele se chegam a Deus, vivendo sempre para interceder por eles. (Hebreus 7:25)
Que garantia maravilhosa! Sermos salvos não por causa nosso valor, mas por causa de Cristo, O qual não só morreu para nos salvar, mas também intercede por nós junto ao Pai:
Filhinhos meus, estas coisas vos escrevo para que não pequeis. Se, todavia, alguém pecar, temos Advogado junto ao Pai, Jesus Cristo, o Justo. (1 João 2:1)
Será que a nossa segurança deve ser motivo de preguiça ou incentivo para pecar? Longe disso (cf. Romanos 6:1 e ss; 1 Pedro 2:16). Embora Gênesis 19 nos diga que Ló foi poupado do juízo de Deus, ele não escapou das dolorosas consequências dos seus pecados. Ele perdeu tudo que tinha, a maior parte da sua família e a sua dignidade. O pecado nunca vale a pena! Os cristãos podem andar nos seus próprios caminhos, mas não irão desfrutar deles por muito tempo.
(3) Separação. A vida de Ló serve como um valioso esclarecimento sobre a doutrina da separação. Da forma como vejo, existem duas fases na sua vida, cada uma pendendo para um lado.
A primeira fase mostra um período de identificação com os pecadores. A separação nessa época manifestou-se em não praticar os pecados que eram normalmente aceitos e imitados. Nosso Senhor também se identificou com pecadores e foi criticado por isso:
Os escribas dos fariseus, vendo-o comer em companhia dos pecadores e publicanos, perguntavam aos discípulos dele: Por que come [e bebe] ele com os publicanos e pecadores? Tendo Jesus ouvido isto, respondeu-lhes: Os sãos não precisam de médico, e sim os doentes; não vim chamar justos, e sim pecadores. (Marcos 2:16-17)
Embora tanto nosso Senhor quanto Ló vivessem na companhia de pecadores sem tomar parte de seus pecados, a diferença entre os dois foi que nosso Senhor falou claramente sobre pecado e salvação, enquanto Ló permaneceu em silêncio. Os cristãos devem ser sal numa sociedade corrompida. A importância do sal é que ele é distintivo. Ló perdeu sua salinidade na sociedade ao seu redor. Na verdade, creio que ele simplesmente perdeu sua têmpera. Para ele, aparentemente não havia senso de perigo ou urgência. Nosso Senhor claramente veio para salvar pecadores.
Vivendo em Sodoma sem ser distintivo, Ló não só fracassou em salvar outras pessoas, como perdeu sua própria família. Eis a grande tragédia da sua vida em Sodoma: seus filhos (exceto duas filhas) e sua esposa foram perdidos. Se não procuramos salvar os outros, podemos perder até nossa própria família. Mas muitos, quando tentam ministrar a outros, perdem a própria família para o mundo.
O pecado de Ló não foi ficar em Sodoma, mas sua motivação para ficar lá. Viver no mundo não é errado, mas ser do mundo é (João 17:15-16). Viver em meio a uma geração degenerada e perversa não é errado, mas deixar de proclamar a mensagem sobre o pecado, a justiça e o juízo é. O problema de Ló não foi tanto sua vida em Sodoma, mas sua falta de sal9.
O último capítulo da vida de Ló se passou numa caverna. Lá, ele parece ter tentado lidar com o problema do mundo isolando-se dele. Monasticismo sempre foi uma alternativa tentadora para não se misturar com os pecadores. Permitam-me lembrar-lhes que o fracasso de Ló na cidade não chegou nem perto do seu fracasso na caverna. Foi lá, na caverna, que sua bebedeira embotou seus sentidos o suficiente para ele ser levado a cometer incesto com suas filhas.
Ali, seu fracasso foi devido mais à sua própria responsabilidade do que a maioria de gostaria de admitir. Não foi apenas o que suas filhas tinham aprendido em Sodoma — lembrem-se de que elas ainda eram virgens (19:8). O verdadeiro problema não estava em Sodoma, mas em Ló. Suas filhas simplesmente fizeram aquilo que tinham aprendido com o próprio pai. As garotas estavam em casa quando o ouviram dizer:
Tenho duas filhas, virgens, eu vo-las trarei; tratai-as como vos parecer, porém nada façais a estes homens, porquanto se acham sob a proteção de meu teto. (Gênesis 19:8)
Suas filhas aprenderam com ele que, às vezes, a moralidade precisa ser sacrificada em nome da praticidade. Ló estava disposto a entregar as próprias filhas aos sodomitas (as quais ainda eram sexualmente puras, não corrompidas pelos pecados de Sodoma) em lugar dos estrangeiros. Elas aprenderam com ele que a moralidade, às vezes, precisa dar lugar às emergências. Já que elas tinham visto a situação aflitiva do pai (e delas também) como uma emergência, o incesto não era mais um problema moral, pois a moralidade, nas emergências, tinha de dar lugar à praticidade.
Muitos de nós, como pais, ficam extremamente preocupados com o mundo onde vivem nossos filhos. As tentações são grandes demais. No entanto, em nossa preocupação com o que acontece nas cidades, não devemos pensar que podemos salvar nossos filhos isolando-os numa caverna, pois, na caverna, eles ainda são influenciados por nós. Que a tragédia ocorrida na família de Ló nos sirva de alerta, pois muitos pecados de nossos filhos não são aprendidos com o mundo, mas conosco.
Vejam, a doutrina cristã da separação deve mostrar um delicado equilíbrio entre dois extremos igualmente perigosos. Um é a demasiada identificação com o mundo — sem, no entanto, proclamar claramente o evangelho. Outro, é o isolamento do mundo para tentar obter segurança. Nenhum dos dois é solução para o pecado:
Já em carta vos escrevi que não vos associásseis com os impuros; refiro-me, com isto, não propriamente aos impuros deste mundo, ou aos avarentos, ou roubadores, ou idólatras; pois, neste caso, teríeis de sair do mundo. Mas, agora, vos escrevo que não vos associeis com alguém que, dizendo-se irmão, for impuro, ou avarento, ou idólatra, ou maldizente, ou beberrão, ou roubador; com esse tal, nem ainda comais. (1 Coríntios 5:9-11)
Ló tentou viver numa cidade, depois numa caverna. Não podemos ser um com o mundo, mas também não devemos fugir dele. O equilíbrio entre a cidade de Sodoma e a caverna é a tenda de Abraão. Devemos viver no mundo, mas sem nos tornar ligados ou conformados a ele. Devemos ser forasteiros e peregrinos. Como Pedro, sob inspiração divina, expressou:
Amados, exorto-vos, como peregrinos e forasteiros que sois, a vos absterdes das paixões carnais, que fazem guerra contra a alma, mantendo exemplar o vosso procedimento no meio dos gentios, para que, naquilo que falam contra vós outros como de malfeitores, observando-vos em vossas boas obras, glorifiquem a Deus no dia da visitação. (1 Pedro 2:11-12)
Que Deus nos ajude a viver no mundo sem nos tornarmos parte dele, ou ele parte de nós. Como disse o escritor de Provérbios:
A casa dos perversos será destruída, mas a tenda dos retos florescerá. (Provérbios 14:11)
© 2017 Bible.org. All Rights Reserved.
Tradução: Mariza Regina de Souza
1 Falecido irmão do ex-presidente americano Jimmy Carter.
2 Embora esta não seja de forma alguma uma questão importante, várias considerações me levam a chegar a esta conclusão. Primeira, Ló serviu pão asmo, mas Abraão, não (aparentemente). Pão asmo foi aquele preparado às pressas pelos israelitas antes de saírem do Egito. Talvez fosse tarde da noite e não houvesse tempo para levedar a massa antes do amanhecer. Ló, no entanto, conhecendo os homens da cidade, achou melhor preparar uma refeição menos demorada. Quando disse aos anjos para se levantarem de madrugada e seguirem seu caminho (versículo 2), será que ele não queria mandá-los embora antes dos outros acordarem? Neste caso, ele devia estar impaciente para servir uma refeição rápida e mandá-los logo para a cama. E ainda, a palavra hebraica traduzida como “banquete” pode significar também “bebida”. Na maioria dos casos, esta seria a descrição de um banquete requintado onde se poderia beber; às vezes, podendo chegar ao ponto de beber até cair. Em geral, era uma festa de casamento. A Septuaginta (versão grega do Antigo Testamento) interpreta a passagem de modo a sugerir que Ló preparou para seus convidados algo para beber e pão asmo. A NVI não vai tão longe, mas também não prefere descrever um banquete: “Ló mandou preparar-lhes uma refeição e assar pão sem fermento...” O Antigo Testamento Amplificado tenta transmitir o sentido literal, interpretando desta forma: “E preparou-lhes uma refeição (com bebida), e tinha pão sem fermento que ele assara; e eles comeram”. Tudo isso, pelo menos, deixa espaço para sugerir que a hospitalidade de Ló foi mais apressada e, talvez, não tão suntuosa quanto a mesa de Abraão.
3 “Genros”, versículo 14, pode ser entendido tanto com relação aos que eram casados com as filhas de Ló quanto com relação aos que estavam comprometidos (“estavam para casar”) com elas. Se esta última for correta, as filhas seriam aquelas que ainda moravam com Ló, as quais eram “virgens” (versículo 8). As duas filhas “comprometidas” seriam as que foram com os pais para Zoar e depois para a caverna com Ló. Dá para perceber porque elas raciocinaram que o casamento não seria mais uma opção. Se a primeira alternativa fosse a correta, os “genros” seriam homens casados com outras filhas de Ló, e tanto eles quanto elas foram mortos no julgamento de Sodoma. Assim, o fracasso de Ló seria muito maior. O versículo 15 parece sustentar a opinião de que Ló tinha duas filhas solteiras e outras que eram casadas, quando diz: “Levanta-te, toma tua mulher e tuas duas filhas, que aqui se encontram…” A implicação, portanto, é que havia outras que não estavam com Ló, mas com seus maridos.
4 Ironicamente, a palavra hebraica kematzehak, literalmente traduzida como “como alguém que estava gracejando” (nota à margem, NASV) tem a mesma raiz de onde vem o nome Isaque, que significa “riso”.
5 Uma pergunta pode surgir: “O que Deus fez com a terra que se tornou imprestável devido ao julgamento de Sodoma e Gomorra? Poderíamos supor que, com isso, Deus tivesse removido os habitantes do vale e dado a terra a Abraão. No entanto, Seu propósito fora revelado a Abraão no capítulo 15 (versículos 13-16). Abraão não ia possuir a terra durante a sua vida, ele ia ser “estrangeiro e peregrino” sobre a terra. Assim, sua fé foi testada e fortalecida. Somente na quarta geração, seus descendentes tomariam posse da terra. Talvez tenha sido por causa da ampla devastação ocorrida no local que Abraão se mudou para o Neguebe (20:1).
6 Bush discorre longamente sobre a destruição de Sodoma (I, p. 314-325), concluindo que: “A catástrofe, portanto, se nossa interpretação estiver correta, foi assinalada pela junção dos horrores de um terremoto e de uma erupção vulcânica, esta última sendo descrita como um incêndio destrutivo vindo dos céus, formando uma cena de tal confusão que olhos humanos jamais tinham visto”. George Bush, Apontamentos em Gênesis, Reprint (Mineápolis: James and Klock Publishing Co., 1976), I, p. 325.
7 “... ela pode ter sido envolta pela fumaça venenosa e pela violenta destruição que vinha dos céus… No entanto, uma vez envolta, ali ela ficou, aparentemente sem ter sido alcançada pelo fogo, mas ficando com uma crosta de sal devido aos vapores vindos do Mar Morto. Naquele instante, talvez Ló e suas filhas não tenham visto o que aconteceu, pois olhar para trás envolvia o mesmo tipo de destruição. Seu amor por aquela que foi perdida, sem dúvida, levou-os a visitar o lugar depois da destruição, e lá eles encontraram a “estátua de sal”. As palavras watteh (“e converteu-se”), de forma alguma exigem uma conversão instantânea na tal estátua”. H. C. Leupold, Exposição de Gênesis (Grand Rapids: Baker Book House, 1942), I, p. 571-572.
8 Derek Kidner, Gênesis Introdução e Comentário (Chicago: InterVarsity Press, 1967), p. 136.
9 Aqui deve ser dada uma palavra de alerta. Na história de Israel, Deus levantou profetas para falar às cidades cheias de pecado e para alertá-las sobre a ira vindoura (Jonas, por exemplo). Pelo que sei, no entanto, poucos com esse ministério, se é que houve algum, tiveram famílias expostas aos pecados que eles condenavam. Pode ter havido algum caso onde o celibato não só era aconselhável, mas imperativo. Precisamos ter cuidado para nosso ministério não ser exercido às custas da nossa família.
Muitos cristãos se preocupam com seu “testemunho” perante o mundo, mas talvez seja por razões erradas. Apesar de ser importante que os crentes vivam de forma consistente com a vontade e a Palavra de Deus (cf. Romanos 6:1 e ss; Efésios 4:1 e ss; Colossenses 3:1 e ss; 1 Pedro 1:13 e ss), algumas vezes aplicamos mal essa verdade para fugir às nossas responsabilidades. Por exemplo, conheço pessoas que, assim como eu, são propensas a não falar sobre sua fé em Jesus Cristo por temer que seu testemunho seja tão pobre que os outros não queiram acreditar nEle. Quando a mensagem da nossa vida não condiz com a dos nossos lábios, deixamos de falar sobre a nossa fé em Cristo.
Muito embora devamos nos esforçar para viver de forma que desperte o interesse das outras pessoas por aquilo que nos torna diferentes como cristãos (Mateus 5:13-16; Colossenses 4:5-6; 1 Pedro 3:13 ss), nossas falhas não impedem, necessariamente, as pessoas de serem atraídas a Jesus Cristo como seu Salvador. Conheço um homem em nossa igreja que foi salvo pelo testemunho de um marinheiro bêbado. Esse meu amigo, na época um descrente, chamou a atenção de um cristão bêbado por causa do seu mau comportamento. O bêbado retrucou que, mesmo sendo uma desonra para o seu Senhor, sua salvação era eterna e segura. Meu amigo não conseguia imaginar como isso podia ser. Devido àquele cristão bêbado ter tanta certeza da sua segurança espiritual, meu amigo estudou as Escrituras sozinho para ver se isso seria possível. Como resultado, ele também foi salvo, até certo ponto pelo “testemunho” do marinheiro bêbado.
Ainda que esse tipo de conduta como cristão não seja recomendado, ou seja motivo de piada, a Bíblia mostra que, mesmo nos pontos mais baixos da nossa carreira cristã, Deus pode usar os Seus santos para atrair outras pessoas a Si. Tal foi o caso com Abraão, conforme registrado em Gênesis 20.
Deus tinha revelado a Abraão que ele seria pai de um filho por meio de Sara (17:15-19; 18:10). Abraão, ao saber da destruição iminente de Sodoma e Gomorra, intercedeu pelas cidades, em favor dos justos que ali habitavam (18:22 e ss). Deus lhe garantiu que se fossem encontrados pelo menos dez justos naquelas cidades, elas seriam poupadas (18:32). Apesar dos justos não terem sido encontrados e as cidades não terem sido poupadas, Ló e suas filhas foram salvos da destruição (capítulo 19). A devastação de Sodoma e Gomorra ocorreu sob o olhar vigilante de Abraão, que observava à distância (19:27-29).
Os capítulos 17 a 19 de Gênesis descrevem o ponto alto da vida do patriarca. Eis o homem de fé e intercessão que esperamos encontrar nas páginas da sagrada Escritura. O homem do capítulo 20, no entanto, está muito distante do patriarca e profeta das nossas expectativas. Comparado a ele, Abimeleque parece um santo. Apesar dessa triste situação, a graça de Deus é vista pela maravilha que ela é; não tanto a despeito do fracasso de Abraão, mas por causa dele. Abraão é uma testemunha involuntária da maravilhosa graça do Deus que salva e santifica homens e mulheres a despeito de si mesmos.
Por algum motivo não especificado1, Abraão deixou o Manre, indo para o sul, rumo a Cades, depois para noroeste, rumo a Gerar, não muito longe do Mar Mediterrâneo, na terra dos filisteus2. Em Gerar, Abraão voltou a cometer o mesmo pecado que tinha cometido logo no início de sua vida cristã (cf. 12:10 e ss). Uma vez mais, ele pediu a Sara para se passar por sua irmã, o que a fez ser levada para o harém de Abimeleque3, rei de Gerar4.
Críticos liberais se apressam em classificar os capítulos 12, 20 e 26 como narrativas diferentes do mesmo acontecimento. No entanto, essa posição não pode ser levada a sério: o texto é considerado fidedigno. As semelhanças são impressionantes, e são ressaltadas de propósito. Todavia, as diferenças entre os capítulos 12 e 20 são significativas. Vejamos algumas:
Capítulo 12 |
Capítulo 20 |
Lugar: Egito |
Lugar: Gerar |
Época: início da vida cristã |
Época: vida cristã avançada |
Rei: Faraó |
Rei: Abimeleque |
Reação de Abraão à repreensão: silêncio |
Reação de Abraão à repreensão: pedido de desculpas |
Consequência: Abraão deixa o Egito |
Consequência: Abraão fica em Gerar |
Temos todas as razões para concluir que são três acontecimentos, semelhantes em alguns detalhes, mas totalmente diferentes em muitos outros. As semelhanças têm o propósito de serem instrutivas. Mesmo cristãos maduros são atormentados por pecados do início da sua vida cristã (capítulo 20), e “a iniquidade dos pais” com certeza é visitada nos filhos (como no capítulo 26).
A situação neste ponto é bem mais crítica que no capítulo 12. Primeiramente, Deus tinha claramente revelado a Abraão e Sara que, juntos, eles teriam um filho por meio do qual as promessas da aliança seriam cumpridas. Além disso, a concepção dessa criança devia estar muito próxima, pois lhes fora dito que ela nasceria dentro de um ano (17:21; 18:10). O raciocínio humano teria considerado os perigos do capítulo 20 como coisa mínima, já que Sara há muito havia passado da idade de gerar filhos (17:17; 18:11, 13). Os olhos da fé, no entanto, teriam visto a questão sob uma ótica inteiramente diferente. Será que a fé de Abraão estava na maré baixa? Com certeza.
Abimeleque foi contido por Deus de duas maneiras. Primeira, Deus o advertiu em termos muito contundentes: “Vais ser punido de morte por causa da mulher que tomaste, porque ela tem marido” (Gênesis 20:3).
É evidente que Abimeleque só morreria se não voltasse atrás e devolvesse Sara intocada a Abraão. Deus lhe disse que ele seria um homem morto se não agisse logo e de acordo com a Sua orientação.
Segunda, Abimeleque e toda a sua casa foram fisicamente impedidos de pecar contra Sara, mesmo que quisessem:
Respondeu-lhe Deus em sonho: Bem sei que com sinceridade de coração fizeste isso; daí o ter impedido eu de pecares contra mim e não te permiti que a tocasses. Agora, pois, restitui a mulher a seu marido, pois ele é profeta e intercederá por ti, e viverás; se, porém, não lha restituíres, sabe que certamente morrerás, tu e tudo o que é teu… E, orando Abraão, sarou Deus Abimeleque, sua mulher e suas servas, de sorte que elas pudessem ter filhos; porque o SENHOR havia tornado estéreis todas as mulheres da casa de Abimeleque, por causa de Sara, mulher de Abraão (Gênesis 20:6-7, 17-18).
Por meio de uma doença física não revelada, ninguém da casa real seria capaz de conceber. Além disso, parece que toda atividade sexual foi proibida. Isso garantia a pureza de Sara, bem como impedia o nascimento de um filho de Abimeleque. A revelação recebida em sonho, portanto, explicou a ele o motivo da praga lançada sobre sua casa. Ela esclarece ainda o profundo temor dos servos de Abimeleque. Eles também sofriam com a desgraça que impedia a atividade sexual normal. Numa cultura que dava tanta importância a uma grande prole e à virilidade, a situação devia ser crítica. E era mesmo.
Apesar de ser ressaltado o perigo iminente para Abimeleque e sua casa, sua inocência também é demonstrada:
Ora, Abimeleque ainda não a havia possuído; por isso, disse: Senhor, matarás até uma nação inocente? Não foi ele mesmo que me disse: É minha irmã? E ela também me disse: Ele é meu irmão. Com sinceridade de coração e na minha inocência, foi que eu fiz isso (Gênesis 20:4-5).
Abimeleque, ao contrário de Abraão, não teve culpa nessa questão. Suas ações não foram intencionais, e foram tomadas com base nas falsas alegações de Abraão e Sara5. Deus reconheceu a inocência do rei, mas deixou bem claro que, sem a intervenção divina, ele teria cometido uma ofensa muito grave. A forma como Abimeleque cuidasse do assunto dali por diante iria determinar o seu destino. Protelar ou desobedecer significava morte certa.
Por mais estranho que pareça, Abimeleque foi muito superior a Abraão nesta passagem. Precisamos admitir que não há pecado em que o cristão não possa cair quando é desobediente e sem fé. Nessas ocasiões, os descrentes, com sua integridade e moralidade, dão um banho nos crentes (cf. 1 Coríntios 5:1 e ss).
Estranho nesta passagem não é o fato de Abraão regredir tanto no seu crescimento e maturidade como cristão. Pela minha experiência, sinto vergonha de admitir que isso é totalmente possível. No entanto, embora sua falta de fé não seja uma surpresa, a fidelidade de Deus para com ele nessa ocasião é surpreendente.
Se eu fosse Deus, a última coisa que teria pensado seria em revelar o meu relacionamento com Abraão. Mesmo se meu caráter exigisse que eu fosse fiel às minhas promessas, eu não teria dito a Abimeleque que Abraão era crente, embora carnal. No entanto, Deus mostrou que Abraão era objeto do Seu cuidado especial. Mais que isso, Abraão foi identificado como profeta (versículo 7)6. Ele era o representante de Deus e o intermediário por meio de quem Abimeleque devia ser curado.
Isso deve ter deixado Abimeleque com a pulga atrás da orelha. Como Abraão podia ser um homem de Deus e, ao mesmo tempo, um mentiroso? Abimeleque, no entanto, não teve oportunidade de tomar uma atitude punitiva, apesar dos problemas causados à casa real pela desobediência de Abraão. Abraão era a fonte do seu sofrimento, é verdade, mas era também a solução para ele. Ambos se encontravam numa situação bastante embaraçosa.
Abimeleque não perdeu tempo em fazer o que era certo diante de Deus. Ele se levantou bem cedinho e contou a essência do sonho àqueles da sua casa. Uma vez que todos foram afetados junto com ele, todos ficaram muito temerosos (versículo 8). Eles cuidariam para que as ordens do rei fossem seguidas à risca.
Depois de informar seus servos, Abimeleque convocou Abraão. Não foi uma situação agradável e Abraão foi severamente repreendido por sua mentira:
Que é isso que nos fizeste? Em que pequei eu contra ti, para trazeres tamanho pecado sobre mim e sobre o meu reino? Tu me fizeste o que não se deve fazer (Gênesis 20:9).
Abimeleque tinha sido ofendido por Abraão. Abraão não só errou aos olhos de Deus, mas também aos olhos dos pagãos. Ele, que devia ser fonte de bênção (12:2, 3), tornou-se uma proverbial dor de cabeça para aqueles em cuja terra ele peregrinava.
Vinte e cinco anos antes, Abraão tinha cometido um pecado quase idêntico. Naquele caso, não sabemos como faraó soube da verdade, nem há registro de um pedido de desculpas por parte de Abraão. Faraó só parecia interessado em vê-lo o mais longe possível da sua presença. Abimeleque não pediu a Abraão para partir, talvez por medo do que Deus poderia fazer pela falta de hospitalidade. O pedido de desculpas de Abraão, por mais fraco que seja, está registrado para nós:
Respondeu Abraão: Eu dizia comigo mesmo: Certamente não há temor de Deus neste lugar, e eles me matarão por causa de minha mulher. Por outro lado, ela, de fato, é também minha irmã, filha de meu pai e não de minha mãe; e veio a ser minha mulher. Quando Deus me fez andar errante da casa de meu pai, eu disse a ela: Este favor me farás: em todo lugar em que entrarmos, dirás a meu respeito: Ele é meu irmão (Gênesis 20:11-13).
Três razões são apresentadas para a farsa de Abraão, mas nenhuma delas explica satisfatoriamente sua atitude em Gerar. Primeira, Abraão estava com medo. Ele temia ser morto por causa da beleza de Sara e porque ela poderia ser tomada à força como esposa. Esse medo tinha como base uma falsa premissa teológica: Deus age apenas quando os homens estão dispostos a obedecer. Deus só poderia salvar Abraão em um lugar onde Ele fosse conhecido e temido pelas pessoas. A inferência é que onde os ímpios estão, a mão de Deus está encolhida e incapaz de salvar.
Esse tipo de teologia deve-se mais à falta de fé do que à ignorância. O temor de Abraão foi o mesmo de 25 anos antes. De acordo com sua teologia, Deus também não podia salvá-lo das mãos de faraó; mas Ele o salvou! Abraão fracassou devido à sua falta de fé, não porque estivesse desinformado.
Consequentemente, sua falta de fé desconsiderou uma revelação específica, pois pouco antes deste incidente Deus havia dito a ele duas vezes que Sara ficaria grávida e teria um filho dentro de um ano (17:19, 21; 18:10). Será que Abraão poderia encorajar Sara a ir para a cama com Abimeleque, sabendo que logo ela ficaria grávida e teria um filho? Creio que não. No entanto, se achassem que Sara estava com o “pé na cova” e não podia ter filhos, ela se tornaria parte do harém do rei, mas não seria levada à sério. Abraão deve ter pensado que Abimeleque ia fazer papel de bobo ao tomar como esposa uma mulher com idade suficiente para ser sua mãe.
Mais uma observação deve ser feita quanto aos temores de Abraão pela sua própria segurança. Sua conduta pouco difere da conduta Ló em Sodoma e Gomorra. Ló, quando convidou os estranhos para passar a noite em sua casa, garantiu-lhes sua proteção. Ao invés de quebrar esse compromisso, ele se dispôs a sacrificar a pureza das suas duas filhas virgens, entregando-as aos homens que estavam à sua porta. Abraão, temendo pela sua própria segurança, se dispôs a entregar sua esposa ao rei (ou a qualquer outro cidadão de Gerar) para se proteger.
A segunda razão para a farsa de Abraão é ainda menos satisfatória. O que ele disse, embora fosse mentira, tecnicamente era um fato. Sara era realmente sua irmã, filha de seu pai, mas não de sua mãe (versículo 12). Fatos podem ser, e frequentemente são, usados de forma a transmitir uma informação falsa. Estatísticas, às vezes, são empregadas desse jeito: sua cabeça está no freezer e seus pés no forno, mas, no geral, você está bem. Ela era mesmo sua irmã. Mas também sua esposa. Abraão tentou se defender com detalhes técnicos, não com a verdade.
Intitulei a terceira razão de “tradição”. Quando tudo o que usamos para justificar nossa forma de agir falha, podemos sempre recorrer àquele velho chavão: “Mas sempre fizemos assim”. Essencialmente, era isso o que Abraão estava dizendo. Sua atitude diante de Abimeleque não era para ser levada para o lado pessoal — era só norma da empresa. Essa norma tinha sido estabelecida muitos anos antes. Por que deveria ser mudada depois de tanto tempo?
Tendo examinado cada um dos três tópicos da defesa de Abraão, vamos considerar sua argumentação como um todo. Não há indicação de aceitação da responsabilidade pelo pecado, nem de tristeza ou arrependimento. Embora seus argumentos não nos convençam, assim como não impressionaram Abimeleque, eles pareciam satisfazer a Abraão.
Esta observação não me ocorreu imediatamente. Na verdade, foi um de meus amigos que a sugeriu depois que preguei este sermão no primeiro culto. Mas ele está absolutamente certo. Abraão, nesta passagem, se parece com um de nossos filhos quando é pego com a boca na botija. Ele fica triste por ter sido pego, mas não se arrepende do que fez.
Isso também explica a repetição deste pecado por Abraão e, tempos depois, por seu filho Isaque. Abraão não disse a si mesmo: “Não vou mais fazer isso de novo”, nem no Egito nem em Gerar. Em ambos os casos, ele escapou com a pureza da esposa intacta, e considerável lucro financeiro. Pelo que posso dizer, ele não viu sua farsa como pecado. Consequentemente, ela se repetiu nas gerações seguintes.
Não creio que Abimeleque tenha se impressionado com a explicação de Abraão. Todavia, Deus o tinha advertido severamente e ele sabia que Abraão era o único que podia interceder por ele para remover a praga que o impedia de ter filhos. Por causa disso, foi feita uma restituição.
Primeiro, Sara foi restituída ao marido, juntamente com ovelhas, bois e servos (versículo 14). Depois, foi feito um convite para Abraão se estabelecer onde quisesse naquela terra (versículo 15). Finalmente, Abraão recebeu mil peças de prata como símbolo da justificação de Sara (versículo 17). Portanto, a restituição de Sara a Abraão não foi porque ela era considerada inaceitável ou indesejável7.
Como deve ter sido humilhante para Abraão interceder em favor de Abimeleque. Um profundo senso de indignidade deve (ou pelo menos deveria) ter tomado conta dele. Com certeza, não foi a sua justiça que propiciou a cura divina. Como ministro do evangelho de Jesus Cristo, devo confessar que frequentemente sinto minha inadequação e indignidade. Os profetas, meus amigos, não são, necessariamente, as pessoas mais piedosas, nem os pregadores! O maior perigo enfrentado por pessoas em posição de proeminência e poder é começar a acreditar que a base da sua justiça é a sua fidelidade e grande espiritualidade. Sempre que somos usados por Deus, isso se deve única e exclusivamente à Sua graça.
Embora esta tenha sido uma época muito triste na vida do escolhido de Deus, ela foi necessária, pois preparou o terreno para o capítulo seguinte, onde o filho prometido é concedido. A promessa de Deus a Abraão foi mantida porque Deus é fiel, não porque Abraão fosse fiel. “Toda boa dádiva e todo dom perfeito”, nas palavras da Escritura, são lá do alto” (Tiago 1:17). Foi assim com Isaque.
Quando Abraão orou, os ventres da casa de Abimeleque foram abertos para poderem gerar filhos novamente. Assim, o ventre de Sara também ia ser aberto. O filho prometido logo iria nascer.
É bem verdade que o erro de Abraão ocorreu numa cultura e numa época estranhas aos cristãos atuais. Apesar disso, seus problemas não eram diferentes dos nossos (cf. Tiago 5:17), e os princípios encontrados em Gênesis 20 são tão verdadeiros hoje quanto foram séculos atrás. Deus não mudou, muito menos o homem. Vamos dedicar alguns momentos para considerar as lições que podemos aprender com este incidente na vida de Abraão.
(1) A falibilidade dos santos. Sei que há quem ensine um perfeccionismo impecável, mas não consigo entender por quê. O velho homem, apesar de espiritualmente morto, ainda está bem vivo e ativo. Embora estejamos vivendo a vida vitoriosa de Romanos 8, a maioria de nós quase sempre se encontra no capítulo 7. Com Abraão, o amigo de Deus, não foi diferente.
Uma posição privilegiada não impede o fracasso. Abraão era um eleito, um escolhido de Deus, mas ainda tropeçava e caía. Ele era um profeta de Deus, mas isso não o tornava mais crente que os outros. Abraão prosperou tanto no Egito como em Gerar, mas não foi por ter alcançado um nível mais alto de espiritualidade. A doutrina mais perigosa para os cristãos é aquela que sugere que eles podem viver acima da tentação e do fracasso, mesmo depois de anos de serviço ou em uma posição privilegiada.
(2) Nossa desobediência quase sempre é camuflada por desculpas que todo mundo vê, menos nós. É fácil perceber que as três desculpas apresentadas por Abraão são uma farsa, mesmo assim variações desses mesmos temas ainda servem como justificativa para muita coisa errada que fazemos.
A primeira desculpa é a ética circunstancial, um sistema de ética baseado na negação da existência de Deus ou na Sua incapacidade de agir em favor do homem. O circunstancialismo sempre apresenta um dilema onde a única alternativa é agir de forma pecaminosa. Nesses casos, somos forçados a decidir com base no menor dos males.
Primeira Coríntios 10:13 afirma categoricamente que a premissa sobre a qual o circunstancialismo está fundamentado é errada. Este versículo nos ensina que Deus nunca coloca o cristão em situação em que ele ou ela deva pecar. Aquilo que tememos é sempre produto da nossa imaginação, não da realidade. Abraão temia ser morto por alguém que quisesse levar sua esposa. Isso nunca aconteceu, nem há registro de qualquer situação na qual isso fosse pelo menos uma remota possibilidade. A fé em um Deus que é soberano em todas as circunstâncias nos impede de ficar flertando com atitudes pecaminosas, as quais supostamente irão nos livrar das situações de emergência — aquelas em que a piedade deve ser deixada de lado.
A segunda desculpa é usar detalhes técnicos ao invés da verdade. A informação dada por Abraão a Abimeleque era totalmente factual (versículo 12). Sara era sua irmã. Mas o que Abraão não disse a ele tornou tudo uma mentira. Ela era sua esposa, e também sua irmã.
Muitas vezes, escondemos as coisas para permitir que as pessoas tirem suas próprias conclusões ou tenham a impressão errada dos fatos. Queremos dar a ideia de que somos espirituais, quando não somos. Tentamos parecer felizes, quando nosso coração está partido. Tentamos parecer sofisticados, quando estamos desesperados e deprimidos. Fé é enfrentar a realidade e lidar abertamente com os outros, mesmo quando a verdade parece nos colocar em perigo ou nos deixar vulneráveis.
A terceira desculpa, muito comum, é a tradição. “Mas a gente sempre fez assim”. Essa foi a desculpa de Abraão. Tudo o que ela indica é a nossa persistência em pecar. Como meu tio costumava dizer das pessoas que sempre tinham algo bom a dizer sobre os outros: “Ela diria que até o diabo é persistente”. Não é que a tradição seja errada, mas ela também não torna uma prática correta.
(3) Nossos erros nunca irão impedir alguém de ter fé em nosso Senhor. Embora Abraão não estivesse ansioso para falar a Abimeleque sobre a sua fé, Deus não hesitou em reconhecê-lo como indivíduo e profeta. Por que Deus não ficou quieto sobre seu relacionamento com Abraão? Será que o débil testemunho de Abraão não afastaria Abimeleque de Deus?
Seria de esperar que a reação de Abimeleque ao pecado de Abraão fosse como a de muitas pessoas da nossa época: “A igreja está cheia de hipócritas. Se cristianismo é isso, prefiro não ser cristão”. Esse tipo de desculpa não é melhor que a de Abraão.
O erro de Abraão deu a Abimeleque a melhor razão do mundo para ser crente em Deus: o Deus de Abraão era um Deus de graça, não de obras. O Deus de Abraão não só o salvou sem levar em conta as suas obras (cf. Gênesis 15:6; Romanos 4), como também o preservou sem levá-las em conta. A fé de Abraão estava em um Deus cujos dons e bênçãos não têm como base a nossa fidelidade, e sim a Sua. Homens e mulheres não estão à procura de uma religião água com açúcar, mas uma que lhes garanta a salvação a despeito da sua condição espiritual naquele momento. O tipo de fé que Abraão tinha é o tipo que as pessoas almejam, uma que faça as coisas mesmo quando não fazemos.
(4) A graça de Deus e a segurança eterna do crente. Isso nos leva ao nosso último ponto: o cristão está eternamente seguro apesar de seus fracassos na fé. De acordo com a Escritura, o retrocesso nunca é incentivado, nunca é contemplado e nunca é destituído de dolorosas consequências. Contudo, o retrocesso nunca custará ao cristão a sua salvação. A salvação oferecida por Deus aos homens é eterna. Se alguém deveria perder sua salvação, esse alguém era Abraão, mas ele continuou filho de Deus.
Mas que cenário o capítulo 20 é para o capítulo 21! Esperávamos que Isaque fosse concebido no ponto mais alto da vida de Abraão e Sara, mas não foi assim. Esperávamos que, pelo menos, a falta de fé de Abraão fosse desmascarada e, finalmente, superada no capítulo 20, mas isso não aconteceu. Na verdade, Abraão nem mesmo reconheceu a pecaminosidade das suas ações.
Deus abençoou Abraão, deu-lhe riqueza (Gênesis 12:16,20; 13:1-2; 20:14-16) e o filho que prometera (Gênesis 21:1 e ss). Deu-lhe também uma posição privilegiada (Gênesis 20:7, 17-18). Todas essas bênçãos foram dons da graça de Deus, não recompensas pelas boas obras de Abraão. Ao final do capítulo, devemos concluir com as palavras de Kidner:
Depois de todo seu empenho espiritual, a recaída de Abraão no mesmo esquema de falta de fé, assim como em outros momentos de anticlímax (ver 12:10 e ss e capítulo 16), traz sua própria advertência. No entanto, o episódio é principalmente de suspense: às vésperas do nascimento histórico de Isaque, a própria Promessa é colocada em risco, em troca de segurança pessoal. Se a promessa tiver de ser cumprida, terá de ser pela graça de Deus8.
© 2017 Bible.org. All Rights Reserved.
Tradução: Mariza Regina de Souza
1 Embora a partida de Abraão do Manre não seja explicada, creio que o capítulo 19 nos dá uma boa pista dos motivos da sua mudança. De alguma forma, a devastação das cidades do vale devem ter afetado sua enorme criação de gado. É provável também que a disponibilidade de grama e água tenha sido a causa das suas outras mudanças.
2 A menção dos filisteus em 21:32 tem sido alvo dos críticos. Mas isso é impossível e, portanto, um erro, pois os filisteus só ocuparam a terra depois de Moisés, dominando a Palestina por volta de 1175 aC. Parece que a melhor explicação para o problema é vermos esses primeiros filisteus como uma onda inicial de migrantes que prepararam o terreno para os imigrantes posteriores, mais hostis, identificados biblicamente como filisteus. Para uma discussão mais prolongada deste assunto, ver Harold G. Stigers, Comentário de Gênesis (Grand Rapids: Zondervan, 1976), p. 181-182. Kidner resume sucintamente a questão:
“Os filisteus chegaram em massa na Palestina no começo do século doze; o grupo de Abimeleque terá sido precursor, talvez durante um período comercial”. Derek Kidner, Gênesis (Chicago: Inter-Varsity Press, 1967), p. 142.
3 Abimeleque é considerado o nome de um ofício, como faraó, não o nome de uma pessoa. É difícil saber ao certo se ele é um pagão virtuoso ou um verdadeiro crente no Deus de Abraão.
4 Algumas pessoas se admiram do fato de Sara ser tão atraente aos 90 anos de idade a ponto de ser desejada como esposa (ou concubina). É preciso lembrar que a vida dos homens e mulheres daquela época era mais longa do que agora. Abraão viveu até os 175 anos (25:7) e Sara até os 127 (23:1). Além disso, para poder gerar um filho, o envelhecimento normal deve ter sido retardado. O texto deixa a impressão de que Abraão temia por sua segurança por causa da beleza de Sara. Creio que devemos aceitar isso de forma literal; o que não significa que não houvesse outras razões para Sara ser levada. Abraão era um homem de riqueza e poder. As alianças eram feitas por meio de casamentos; por isso, Abimeleque tinha muitas razões para se casar com Sara.
5 Alguns sugerem que Sara não teve culpa ao confirmar as mentiras de Abraão. Dizem que ela simplesmente foi submissa e Abraão levou sua culpa e a dela. Não vejo evidência bíblica para esse tipo de afirmação. Sara é elogiada na Escritura por sua submissão obediente. A referência de Pedro, no entanto, não é à sua mentira no capítulo 20, mas à reverência para com seu marido no capítulo 18 (versículo 12). Naquele capítulo, já em idade avançada e numa época em que a promessa de um filho parecia inacreditável, ela ainda se referia a Abraão com profundo respeito, como demonstrado em suas palavras: “Riu-se, pois, Sara no seu íntimo, dizendo consigo mesma: Depois de velha, e velho também o meu senhor, terei ainda prazer?” (Gênesis 18:12). Além do mais, Pedro, mesmo elogiando a obediência de Sara, define cuidadosamente o tipo de obediência que é aceitável e agradável a Deus: “como fazia Sara, que obedeceu a Abraão, chamando-lhe senhor, da qual vós vos tornastes filhas, praticando o bem e não temendo perturbação alguma”. A mentira de Abraão, e a participação de Sara, era baseada em medo, e Moisés deixou bem claro que isso não era certo, mesmo aos olhos de um pagão. Embora o espírito obediente de Sara tenha sido elogiado, sua mentira não. Devemos sempre obedecer a Deus, não aos homens (Atos 5:29). Submissão é obedecer quando, em nossa opinião, a atitude é insensata; não é participar daquilo que sabemos, pela Palavra de Deus, ser errado. Na cadeia bíblica de comando, a vontade revelada de Deus é suprema, e é maior que todos os outros níveis de autoridade quando estão em conflito direto com ela.
6 Muito embora Abraão não se encaixe na concepção normal de profeta bíblico, essa designação é adequada. Ele realmente, em consonância com a palavra hebraica nabhi, serve como porta-voz ou alguém que fala por Deus (cf. Êxodo 4:16; 7:1). Além do mais, um profeta muitas vezes intercedia pelos outros (cf. Deuteronômio 9:20; 1 Samuel 7:5). Nos dois sentidos Abraão foi profeta, apesar de não ter predito o futuro.
7 Stigers sugere que 1000 peças de prata era, na verdade, o valor do gado recebido:
“Aqui são descritos os resultados do incidente apresentado nos versículos 1 a 7. No versículo 16, há a questão específica do dinheiro, que pode ser um valor homólogo ao valor dos animais e servos recebidos por Abraão expresso de forma judicial. O recebimento dos animais, de fato, é um acordo pecuniário para garantir que nenhum recurso legal seja impetrado por Abraão contra Abimeleque no futuro”. Stigers, Gênesis, p. 180. Kidner, com seu costumeiro estilo conciso, diz: “Ao oferecer uma compensação, Abimeleque reconhece seu erro (embora o termo ‘teu irmão’ saliente novamente sua inocência) e, aceitando a compensação, Abraão reconhece que o assunto está encerrado” (Kidner, Gênesis, p. 139).
8 192 Ibid., p. 137
Em um de seus filmes, Julie Andrews canta uma linda canção chamada Something Good, uma das minhas favoritas, mas que tem uma teologia abominável. A letra diz mais ou menos o seguinte: “Nada vem do nada, nada jamais poderia vir. Por isso, em algum lugar da minha infância ou da minha mocidade, devo ter feito algo de bom”. Muitos cristãos parecem ter o mesmo tipo de teologia. Eles acreditam que as coisas boas que acontecem em nossa vida são resultado de algo de bom que tenhamos feito. E, como os amigos de Jó, eles também acham que todas as coisas desagradáveis são consequência de algum mal que fizemos.
Não desejo contestar o fato de que a obediência traz bênção, pois, no final das contas, sempre traz. No entanto, muitas vezes, Deus permite que um cristão fiel passe por tribulações para que ele cresça e amadureça. Do mesmo modo, Ele também abençoa os cristãos muito mais a despeito do que fizeram do que por causa disso. Isso é graça — favor imerecido. Gênesis 21 é uma prova desse tipo de bênção na vida do crente.
O contexto deste capítulo é algo que Abraão gostaria que Moisés não tivesse se incomodado em registrar no livro sagrado. Enquanto peregrinava em Gerar, ele, mais uma vez, fez Sara, sua esposa, se passar por sua irmã. As consequências não foram muito agradáveis, pois ele foi repreendido por um rei pagão. No entanto, a verdadeira tragédia foi que Abraão parece não ter ficado triste ou ter se arrependido pelo pecado cometido. Até onde podemos dizer, Abraão não estava na melhor fase da sua vida espiritual quando Sara deu à luz o “filho da promessa”, Isaque. Foi em uma das suas piores fases que Deus lhe concedeu uma das bênçãos prometidas a ele.
Os acontecimentos dos versículos 1 a 7 podem ser vistos sob três aspectos diferentes. Nos versículos 1 e 2, temos o aspecto divino, o nascimento do filho prometido como uma dádiva de Deus. Os versículos 3 a 5 registram a reação de Abraão ao nascimento desse filho. Finalmente, nos versículos 6 e 7, temos a exultação de Sara pela chegada dessa criança há tanto esperada, a qual é a alegria da sua vida.
Tenho um amigo que é corretor de seguros e ele não hesitaria em dizer que um “ato de Deus”, no ramo de seguros, é um desastre natural sobre o qual o homem não tem controle. No entanto, Isaque foi “um ato de Deus” num sentido bem diferente. Ele foi o resultado da intervenção divina nas vidas de Abraão e Sara, os quais eram velhos demais para gerar filhos. Foi o cumprimento de uma promessa feita e reiterada a Abraão muito antes do nascimento de Isaque (cf. Gênesis 12:2; 15:4; 17:15-16; 18:10):
Visitou o SENHOR a Sara, como lhe dissera, e o SENHOR cumpriu o que lhe havia prometido. Sara concebeu e deu à luz um filho a Abraão na sua velhice, no tempo determinado, de que Deus lhe falara. (Gênesis 21:1-2)
Várias coisas chamam a atenção nesta passagem. Primeiro, não podemos deixar de notar a serenidade dessa declaração. Não há suspense. Não há surpresa, o fato é registrado como se nada mais pudesse ocorrer. E, é claro, é exatamente isso.
Segundo, há uma ênfase distinta na questão do cumprimento. Não houve surpresa no nascimento de Isaque simplesmente porque foi exatamente isso o que Deus prometeu. Nestes dois breves versículos, o cumprimento da promessa é ressaltado quatro vezes (v. 1: “como lhe dissera”; “o que lhe havia prometido”; v. 2: “no tempo determinado”; “que Deus lhe falara”). Foi Deus quem prometeu o filho; foi Deus quem cumpriu Sua palavra. E tudo aconteceu no tempo determinado. Os propósitos de Deus nunca são retardados ou frustrados pelo pecado do homem. Os propósitos de Deus são certos. O que Deus prometeu, Ele cumprirá.
Terceiro, aqui, o filho parece ser concedido mais para o benefício de Sara do que para o de Abraão. “E o SENHOR”, escreveu Moisés, “visitou a Sara”...e “fez… a Sara” (versículo 1, ARC). Não acho que estou indo longe demais ao sugerir que Sara quisesse esse filho muito mais que Abraão. Lembrem-se de que ele rogou a Deus por Ismael, aparentemente, para aceitá-lo como o filho da promessa (cf. 17:18). Abraão também não pareceu levar essa promessa muito a sério quando se dispôs a sujeitar Sara aos perigos do harém de Abimeleque, justamente quando ela estava prestes a conceber o filho prometido (cf. 17:21; 18:14). Ainda assim, embora Abraão não desejasse essa criança tanto quanto sua esposa, Deus manteve Sua promessa.
Os versículos seguintes parecem confirmar minhas suspeitas de que Abraão não ficou muito entusiasmado com Isaque, pelo menos não tanto quanto sua esposa:
Ao filho que lhe nasceu, que Sara lhe dera à luz, pôs Abraão o nome de Isaque. Abraão circuncidou a seu filho Isaque, quando este era de oito dias, segundo Deus lhe havia ordenado. Tinha Abraão cem anos, quando lhe nasceu Isaque, seu filho. (Gênesis 21:3-5).
A reação de Abraão ao nascimento de Isaque poderia ser descrita como “obediente”. Em obediência às instruções recebidas em Gênesis 17, ele chamou o bebê de Isaque e o circuncidou ao oitavo dia. Portanto, Abraão seguiu as instruções de Deus ao pé da letra, mas sem a alegria que poderia ter sentido.
Lembrem-se de que agora ele estava com cem anos de idade. De certa forma, ele e Sara foram mais avós do que pais para Isaque. Quem de nós teria ficado supercontente com o nascimento de um filho nessa idade? Quando Abraão poderia estar desfrutando dos benefícios do seguro social há mais de 35 anos, ele se tornou pai. E, quando estivesse com 113 anos, seu filho estaria entrando na adolescência.
Se a reação de Abraão ao nascimento do filho foi de mera obediência, a de Sara foi simplesmente radiante:
E disse Sara: Deus me deu motivo de riso; e todo aquele que ouvir isso vai rir-se juntamente comigo. E acrescentou: Quem teria dito a Abraão que Sara amamentaria um filho? Pois na sua velhice lhe dei um filho.
O nome Isaque significa “riso”. Tanto Abraão quanto Sara, ao serem informados sobre o filho que devia nascer deles, se riram (cf. 17:17; 18:12). Acima de tudo, seu riso foi motivado pelo pensamento absurdo de ter um filho num período tão tardio da vida. No entanto, agora o nome Isaque assume um significado totalmente novo, pois ele é um deleite para sua mãe, que experimenta os prazeres da maternidade em idade tão avançada.
A falta de entusiasmo de Abraão a respeito de Isaque pode parecer mera conjectura, e precisamos admitir isso com toda franqueza, mas os acontecimentos dos versículos 8 a 21 com certeza parecem reforçar essa impressão.
No dia em que Isaque foi desmamado, Abraão deu um grande banquete. Parece que esse era um motivo de comemoração. Precisamos ter em mente que o desmame de uma criança naquele tempo ocorria bem mais tarde do que hoje em dia. Isaque devia ter mais ou menos uns três ou quatro anos, ou até mais.
A visão do filho de Agar na festa tirou de Sara toda a alegria. Nessa época, Ismael provavelmente já tinha entrado na adolescência e devia refletir o desprezo de sua mãe por Sara e seu filho. Pelo contexto, é difícil dizer se ele estava mesmo caçoando de Isaque ou se estava apenas brincando e se divertindo, uma vez que a palavra empregada no versículo nove pode significar tanto uma coisa como outra. O comentário de Paulo em Gálatas 4:29, no entanto, nos informa que o sentido pretendido por Moisés era o de zombaria1. Sara decidiu que alguma coisa precisava ser feita para acabar com aquilo de uma vez por todas. Com determinação, ela deu um ultimato a Abraão:
Rejeita essa escrava e seu filho; porque o filho dessa escrava não será herdeiro com Isaque, meu filho. (Gênesis 21:10)
Como Sara parece outra pessoa nesse momento! Quanta diferença entre a sua descrição na epístola de Pedro e a descrição feita por Moisés:
Não seja o adorno da esposa o que é exterior, como frisado de cabelos, adereços de ouro, aparato de vestuário; seja, porém, o homem interior do coração, unido ao incorruptível trajo de um espírito manso e tranquilo, que é de grande valor diante de Deus. Pois foi assim também que a si mesmas se ataviaram, outrora, as santas mulheres que esperavam em Deus, estando submissas a seu próprio marido, como fazia Sara, que obedeceu a Abraão, chamando-lhe senhor, da qual vós vos tornastes filhas, praticando o bem e não temendo perturbação alguma (1 Pedro 3:3-6).
Obviamente, no capítulo 21, Sara não está nos seus melhores dias, nem Abraão. Algumas pessoas tentam elogiá-la pela profunda visão espiritual a respeito do fato de Isaque ser o herdeiro, não Ismael. Pessoalmente, creio que seus motivos principais foram o ciúme e um instinto protetor para que seu filho tivesse o que era destinado a ele.
Sara, como qualquer cristão que conheço, teve momentos que ela gostaria rapidamente de esquecer. Este, com certeza, é um deles. O fato de Pedro usá-la como exemplo de humildade e submissão considera este episódio como uma exceção à regra. De forma semelhante, o escritor aos hebreus fala de Abraão e Sara como aqueles cuja fé devemos imitar. Seus erros e pecados não são mencionados porque já foram tratados de uma vez por todas sob o sangue de Cristo. Além disso, seus pecados não são o foco principal do autor em hebreus, e sim sua fé. Os pecados dos homens são registrados na Escritura para nos lembrar de que os homens e mulheres do passado não são diferentes de nós e servem como alerta e instrução para não repetirmos os mesmos erros (cf. 1 Coríntios 10:11).
Abraão ficou profundamente triste pela decisão que foi obrigado a tomar (Gênesis 21:11). Pelo capítulo 17, sabemos que ele era muito ligado a seu filho Ismael e teria ficado contente se ele fosse o herdeiro por meio de quem as promessas de Deus seriam cumpridas. No entanto, isso era impossível, pois Ismael era fruto de esforços humanos, destituídos de fé (cf. Gálatas 4:21).
O apego de Abraão a Ismael era tão grande que foi preciso uma crise para que ele pudesse compreender a situação. Embora não possamos justificar a motivação para o ultimato de Sara, pessoalmente, creio que ele foi necessário para forçar Abraão a deixar de lado suas aspirações para esse filho.
Deus garantiu a Abraão que, por mais dolorosa e desagradável que fosse a situação, afastar Ismael era a coisa certa a fazer. Neste caso, ele deveria ouvir sua esposa:
Não te pareça isso mal por causa do moço e por causa da tua serva; atende a Sara em tudo o que ela te disser; porque por Isaque será chamada a tua descendência. (Gênesis 21:12)
É preciso observar que tanto Agar quanto o menino eram muito caros ao coração de Abraão. Até agora, Agar foi chamada de a serva de Sara, mas aqui ela é chamada por Deus de “sua serva”. Sara, lembrem-se, tinha muito ciúmes de Agar e seu filho (cf. Gênesis 16:5). É impossível para um homem ter um relacionamento íntimo como o que Abraão teve com Agar e depois simplesmente ir embora. Sara sabia disso, e Deus também. Mais do que fisicamente, Abraão tinha se tornado um com Agar, e Ismael era evidência dessa união.
No capítulo 17, Deus tinha Se recusado a aceitar Ismael como herdeiro de Abraão. Isaque, Ele disse, seria o herdeiro da promessa (17:19). Portanto, era necessário que Ismael fosse mandado embora e destituído para sempre do status de herdeiro. Era por isso que as exigências de Sara deviam ser atendidas e Ismael despachado. Ainda assim, as promessas feitas por Deus a Agar (16:10-12) e a Abraão (17:20) a respeito de Ismael seriam honradas: “Mas também do filho da serva farei uma grande nação, por ser ele teu descendente” (Gênesis 21:13).
Mandar embora o filho de uma concubina não era um fato sem precedentes naquela época. Na lei 146 do Código de Hamurabi, os filhos das escravas que não fossem feitos herdeiros deveriam ser libertos como compensação2. O fato de Abraão mandar Ismael embora se encaixa muito bem nessa prática. Dando-lhe a liberdade, Abraão estava indicando que Ismael não tinha parte em sua herança, a qual devia ser exclusivamente de Isaque.
Abraão se levantou bem cedo para despachar Agar e Ismael. Talvez isso seja evidência de sua determinação em cumprir uma tarefa tão desagradável, como sugere Kidner3. Embora não soe muito espiritual, eu me pergunto se seus motivos não seriam outros. No deserto, partir logo de manhãzinha com certeza seria mais prudente, pois a viagem seria feita no período mais fresco do dia. Mas, além disso, uma partida antecipada tornaria mais fácil uma despedida sem a interferência de Sara. Creio que Abraão queria expressar sua profunda afeição por Agar e Ismael sem uma audiência hostil.
Alguns sugerem que Agar tenha se perdido no deserto, o que explicaria porque ela “andou errante pelo deserto de Berseba” (versículo 14). Por que ela não voltou ao Egito, para onde parecia se dirigir quando fugia de Sarai (16:7 e ss)? Além disso, tempos depois, seria de lá que ela tomaria uma esposa para Ismael (versículo 21). Creio que Agar não voltou ao Egito porque acreditava que Deus cumpriria Suas promessas a respeito de Ismael no lugar por onde vagava. Nesse sentido, ela peregrinou pelo deserto, tal qual Abraão, acreditando que Deus os abençoaria ali.
Finalmente as provisões dadas por Abraão acabaram e a morte parecia bater à porta. Aqui, Ismael já não é mais criança, como poderíamos supor, mas adolescente, pois era quase quatorze anos mais velho que Isaque (cf. 17:15). Sem querer vê-lo morrer, Agar o deixou a alguma distância, sob a sombra de uns arbustos. Ela, então, ergueu a voz e chorou.
Não foi o choro de Agar que chamou a atenção de Deus, mas o do rapaz4. Como descendente de Abraão, Ismael era objeto do Seu cuidado especial. Seu choro ocasionou a intervenção divina:
Deus, porém, ouviu a voz do menino; e o Anjo de Deus chamou do céu a Agar e lhe disse: Que tens, Agar? Não temas, porque Deus ouviu a voz do menino, daí onde está. Ergue-te, levanta o rapaz, segura-o pela mão, porque eu farei dele um grande povo. (Gênesis 21:17-18)
A solução para o problema de Agar já estava lá. Devido às suas lágrimas, ela não conseguia ver o poço ali perto. O mais provável é que o poço não fosse uma estrutura visível, apenas uma pequena fonte de água escondida entre os arbustos. Deus, então, fez com que ela visse as coisas como elas realmente eram, e ela e o rapaz foram revigorados e revividos.
A obra de Deus na vida de Agar talvez pareça um pouco dura para nós, mas entendo que Suas ações deveriam ser no sentido de que Suas promessas fossem cumpridas. Lembrem-se de que Ismael ia ser como um “jumento selvagem”, hostil para com seus irmãos e um espírito livre. Esse tipo de homem não podia ser educado na cidade, com todas as suas regalias e vantagens. Aprender a sobreviver no deserto, superando as adversidades, foi exatamente o que fez de Ismael um homem como esse. Da mesma forma que o campo de treinamento produz um bom fuzileiro naval, a sobrevivência no deserto fez de Ismael um homem.
Os versículos 22 a 34 descrevem um incidente particular na vida de Abraão. O acordo feito entre ele e Abimeleque é importante tanto para ele quanto para nós. Por implicação, o acordo diz muita coisa a respeito dos medos e da fé de Abraão.
O encontro entre esses três personagens foi de grande importância. Abraão era reconhecido como um homem de influência e poder. Mais ainda, ele era conhecido por ser objeto do amor e proteção divinos. Abimeleque e Ficol foram até ele; eles não foram lá para convidá-lo a ir ao palácio. Foram para fazer um trato:
Por esse tempo, Abimeleque e Ficol, comandante do seu exército, disseram a Abraão: Deus é contigo em tudo o que fazes; agora, pois, jura-me aqui por Deus que me não mentirás, nem a meu filho, nem a meu neto; e sim que usarás comigo e com a terra em que tens habitado daquela mesma bondade com que eu te tratei. (Gênesis 21:22-23)
É difícil imaginar o tamanho do constrangimento que esse pedido deve ter causado a Abraão. Eis o rei da nação onde Abraão vivia, junto com seu primeiro ministro, indo até ele para propor-lhe um trato. Eles reconheceram que o motivo principal que os levou até Abraão foi o fato de ele ser uma pessoa amada por Deus. Resumindo, aqueles homens estavam a par, por experiência própria, da aliança abraâmica:
De ti farei uma grande nação, e te abençoarei, e te engrandecerei o nome. Sê tu uma bênção! Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; em ti serão benditas todas as famílias da terra. (Gênesis 12:2-3)
Abimeleque procurou fazer um trato com Abraão porque nunca quis lutar contra ele. Pelejar com Abraão era atacar o Deus de Abraão e ter de contender com Ele. Por outro lado, fazer aliança com Abraão era ter Deus ao seu lado. Não é de admirar que Abimeleque estivesse tão ansioso para fazer esse acordo.
No entanto, percebem a lição que isso deve ter ensinado a Abraão? Ele havia mentido para Abimeleque a respeito de Sara, pois pensava que naquele lugar não havia temor de Deus e, portanto, numa nação pagã, não havia proteção para ele (cf. 20:11). Deus repreendeu sua incredulidade por meio deste testemunho vindo dos lábios de Abimeleque.
Além disso, sua mentira também foi repreendida. Como você se sentiria se um rei e seu primeiro ministro o elogiassem, reconhecendo o seu relacionamento especial com Deus, e depois o fizessem prometer que nunca mais mentiria para eles? Abimeleque respeitava o Deus de Abraão, mas não tinha tanta certeza quanto à credibilidade de Abraão. Colocando-o sob juramento, Abimeleque procurou resolver o problema da tapeação. Ele quase perdera a vida por causa da mentira de Abraão (20:3); e não queria que isso acontecesse de novo.
Uma vez feito o trato, Abraão procurou apresentar uma queixa específica que poderia ser resolvida dentro dos termos recém ajustados. Ele reclamou de um poço que seus servos tinham cavado e que, em seguida, foi confiscado pelos servos de Abimeleque (versículo 25). Abimeleque não só alegou desconhecer o fato, como pareceu fazer uma pequena reprimenda por Abraão não ter levado o caso a ele pessoalmente (versículo 26). Assim, uma aliança específica a esse respeito foi feita e sete cordeiras cedidas por Abraão serviram como sinal do acordo (versículos 28 a 31). Abimeleque e Ficol seguiram seu caminho e Abraão prestou culto ao Senhor, em agradecimento por essa aliança, plantando tamargueiras. E, assim, Abraão ficou na terra dos filisteus por muito tempo.
A lição que Abraão aprendeu com esse incidente foi surpreendente. Ele temia perder a vida e a da esposa no meio daqueles “pagãos” (20:11). Deus lhe mostrou que Abimeleque reconhecia sua situação privilegiada diante de Deus e que, por causa disso, não lhe teria causado mal algum. Abimeleque não só não tomaria uma esposa que não era sua, como também não tomaria um poço que não lhe pertencia. Como os temores de Abraão parecem tolos depois deste incidente!
Várias lições emergem desta passagem da história de Abraão. Primeiro, precisamos concluir que as bênçãos de Deus continuam sendo recebidas pelo Seu povo mesmo nas épocas em que sua fé está na pior fase. Neste capítulo, não vemos nem Abraão nem Sara em sua melhor fase; no entanto, Deus lhes deu o filho prometido, preservou a vida de Agar e Ismael e propiciou uma aliança com um rei pagão que deu a Abraão uma posição privilegiada.
A fim de não concluirmos que santidade não seja importante, também é preciso dizer que a desobediência tem consequências dolorosas. Mesmo depois de muitos anos da união de Abraão com Agar, uma união que negava o poder de Deus para cumprir as promessas da Sua aliança, Abraão teve de encarar seu erro e mandar embora seu filho amado. Cedo ou tarde os frutos do pecado serão colhidos pelo pecador. Por isso, aqui, a postura horrível de Sara, a separação chorosa de Abraão e o quase encontro de Agar e seu filho com a morte no deserto foram consequências do ato impetuoso de Abraão com Agar.
Em segundo lugar, devemos nos lembrar de que, às vezes, as coisas certas acontecem pelas razões erradas. Não creio que tenha sido mostrado o melhor ângulo de Sara neste capítulo. Não vejo nela um espírito manso e submisso em seu confronto com Abraão. Todavia, precisamos concluir que, por Deus ter dito a Abraão que a obedecesse, a coisa certa a fazer era despachar Ismael, de uma vez por todas. Isso abriu caminho para o “sacrifício de Isaque” no capítulo seguinte, pois só então Deus pôde dizer a Abraão: “Toma teu filho, teu único filho, Isaque, a quem amas, e vai-te à terra de Moriá; oferece-o ali em holocausto…” (Gênesis 22:2).
Por toda a Bíblia vemos que as coisas certas muitas vezes são resultado de razões erradas. Por exemplo, José foi enviado ao Egito para abrir caminho para a salvação da nação de Israel, mas foi a traição de seus irmãos que o mandou para lá, os quais achavam que estavam se livrando dele ao vendê-lo como escravo. Satanás afligiu Jó para tentar provar que os crentes só creem em Deus quando têm algum benefício. Deus, no entanto, permitiu que Jó fosse testado para dar a Satanás (e a nós) uma lição de fé.
Você está passando por alguma situação difícil ou aflitiva? Talvez seja por causa da deslealdade ou maldade de alguém. No que diz respeito a você, isso realmente não importa. Se você crê num Deus que é verdadeiramente soberano, que está realmente no controle, então precisa aceitar o fato de que Ele o levou ao lugar certo por motivos errados. As razões talvez não sejam louváveis, mas você pode ter certeza de que Deus o tem nesse lugar por um bom motivo.
Em terceiro lugar, aprendemos que a maioria dos nossos medos são totalmente infundados. Abraão se preocupava com sua segurança e a de sua esposa. Ele acreditava que Deus seria obedecido e Seu povo protegido somente onde Ele fosse conhecido e temido. Abraão devia aprender com o trato feito com Abimeleque que Deus cuida daqueles que são Seus. Se Abimeleque não ousava tomar um poço, quanto mais uma esposa ou uma vida. Todas as maquinações de Abraão foram por nada. A fé descansa nas promessas da aliança de Deus; o medo não tem sentido.
Finalmente, a resposta de Deus aos nossos problemas, com frequência, é a solução que estava ao nosso alcance, mas a nossa ansiedade nos impedia de vê-la. Amo o fato de Agar ter visto o poço que já estava ali. Foram suas lágrimas e seus medos que a impediram de vê-lo. O choro daqueles que pertencem a Deus sempre O alcançarão, mas a resposta não precisa ser espetacular ou milagrosa, como às vezes esperamos ou queremos. Muitas vezes, a resposta será aquela que, no devido tempo, é óbvia.
Você pertence a Ele, meu amigo? Se você crê na obra salvadora de Jesus Cristo em seu favor, então pertence. E, se pertence, Deus cuida de você. Aqueles que pertencem a Ele não precisam temer, pois Ele está com eles; na verdade, Ele está neles. E, a maior de todas as maravilhas, Ele nos trata com graça. Mesmo nas nossas horas mais tenebrosas, Ele é fiel e Suas promessas são verdadeiras.
© 2017 Bible.org. All Rights Reserved.
Tradução e Revisão: Mariza Regina de Souza
1 A palavra “brincando” na Versão Padrão Revisada (em inglês) não faz jus ao contexto: a tradução deveria ser “caçoando” (como em outras versões). Este é o modo intensivo do nome-verbo de Isaque, “rir”; o sentido aqui, exigido pelo contexto e por Gálatas 4:29 (“perseguia”), é pejorativo! Derek Kidner, Gênesis (Chicago: Inter-Varsity Press, 1967), p. 140.
2 O Código de Hamurabi afirma que os filhos não reconhecidos de escravos, embora não tivessem parte nos bens, deveriam ser libertados (Lei 171). Harold Stigers, Comentário em Gênesis (Grand Rapids: Zondervan, 1976), p. 185.
3 Kidner, Genesis, p. 140.
4 Não é coincidência o significado do nome “Ismael” ser “Deus ouve” (cf. Gênesis 16:11)
Quando me inscrevi para entrar no Seminário Teológico de Dallas (Texas, Estados Unidos), ao preencher o formulário de admissão, tive de responder algumas perguntas. Uma delas dizia respeito a uma área de interpretação bíblica em que há muita discordância entre os cristãos. Lembro-me de ter escrito que, embora concordasse pessoalmente com a opinião do seminário, não achava que a passagem citada desse embasamento a ela. Durante três anos ninguém disse nada. No que me dizia respeito, a questão estava encerrada.
Pouco antes do início do meu último ano no seminário, fui chamado à sala do reitor para um pequeno debate. Para meu espanto, a questão da diferença de opinião entre mim e a escola foi levantada. Caso interesse saber, minha posição pouco mudou, mesmo depois de anos de estudo e um pouco mais de aprendizado das línguas originais da Bíblia. Até certo ponto satisfeito com minhas respostas, o seminário me permitiu continuar o programa de estudos e me formar no ano seguinte.
O ponto onde quero chegar com essa ilustração é que, embora tenham permitido que a diferença de interpretação persistisse, houve uma época em que ela se tornou uma questão importante. Creio que, muitas vezes, Deus faça a mesma coisa. Ele permite que um determinado problema continue durante algum tempo, mas, mais cedo ou mais tarde, ele se tornará uma questão importante, e terá de ser resolvido.
Foi isso o que aconteceu com Abraão. Bem no início de seu relacionamento com Deus, ele recebeu uma ordem muito clara a respeito da sua família:
Ora, disse o SENHOR a Abrão: Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai e vai para a terra que te mostrarei (Gênesis 12:1, ênfase do autor).
Sabemos, no entanto, que se passaram muitos anos até Abraão ser separado de seu pai; e quando isso realmente aconteceu, foi em consequência de morte, não de obediência de fato. Depois, foi sua relutância em se separar de Ló. No capítulo 21, foi o doloroso ato de ter de despachar Ismael, seu filho tão amado. No capítulo 22, Abraão chegou à sua última prova. Ele já era bem idoso e Sara logo iria morrer. Seu amor era dedicado a Isaque, o qual, após o capítulo 21, se tornou seu único filho (22:2). Deus levou Abraão a um ponto em que ele precisou dar prioridade à sua fé ou à sua família. Por isso, no capítulo 22, ele se defrontou com a maior prova da sua fé.
Não sabemos exatamente em que época se deu esta última prova na vida de Abraão, só que ocorreu após os acontecimentos do capítulo 21. Pessoalmente, creio que foi uns dez anos depois, o que faria de Isaque um garoto mais ou menos da mesma idade de Ismael quando este foi mandado embora. Isso daria bastante tempo para a afeição de Abraão pelo primeiro filho ser transferida para o segundo, Isaque. Portanto, Isaque é, acertadamente, chamado de seu “único filho” e o filho a quem Abraão amava (versículo 2).
Contrariamente à conotação do termo “tentado”, empregado pelos tradutores da Versão King James no versículo dois, Deus provou Abraão para demonstrar sua fé em termos tangíveis. De acordo com a Escritura, sabemos que, embora Deus teste os homens para provar seu caráter santo, Ele nunca os leva a pecar (cf. Tiago 1.12-18). É por isso que, em Tiago 2, o apóstolo pode apontar para este acontecimento na vida de Abraão como evidência de uma fé viva:
Não foi por obras que Abraão, o nosso pai, foi justificado, quando ofereceu sobre o altar o próprio filho, Isaque? (Tiago 2.21).1
A ordem de Deus deve ter pego Abraão totalmente desprevenido:
Acrescentou Deus: Toma teu filho, teu único filho, Isaque, a quem amas, e vai-te à terra de Moriá; oferece-o ali em holocausto, sobre um dos montes, que eu te mostrarei (Gênesis 22.2).
A maior dificuldade que encontro neste capítulo não é a conduta de Abraão, mas a ordem de Deus. Como pode um Deus de sabedoria, misericórdia, justiça e amor ordenar a Abraão que ofereça seu único filho como sacrifício? O sacrifício de crianças era praticado pelos cananeus, mas foi condenado por Deus (cf. Levítico 18.21; Deuteronômio 12.31). Além disso, esse tipo de sacrifício não tinha valor algum:
Agradar-se-á o SENHOR de milhares de carneiros, de dez mil ribeiros de azeite? Darei o meu primogênito pela minha transgressão, o fruto do meu corpo, pelo pecado da minha alma? (Miqueias 6.7)
Dizer que Deus interrompeu Abraão pouco antes da execução não resolve o problema. Como, em primeiro lugar, Ele poderia dar uma ordem como essa, se ela era imoral? Sustentar que Deus poderia ordenar a Seus filhos fazer algo errado, mesmo como um teste, é abrir as obras a todo tipo de dificuldade.
Vários fatores devem ser considerados para entendermos esta prova da forma apropriada. Em primeiro lugar, é preciso admitir um forte viés nesse assunto. Nós, que somos pais, sentimos repulsa só de pensar em sacrificar nossos filhos num altar. Por isso, projetamos nossa aversão em Deus, supondo que Ele também nunca pensou nisso. Em segundo lugar, vemos essa ordem do ponto de vista da cultura daquela época, que realmente praticava o sacrifício infantil. Se os pagãos praticavam, e Deus os condenava por isso, a prática tem de ser errada em qualquer contexto.
Mas somos forçados a concluir que o sacrifício de Isaque não poderia ser errado, quer fosse apenas tentado quer fosse realizado, pois Deus é incapaz de praticar o mal (Tiago 1.13 e ss; 1 João 1.5). Muito mais que isso, não poderia ser errado sacrificar um filho único porque Deus realmente sacrificou Seu único Filho:
Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas; cada um se desviava pelo caminho, mas o SENHOR fez cair sobre ele a iniquidade de nós todos… Todavia, ao SENHOR agradou moê-lo, fazendo-o enfermar; quando der ele a sua alma como oferta pelo pecado, verá a sua posteridade e prolongará os seus dias; e a vontade do SENHOR prosperará nas suas mãos (Isaías 56.3, 10).
Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna (João 3.6; cf. Mateus 26.39, 42; Lucas 22.22; João 3.17; Atos 2.23; 2 Coríntios 5.21; Apocalipse 13.8).
Nesse sentido, Deus não pediu a Abraão para fazer algo que Ele mesmo não faria. De fato, a ordem de Deus tinha como objetivo preanunciar aquilo que Ele faria séculos depois na cruz do Calvário.
Só compreendendo a importância tipológica do “sacrifício de Isaque” podemos entender que a ordem de Deus é santa, justa e pura. A disposição de Abraão em renunciar ao seu único filho ilustrou, humanamente, o amor de Deus pelo homem, o qual O levou a dar o Seu Filho unigênito. A profunda agonia experimentada por Abraão refletiu o coração do Pai diante do sofrimento de Seu Filho. A obediência de Isaque tipificou a submissão do Filho à vontade do Pai (cf. Mateus 26.39, 42).
Deus interrompeu o sacrifício de Isaque por duas razões. Primeira, seu sacrifício não teria beneficiado outras pessoas. O cordeiro precisava ser “sem defeito”, sem pecado, inocente (cf. Isaías 53.9). Essa é a verdade implícita em Miqueias (6.7). Segunda, a fé de Abraão foi amplamente demonstrada no fato de ele estar totalmente disposto a cumprir a vontade de Deus. Sem sombra de dúvida, se Deus não tivesse intervindo, Isaque teria sido sacrificado. Na prática, Isaque já tinha sido sacrificado, por isso o ato era desnecessário.
A segunda dificuldade está no silêncio de Abraão. Um de meus amigos diz o seguinte: “Como é possível que Abraão tenha intercedido junto a Deus por Sodoma, mas não por seu filho, Isaque?” Precisamos nos lembrar de que as Escrituras são seletivas quanto ao que registram, preferindo omitir aquilo que não é essencial ao desenvolvimento do argumento da passagem (cf. João 20.30-31; 21.25). Neste capítulo de Gênesis, por exemplo, sabemos que Deus indicou um lugar específico para o “sacrifício” de Isaque (versículo 2) e que Abraão foi àquele local (versículo 9), mas não sabemos quando Deus revelou isso a ele.
Creio que Moisés, sob a orientação e supervisão do Espírito Santo, omitiu a reação inicial de Abraão à ordem de Deus para ressaltar sua resposta final — a obediência. Pessoalmente (embora não haja base na Escritura para sustentar minha suposição), creio que Abraão discutiu com Deus e implorou pela vida de seu filho, mas Deus preferiu não registrar esse ponto porque seria de pouco incentivo para nós. Sei que muitos crentes também não gostariam que Deus registrasse sua primeira reação a situações desagradáveis; é a reação final que importa (cf. Mateus 21.28-31).
Isso me ajuda quando leio, no Novo Testamento, a avaliação dos santos do Antigo Testamento. Não fossem as palavras de Pedro, eu nunca teria considerado Ló como um homem justo (2 Pedro 2.7-8). Em Hebreus 11 e Romanos 4, Abraão é retratado como um homem sem falhas ou defeitos, no entanto, o livro de Gênesis registra claramente suas fraquezas. A razão, creio, é porque os escritores do Novo Testamento veem aqueles santos como Deus os vê. Por causa da morte sacrificial de Cristo na cruz do Calvário, os pecados dos santos não são apenas perdoados, são também esquecidos. A madeira, o feno e a palha do pecado serão consumidos, deixando apenas o ouro, a prata e as pedras preciosas (1 Coríntios 3.1-15). Os pecados dos santos não são ignorados; eles são cobertos pelo sangue de Cristo. Quando esses pecados são registrados, é apenas para nossa admoestação e instrução (1 Coríntios 10.1 e ss, especialmente o versículo 11).
A despeito das lutas não relatadas de Abraão, ele se levantou de manhã bem cedo para começar a jornada mais longa da sua vida.
Levantou-se, pois, Abraão de madrugada e, tendo preparado o seu jumento, tomou consigo dois dos seus servos e a Isaque, seu filho; rachou lenha para o holocausto e foi para o lugar que Deus lhe havia indicado (Gênesis 22.3).
Já disse que, embora levantar-se de madrugada possa refletir a determinação de Abraão em fazer a vontade de Deus, isso também pode conter alguns fatores humanos. Primeiro, imagino que o sono tenha fugido de Abraão naquela noite, especialmente após Deus ter ordenado claramente o sacrifício de Isaque. Algumas pessoas se levantam cedo por não terem esperança de pegar no sono novamente. Além disso, eu também não gostaria de deixar que Sara desconfiasse dos meus planos para os próximos dias. Enquanto Abraão estava resignado a fazer a vontade de Deus, Sara nem sabia o que ia acontecer (pelo menos, até onde vai o registro das Escrituras).
Depois de uma dolorosa jornada de três dias, a montanha do sacrifício é avistada. Nesse ponto, Abraão deixa seus servos e segue sozinho com Isaque:
Então, disse a seus servos: Esperai aqui, com o jumento; eu e o rapaz iremos até lá e, havendo adorado, voltaremos para junto de vós. Tomou Abraão a lenha do holocausto e a colocou sobre Isaque, seu filho; ele, porém, levava nas mãos o fogo e o cutelo. Assim, caminhavam ambos juntos (Gênesis 22.5-6).
Mesmo em meio à grande angústia da alma, há uma bela expressão de fé e esperança no versículo 5:
Então, disse a seus servos: Esperai aqui, com o jumento; eu e o rapaz iremos até lá e, havendo adorado, (nós) voltaremos para junto de vós (ARA, ênfase do autor).
Não creio que essas palavras foram ditas em vão, mas que refletiram uma profunda confiança em Deus e nas Suas promessas. O Deus que ordenara o sacrifício de Isaque também prometera que dele nasceria uma grande nação (17.15-19; 21.12).
Enquanto os dois sozinhos subiam a montanha, em direção ao lugar do sacrifício, Isaque fez uma pergunta que deve ter cortado o coração de Abraão: “Eis o fogo e a lenha, mas onde está o cordeiro para o holocausto?” (versículo 7).
A resposta deve ter sido muito penosa para Abraão; no entanto, ela não é apenas deliberadamente vaga, ela também contém um quê de esperança: “Deus proverá para si, meu filho, o cordeiro para o holocausto; e seguiam ambos juntos” (versículo 8).
A cada passo, Abraão deve ter esperado que houvesse alguma mudança de planos, alguma alternativa. Eles chegaram ao local, o altar foi construído e a lenha arrumada. Finalmente, não havia mais nada a fazer, a não ser amarrar Isaque, colocá-lo sobre a lenha e cravar o cutelo em seu coração.
Somente quando o cutelo já estava no alto, reluzindo ao sol, Deus impediu Abraão de oferecer seu filho em sacrifício:
Mas do céu lhe bradou o Anjo do SENHOR: Abraão! Abraão! Ele respondeu: Eis-me aqui! Então, lhe disse: Não estendas a mão sobre o rapaz e nada lhe faças; pois agora sei que temes a Deus, porquanto não me negaste o filho, o teu único filho (Gênesis 22.11-12).
No último minuto ficou claro que Abraão estava disposto a renunciar a tudo, até mesmo ao filho, seu único filho, por amor a Deus. Embora Deus já conhecesse seu coração, a reverência de Abraão agora foi evidenciada pela prática.
Foi também no auge da sua obediência que veio a provisão de Deus. Deus não interrompeu o ato de sacrifício; Ele providenciou um carneiro como substituto de Isaque:
Tendo Abraão erguido os olhos, viu atrás de si um carneiro preso pelos chifres entre os arbustos; tomou Abraão o carneiro e o ofereceu em holocausto, em lugar de seu filho (versículo 13).
Por essa experiência, vemos que a fé de Abraão na provisão de Deus para a oferta sacrificial (versículo 8) foi honrada e que Deus realmente proveu:
E pôs Abraão por nome àquele lugar - O SENHOR Proverá. Daí dizer-se até ao dia de hoje: No monte do SENHOR se proverá.
Além da intervenção de Deus para evitar que Abraão sacrificasse seu filho, houve também a confirmação das Suas promessas por meio de Isaque:
Então, do céu bradou pela segunda vez o Anjo do SENHOR a Abraão e disse: Jurei, por mim mesmo, diz o SENHOR, porquanto fizeste isso e não me negaste o teu único filho, que deveras te abençoarei e certamente multiplicarei a tua descendência como as estrelas dos céus e como a areia na praia do mar; a tua descendência possuirá a cidade dos seus inimigos, nela serão benditas todas as nações da terra, porquanto obedeceste à minha voz. Então, voltou Abraão aos seus servos, e, juntos, foram para Berseba, onde fixou residência (Gênesis 22.15-19).
Há pouca coisa nova nesta confirmação divina2, embora haja uma mudança impressionante. Nas ocasiões anteriores, estas promessas foram feitas de forma incondicional (cf. 12.1-3; 15.13-16; 18-21). Aqui, as bênçãos são prometidas a Abraão porque ele obedeceu a Deus nesta prova (22.16, 18).
No entanto, a mudança não é tão dramática quanto possa parecer a princípio. No capítulo 17, Deus reafirmou Suas promessas, começando com estas palavras: “Eu sou o Deus Todo-Poderoso; anda na minha presença e sê perfeito. Farei uma aliança…” (versículos 1 e 2).
Além disso, Abraão foi instruído a “guardar a Minha aliança” (17.9, 10, 11). E, depois, no capítulo 18, lemos:
… visto que Abraão certamente virá a ser uma grande e poderosa nação, e nele serão benditas todas as nações da terra? Porque eu o escolhi para que ordene a seus filhos e a sua casa depois dele, a fim de que guardem o caminho do SENHOR e pratiquem a justiça e o juízo; para que o SENHOR faça vir sobre Abraão o que tem falado a seu respeito (18.18-19).
Precisamos entender que o fato de Deus ter escolhido Abraão incluía não só o fim proposto por Ele (as bênçãos), mas também os meios (fé e obediência). Depois da sua última prova no monte Moriá, Deus pôde dizer que as bênçãos eram resultado da obediência decorrente da fé. Essa mesma sequência é muito clara no Novo Testamento:
Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie. Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas. (Efésios 2.8-10)
Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito. Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou (Romanos 8.28-30).
A obra de Deus começa com uma promessa que precisa ser aceita pela fé. Depois, essa fé, se for genuína, será demonstrada por boas obras (cf. Tiago 2). As promessas de Deus são uma certeza para todos os crentes, pois Deus é soberano em cada etapa — da fé à obediência, da obediência à bênção.
Este incidente na vida de Abraão teve diversas consequências para ele.
(1) Cuidou de um problema que atormentou Abraão durante toda a sua vida — o vínculo prejudicial com sua família. Foi aqui que Abraão teve de escolher a quem colocar em primeiro lugar: Isaque ou Deus. Sua obediência, finalmente, deu um jeito nesse problema.
(2) Sua obediência à vontade revelada de Deus comprovou sua profissão de fé:
Assim, também a fé, se não tiver obras, por si só está morta. Mas alguém dirá: Tu tens fé, e eu tenho obras; mostra-me essa tua fé sem as obras, e eu, com as obras, te mostrarei a minha fé. Crês, tu, que Deus é um só? Fazes bem. Até os demônios creem e tremem. Queres, pois, ficar certo, ó homem insensato, de que a fé sem as obras é inoperante? Não foi por obras que Abraão, o nosso pai, foi justificado, quando ofereceu sobre o altar o próprio filho, Isaque? Vês como a fé operava juntamente com as suas obras; com efeito, foi pelas obras que a fé se consumou, e se cumpriu a Escritura, a qual diz: Ora, Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça; e: Foi chamado amigo de Deus (Tiago 2.17-23).
Nestes versículos, Tiago não está discordando de Paulo. Ele concorda que uma pessoa é salva pela fé, não pelas obras (cf. Romanos 4), mas ele defende que uma fé salvadora é uma fé operante. Uma fé professada, mas não praticada, é uma fé morta. Embora Abraão tenha sido justificado diante de Deus por crer nas Suas promessas (Gênesis 15.6; Romanos 4.3), ele foi justificado diante dos homens por sua obediência (Gênesis 22; Tiago 2). Deus podia examinar o coração de Abraão e ver que sua fé era genuína; nós precisamos olhar para a sua obediência para ver que sua profissão de fé era sincera.
(3) A obediência de Abraão resultou em crescimento espiritual e numa compreensão mais profunda da pessoa e das promessas de Deus. Nenhuma outra experiência na vida de Abraão deixou mais evidente a pessoa e a obra de Cristo. É por isso que nosso Senhor pôde dizer aos judeus da Sua época: “Abraão, vosso pai, alegrou-se por ver o meu dia, viu-o e regozijou-se” (João 8.56). Ainda hoje, os tempos de provação também são tempos de crescimento na vida dos crentes.
(4) A provação de Abraão no monte Moriá o preparou para o futuro. Não é surpresa alguma que o capítulo seguinte (23) trate da morte de Sara. O que precisamos entender é que Deus usou o oferecimento de Isaque para preparar Abraão para a morte de sua esposa. Pelas palavras de Abraão (22.5), e por sua interpretação pelo escritor aos Hebreus (11.19), sabemos que a fé demonstrada por ele no monte Moriá era uma fé no Deus que podia ressuscitar homens e mulheres da morte (cf., ainda, Romanos 4.19). Embora Abraão só tivesse de enfrentar a morte no capítulo 23, ele lidou com ela no capítulo 22. Os testes de Deus, com frequência, são preparatórios para coisas maiores que estão por vir (cf. Mateus 4.1-11).
Além de cuidar de Abraão, Deus também usou este incidente no monte Moriá para instruir a nação de Israel, a qual recebeu este livro, bem como os outros quatro livros da lei, da pena de Moisés. Para aqueles que tinham acabado de receber a lei, com seu complicado sistema sacrificial, este acontecimento na vida de Abraão proporcionou uma compreensão mais profunda do significado do sacrifício. Eles deviam perceber que o sacrifício era substitutivo. O animal devia morrer no lugar do homem, exatamente do mesmo jeito que o carneiro foi provido para o lugar de Isaque. Mas eles também deviam perceber que um Filho, um Filho único, devia pagar o preço pelo pecado, o qual nenhum animal poderia pagar. Contra o pano de fundo do sacrifício no monte Moriá, todo o sistema sacrificial da Lei foi visto com um significado mais profundo e mais completo.
Este incidente na vida de Abraão também foi destinado à nossa edificação e instrução (1 Coríntios 10.6; 11). Permitam-me sugerir algumas coisas que devemos aprender com a vida de Abraão, como descrita no capítulo 22.
(1) Este acontecimento é uma bela prefiguração, um tipo, da morte de nosso Senhor Jesus Cristo. Abraão representa Deus Pai, O qual, por amor ao ser humano, deu Seu único Filho como sacrifício pelos pecadores (João 3.16). Isaque é um tipo de Cristo, O qual Se submete à vontade do Pai. Isaque carregou a lenha para o holocausto da mesma forma que nosso Senhor carregou Sua cruz (Gênesis 22.6; João 19.17). Foram três dias desde a partida de Abraão para o sacrifício até ele e seu filho voltarem juntos. Depois de três dias, Abraão recebeu seu filho de volta (Hebreus 11.9). Depois de três dias nosso Senhor ressurgiu dos mortos (João 20; 1 Coríntios 15.4).
Além de tudo isso, Isaque foi “sacrificado” no mesmo lugar onde nosso Senhor daria Sua vida séculos mais tarde, no monte Moriá, nos arredores de Jerusalém. De acordo com 2 Crônicas 3.1, sabemos que foi nesse lugar que o Senhor apareceu a Davi e onde Salomão construiu o templo. Assim, Abraão levou seu filho ao monte próximo a Jerusalém para oferecê-lo como sacrifício no mesmo lugar (ou próximo dele) onde nosso Senhor iria morrer anos depois. Que bela ilustração da infinita sabedoria de Deus e da Sua inspiração nas santas Escrituras!
(2) Esta passagem também nos lembra da importância da obediência para os cristãos. Foi devido à obediência de Abraão que as bênçãos prometidas foram confirmadas no clímax da nossa passagem (versículos 15 a 18). Muito embora o homem não seja salvo por suas obras, a fé salvadora inevitavelmente deve ser manifesta em boas obras (Efésios 2.8-10). Crer e obedecer são o caminho do cristão.
(3) Vemos também que a vida cristã é paradoxal. Parece que ela é meio contraditória. Abraão ganhou seu filho quando o entregou a Deus. Somos exaltados aos olhos de Deus quando consideramos os outros superiores a nós mesmos (Mateus 23.11; Filipenses 2.5 e ss). Somos líderes quando servimos; salvamos nossa vida quando a perdemos (Mateus 16.25). Os caminhos de Deus não são os caminhos do homem.
(4) A vida cristã não é vivida sem razão ou sem racionalidade. Tenho muito receio de que algumas pessoas leiam esta narrativa da vida de Abraão e concluam que Deus nos prova levando-nos a fazer algo que é totalmente irracional.
O perigo é a tendência que temos em presumir que qualquer coisa que não faça sentido para nós deve ser a vontade de Deus. Muitos críticos têm sugerido que cristãos são aqueles que tiram o chapéu, e a cabeça, quando entram na igreja. Mas não é assim.
Por outro lado, precisamos reconhecer que aquilo que Abraão foi ordenado a fazer parecia sem sentido. Por meio de Isaque ele deveria ser o pai de multidões. Como isso poderia acontecer se Isaque estivesse morto? Sacrificar um filho deve ter parecido totalmente contrário ao caráter de Deus. Será que Deus estava lhe pedindo para agir com fé irracional? Observe o que diz o escritor aos hebreus:
Pela fé, Abraão, quando posto à prova, ofereceu Isaque; estava mesmo para sacrificar o seu unigênito aquele que acolheu alegremente as promessas, a quem se tinha dito: Em Isaque será chamada a tua descendência; porque considerou que Deus era poderoso até para ressuscitá-lo dentre os mortos, de onde também, figuradamente, o recobrou. (Hebreus 11.17-19, ênfase do autor)
A palavra grega utilizada aqui, logizomai, expressamente claramente o fato de Abraão ter agido com a cabeça3. Não foi uma “fé cega”, como se costuma dizer. A fé sempre age com base nos fatos e na razão.
O que quero dizer é simples. O mundo gosta de acreditar que age usando a cabeça, enquanto os cristãos agem sem pensar. Mas esta é uma premissa totalmente falsa. A verdade é que existem dois tipos de raciocínio: o pensamento secular e o pensamento cristão. Pedro, quando censurou nosso Senhor por falar da Sua morte sacrificial, estava pensando humanamente:
Mas Jesus, voltando-se, disse a Pedro: Arreda, Satanás! Tu és para mim pedra de tropeço, porque não cogitas das coisas de Deus, e sim das dos homens. (Mateus 16.23)
Existem dois tipos de mentalidade: a cristã e a secular:
Porque os que se inclinam para a carne cogitam das coisas da carne; mas os que se inclinam para o Espírito, das coisas do Espírito. Porque o pendor da carne dá para a morte, mas o do Espírito, para a vida e paz. Por isso, o pendor da carne é inimizade contra Deus, pois não está sujeito à lei de Deus, nem mesmo pode estar. (Romanos 8.5-7)
O apelo de Paulo em Romanos 12 é dirigido tanto às nossas emoções quanto às nossas mentes:
Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional. E não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus. Porque, pela graça que me foi dada, digo a cada um dentre vós que não pense de si mesmo além do que convém; antes, pense com moderação, segundo a medida da fé que Deus repartiu a cada um. (Romanos 12.1-3)
O que devemos oferecer como sacrifício a Deus é o nosso corpo vivo, ou seja, o nosso ato de culto lógico ou racional (do grego logicos). Isso é realizado pela renovação da nossa mente (versículo 2). O ser humano inteiro foi afetado pela queda: suas emoções, seu intelecto e sua vontade. Portanto, tudo precisa passar por uma transformação radical a fim de sermos conformados à semelhança de nosso Senhor Jesus Cristo. Em Romanos 12.3 somos chamados a pensar, pensar, pensar. É para isso que serve a nossa mente renovada. O cristianismo é racional, mas de uma forma totalmente diferente da forma do mundo.
O raciocínio cristão tem como base a convicção de que há um Deus, O qual é o nosso criador e redentor (Hebreus 11.1 e ss). O raciocínio cristão tem como base a convicção de que a Palavra de Deus é absolutamente verdadeira e digna de confiança. Deus tinha prometido a Abraão um filho por meio de Sara e por meio do qual as bênçãos seriam recebidas. Abraão creu em Deus (Gênesis 15:6). Deus também lhe disse para sacrificar esse filho. E Abraão pôs sua fé em Deus e O obedeceu, apesar do raciocínio humano questionar a sabedoria disso.
O raciocínio de Abraão também tinha como base sua experiência com Deus ao longo dos anos. Continuamente, Deus tinha provado ser seu provedor e protetor. O poder soberano de Deus tinha sido repetidamente demonstrado, mesmo no meio de pagãos como faraó e Abimeleque. Embora Abraão e Sara estivessem “praticamente mortos”, no que se referia a gerar filhos, Deus lhes deu o filho prometido (Romanos 4.19-21).
Talvez Abraão não compreendesse porque recebera uma ordem para sacrificar seu filho, e nem como Deus iria cumprir Suas promessas se ele obedecesse, mas ele conhecia Aquele que lhe dera a ordem. Ele sabia que Deus era santo, justo e puro. Ele sabia que Deus era capaz de ressuscitar os mortos. Com base nessas convicções, contrárias à sabedoria humana, mas totalmente baseadas no raciocínio cristão, ele obedeceu a Deus. O raciocínio cristão tem suas razões. Podemos não saber como ou porque, mas sabemos Quem e o quê. E isso é suficiente!
(5) Nosso texto nos ensina um belo princípio: “... No monte do SENHOR se proverá” (versículo 14).
No versículo 8, Abraão assegurou a Isaque que Deus proveria o cordeiro, e assim o Senhor fez (versículo 13). O princípio não é que Deus proverá em determinado lugar, e sim que proverá sob certa condição. Num momento de fé e obediência, num momento de desamparo e dependência, Deus proverá. Muitas vezes, creio, não vemos a provisão de Deus porque não chegamos ao ponto de desespero.
Lembro-me da história de dois marinheiros que, sozinhos, sobreviveram a um naufrágio. Eles ficaram à deriva no mar em uma jangada improvisada. Quando já tinham perdido todas as esperanças de serem resgatados, um disse ao outro que eles deveriam orar. Ambos concordaram e, quando um deles começou a clamar a Deus por ajuda, o outro o interrompeu, dizendo: “Espera aí, nem se incomode, acho que estou vendo um barco”.
Às vezes, Deus nos leva ao mesmo ponto a que levou Abraão no monte Moriá — a depender totalmente Dele. É nesse ponto que precisamos reconhecer Sua provisão. É aí que homens e mulheres devem chegar para serem salvos. Eles precisam ver a si mesmos como pecadores perdidos, merecedores da eterna ira de Deus. Eles precisam abandonar qualquer fé em si mesmos e qualquer obra que possam fazer para receber o favor de Deus. Eles precisam voltar-se somente para Ele para lhes prover o perdão de pecados e a justiça necessária para a salvação. A provisão de Deus já foi feita pela morte de Seu Filho sem pecado, Jesus Cristo, na cruz do Calvário, há mais de 2.000 anos. Meu amigo, se você atingiu o ponto de desespero, gostaria que soubesse que esse é também o ponto de auxílio e salvação. Lance toda a sua esperança sobre o Cristo do Calvário e, com certeza, você encontrará a salvação.
(6) Finalmente, esta passagem tem sido usada com um fim trágico, o sacrifício de nossos filhos e filhas sob o pretexto de obedecer a uma ordem divina. Deus nunca disse aos Seus santos para sacrificar suas famílias em prol de qualquer ministério ou chamado. É verdade que precisamos colocar Deus em primeiro lugar (Mateus 10.37), mas a obediência a Ele requer a provisão e instrução da nossa família (cf. 1 Timóteo 5.8; Efésios 6.4; 1 Timóteo 3.3-4, 12).
Muitos pais, como Abraão, pensam no futuro como algo ligado exclusivamente a seus filhos. Querem manipular suas vidas para que possam viver neles seus sonhos e esperanças. Precisamos entregar nossos filhos ao Senhor e submetê-los, e a nós também, ao Seu cuidado e providência. Só então, nós, e eles, encontraremos as bênçãos de Deus.
É com tristeza que devo admitir que o problema de Abraão é um tanto estranho à nossa época. Quase não precisamos nos preocupar com o apego exagerado aos filhos numa época em que a prática do aborto está desenfreada e pais e mães abrem mão de suas famílias por um estilo de vida mais livre. É nesse sentido que vemos a profecia sobre o fim dos tempos sendo cumprida em nosso meio:
Sabe, porém, isto: nos últimos dias, sobrevirão tempos difíceis, pois os homens serão egoístas, avarentos, jactanciosos, arrogantes, blasfemadores, desobedientes aos pais, ingratos, irreverentes, desafeiçoados, implacáveis, caluniadores, sem domínio de si, cruéis, inimigos do bem, traidores, atrevidos, enfatuados, mais amigos dos prazeres que amigos de Deus, tendo forma de piedade, negando-lhe, entretanto, o poder. Foge também destes. (2 Timóteo 3.1-5)
No versículo 3, a primeira palavra, “desafeiçoados”, significa literalmente “sem amor pela família”. Esta é uma época em que a afeição natural dos pais está se tornando rara. Com certeza a volta do Senhor está próxima. Que Deus nos capacite a amar nossos filhos a tal ponto que entreguemos suas vidas nas mãos Dele.
© 2017 Bible.org. All Rights Reserved.
Tradução e Revisão: Mariza Regina de Souza
1 Neste capítulo, Tiago não está debatendo a teologia de Paulo, e sim ressaltando uma verdade complementar: embora as obras não possam salvar, uma fé operante realmente pode. A justificação sobre a qual Tiago fala no capítulo 2 não é diante de Deus, mas diante dos homens. A fé que uma pessoa tem em seu coração a justifica diante de Deus, mas a fé demonstrada em sua vida justifica sua profissão de fé diante dos homens.
2 As observações de Stigers, no entanto, são dignas de reprodução: “A frase “a cidade dos seus inimigos” (versículo 17) tem uma abrangência importante para o futuro do plano redentivo de Deus. Os outros elementos desse juramento/promessa, a numerosa descendência e a bênção sobre as nações, são os mesmos encontrados em 12:1-3; no entanto, a frase “a terra que te mostrarei/darei” agora é substituída por “possuirá a cidade dos seus inimigos”. Isso amplia o significado da promessa referente à terra: o de assumir o lugar e o poder dos povos anteriores. No entanto, a promessa não é limitada; pode ser qualquer inimigo, de qualquer época; a menos que Israel negue seu Deus (cf. Salmo 89:30-33). A frase denota a vitória final da santidade sobre todas as coisas, compartilhada pelo povo de Deus”. Harold Stigers, Comentário em Gênesis (Grand Rapids: Zondervan, 1976), p. 190-191.
3 “Portanto, logizomai significa: a) considerar, ponderar, julgar, calcular; b) considerar, deliberar, compreender, chegar a uma conclusão lógica, decidir”. J. Eichler, “Logizomai,” Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento (Grand Rapids: Zondervan, 1978), III, p. 822-823.